Bom dia. Sei que a história anda com pouca ação e batalhas, apenas aguardem mais um pouco o próximo arco vai ser mais movimentado.
Capítulo 62 - Reencontro Parte I
A luz do candeeiro tremulava sobre a mesa de jantar, lançando sombras dançantes sobre a superfície áspera e marcada da madeira. Cada oscilação da chama parecia o último suspiro de vitalidade naquele lugar outrora tão vivo. Fernanda deslizou os dedos, calejados pela costura que agora a sustentava, pela borda da tigela vazia de Carla. O cheiro residual da sopa de mandioca, insossa e rala, ainda pairava no ar, um fantasma da refeição que mal aquecera a barriga da menina de sete anos. Carla a observava com olhos grandes e famintos, profundos como poços.
— O pão acabou, mãe? — a voz da menina era um fiapo, carregado de uma esperança que partia o coração de Fernanda.
— Acabou, meu anjo — mentiu Fernanda, forçando um sorriso tênue que não alcançou seus olhos cansados. — Amanhã, a senhora Inácia me pagará pelas rendas, e então teremos pão com melado.
A promessa era um fio de esperança tecido sobre o abismo. Ela sabia que o pagamento de Dona Inácia mal cobriria o algodão novo e os grãos básicos para a semana. A gorjeta extra que recebera pelo bordado impecável no vestido de festa da filha do coronel já era história antiga, transformada em um naco de carne salgada que durara apenas dois dias.
A queda tinha sido vertiginosa. Mesmo com Jorginho, a situação já era precária. Os tecidos finos que eles comercializavam, importados de Portugal com altos impostos, pararam de vender da noite para o dia. Comerciantes ambulantes, com seus panos baratos e duráveis, inundaram as ruas com preços tão baixos que a loja do casal não tinha como competir. As prateleiras ficaram abarrotadas de sedas e linho que ninguém queria, enquanto as dívidas com os fornecedores em Lisboa se acumulavam como uma maré crescente e implacável.
Foi Fernanda, desesperada com a perspectiva de perder o teto, quem sugeriu a Jorginho que se juntasse ao ataque ao Quilombo da Jabuticaba.
— É só pelos trocados, Jorginho! Para pagarmos os juros ao agiota — argumentara, os olhos ardendo em uma mistura de vergonha e determinação férrea. — Dizem que os quilombolas escondem ouro… e mesmo que não, a recompensa por cabeça de fugitivo basta para respirarmos.
Jorginho, um homem pacato cujo maior orgulho era o sorriso da filha, relutou. Mas o fantasma da fome era um conselheiro mais persuasivo do que o medo. Ele partiu com a milícia, prometendo voltar rápido.
A notícia da derrota dos atacantes e da captura de Jorginho chegou pela boca de um soldado ferido e amargurado. O mundo de Fernanda não apenas desabou; ele afundou ainda mais fundo no poço de culpa que ela mesma cavara. De esposa de um pequeno comerciante endividado, tornara-se a viúva de um prisioneiro, uma solicitante cuja própria imprudência a condenara.
A loja foi fechada, os tecidos restantes vendidos a preço de banana para saldar uma ínfima parte das dívidas. Os “amigos” sumiram como ratos num navio a pique. A casa, outrora um refúgio acolhedor, murchara. Vendera os móveis bons, depois a prataria, e agora encarava a venda do próprio telhado sobre suas cabeças. O trabalho de agulha, outrora um passatempo de senhora, era agora sua tábua de salvação, uma tábua fina e carcomida que rachava a cada dia que passava.
Carla tossiu no quarto ao lado, uma tosse seca e áspera que ecoava na casa vazia, um som que serrava os nervos de Fernanda. Ela cerrou os punhos, as unhas cravando-se nas palmas das mãos. A febre da menina precisava de um chá de ervas, mas o mercador cobrava um preço absurdo pela guiné. O desespero e a culpa eram dois abutres a lhe devorar as entranhas, dia e noite. A ideia de procurar a “caridade” da Santa Casa a envergonhava profundamente, mas a fome e a doença da filha eram mais fortes que qualquer orgulho.
Foi nesse crepúsculo da alma, com a penumbra se aprofundando na sala e o frio úmido da noite colonial se infiltrando pelas frestas das janelas, que alguém bateu à porta. Um toque breve, discreto, quase furtivo. Fernanda ergueu-se, o coração acelerado, batendo descompassado contra as costelas. Não era hora para visitas. Talvez o agiota, ou pior, alguém vindo despejá-las dali.
Abriu a porta apenas o suficiente, a madeira rangendo baixo. Lá fora, não estava o cobrador, mas um homem alto e silencioso, vestido com simplicidade, mas com um ar de solidez e integridade que ela já não via há tempos. Ele não disse uma palavra, apenas estendeu um rolo de papel amarrado com um barbante grosso.
— Quem… quem lhe enviou? — perguntou Fernanda, a voz trêmula, quase um sussurro.
O homem apenas inclinou a cabeça em um gesto quase imperceptível e, num instante, se fundiu com as sombras da rua não calçada, desaparecendo tão silenciosamente quanto surgira.
Com o coração aos pulos, Fernanda trancou a porta, as mãos tremendo tanto que ela teve dificuldade para deslizar a tranca. Sentou-se novamente sob a luz vacilante do candeeiro, o ar pesado com o cheiro de óleo queimado e mofo. Com dedos hesitantes, desenrolou o papel. A caligrafia era familiar, era dele. Um tremor percorreu-a toda, e uma lágrima quente e pesada de alívio e culpa caiu sobre o papel, embaçando levemente a tinta. Ela enxugou a mancha com a manga do vestido e começou a ler, devorando cada palavra.
“Minha querida Fernanda, minha doce Carla,
Se esta carta lhe encontrar, é porque Deus ouviu minhas preces. Escrevo não do fundo de uma masmorra, mas de um lugar de vida. Estou no Quilombo da Jabuticaba. Fui capturado, sim, mas não tratado como um animal. O ataque foi um desastre, mas a minha captura foi a minha salvação. Aqui, sou um homem. Um homem que trabalha, que respira sem o jugo do fardo alheio ou da dívida eterna.
Fernanda, a imagem da tua fadiga e do rosto pálido de nossa filha me assombra todas as noites. Sei da luta que trava. A cidade consome tudo, a pobreza humilha. Por isso, peço, não, vos suplico: Venha morar aqui. Traz Carla e vem para o quilombo.
Aqui não há senhores e escravos, nem agiotas ou impostos que sugam a nossa alma. É muito diferente do que me falaram. Atualmente estou trabalhando numa loja vendendo doces gelados, o salário é pequeno mas me permite comprar muito mais coisas do que aí. Tenho roupas novas e trabalho de barriga cheia.
Na carta tem um mapa de um local onde os quilombolas fazem comércio com a cidade sagrada, você pode ir lá, e falar com os guardas e eles vão te guiar ao quilombo, a onde moro.
Espero ansiosamente por vocês. O amor que tenho de vocês é a única riqueza que carreguei para cá, e quero ter ele de volta.
Para sempre seu,
Jorginho.”
Fernanda leu a carta uma, duas, três vezes. As palavras eram um bálsamo suave sobre suas feridas abertas e, ao mesmo tempo, um golpe de realidade. Quilombo da Jabuticaba. O lugar para onde ela enviara o marido para morrer ou para lucrar com a morte de outros, agora lhe oferecia vida. A ironia era um gosto amargo e metálico na sua boca, como sangue. Mas a carta de Jorginho não tinha um traço de amargura; ela respirava vida, futuro e um perdão tácito que ela sentia não merecer.
“Como sempre ele é tão bom com as palavras, por isso o amo…”
Ela olhou para a tigela vazia de Carla. Lembrou-se da tosse seca que rasgava o silêncio da noite, do desespero cego que a levou a sugerir aquele ataque tolo, do frio constante e gélido no estômago, companheiro diário da fome. Lembrou-se do riso de Jorginho, um som caloroso e contagiante que ela achou ter perdido para sempre por sua própria culpa.
O medo era um gigante de gelo a envolver seu peito, apertando-lhe os pulmões. A jornada seria perigosa, uma mulher com uma criança, atravessando estradas inseguras. A vida no quilombo, incerta e envolta em mistério. Mas a vida aqui? Aqui não era vida; era um lento, agonizante e humilhante definhar, pavimentado por seus próprios erros.
No dia seguinte, com uma determinação que não sentia há meses, ela usou o resto do dinheiro que tinha para comprar um pão com melado para Carla e um chá de ervas para a febre. Sobrou apenas um punhado de moedas, mas suficiente para contratar uma carroça que as levasse até a cidade sagrada e, de lá, ao ponto de comércio mencionado no mapa.
Dentro da carroça abafada e poeirenta a caminho da cidade sagrada, Fernanda brincava com os cabelos finos e opacos da filha. Carla, vestindo roupas surradas e claramente magricela, parecia ter um pouco mais de vida depois do pão com melado, seu rosto sujo iluminado por um breve vislumbre de contentamento.
— Para onde vamos, mamãe? — perguntou a menina, olhando a paisagem monótona passar.
— Vamos ver o papai — respondeu Fernanda, puxando-a mais para perto. — Vamos ter uma vida melhor, meu anjo. Uma vida juntos.
A viagem até a cidade sagrada durou vários dias, cada sol posto trazendo um novo frio e uma nova apreensão. Quando finalmente avistaram os contornos da cidade, Fernanda notou algo que a fez estremecer. Quase todas as pessoas nas ruas usavam aquelas roupas e vestidos coloridos e práticos que os ambulantes vendiam em Areia Branca. Ao ver aquela uniformidade, um sentimento de pena amarga por todos os comerciantes de tecidos, que certamente estavam perdendo seus empregos, invadiu-a. Aquele tecido, outrora um símbolo de sua ruína, agora não lhe causava nada além de uma aversão profunda. Mas deixando isso de lado, ela tinha uma nova missão: buscar alguém que pudesse levá-las ao ponto de encontro.
Sem muita esperança, dirigiu-se ao primeiro estábulo que viu, tentando achar algum condutor. Lá, avistou um homem baixinho e gordinho, de semblante tranquilo, dando aveia a um cavalo saudável.
— Com licença, senhor — chamou, sua voz ainda fraca. — O senhor é um ambulante?
O homem gordinho se virou, seus olhos percorrendo a mulher magricela de roupas surradas, segurando a mão de uma criança igualmente magra. Era uma visão incomum na próspera cidade sagrada, mas não inteiramente rara.
— Sim, senhora, sou o Francisco — respondeu ele, com uma voz surpreendentemente gentil. — O que posso fazer por você?
De forma desajeitada, Fernanda tirou a carta do bolso de seu vestido, amassada e suja da viagem.
— Eu… eu gostaria que o senhor me levasse para este lugar, por favor.
Francisco pegou a carta, seus olhos percorrendo o endereço. Reconheceu-o imediatamente.
— Você está no seu dia de sorte, senhora — disse ele, um sorriso fácil surgindo em seu rosto. — Estou indo para lá agora mesmo, e a carroça não vai estar tão cheia. Posso levá-las.
A mulher soltou um leve suspiro de alívio e, com mãos trêmulas, pegou as poucas moedas que restavam em seu bolso. Não passava de cem réis. Ela estendeu as moedas para Francisco, seu olhar suplicante.
— Por favor, senhor, me leve até lá… Mas só tenho isso para te pagar.
Francisco balançou a cabeça, recusando o dinheiro com um gesto suave da mão.
— Não posso aceitar isso, senhora. Não se preocupe, eu as levo de graça.
“Se eu aceitasse todo o dinheiro de uma mãe moribunda,” pensou ele, “a Papisa me mataria se descobrisse. Além disso, não é como se eu estivesse passando necessidades.”
— Mas senhor, eu insisto… — tentou Fernanda, sentindo o peso da caridade.
Mais uma vez, Francisco balançou a cabeça, sua expressão amigável, mas firme.
— Não se preocupe com isso. Tenho negócios a fazer lá, de qualquer forma. A companhia já é um bom pagamento.
Enquanto dizia isso, puxou seu cavalo do estábulo, atrelado a uma carroça robusta. Havia, porém, um diferencial nela: as rodas eram revestidas por uma grossa camada de borracha negra. Ele ajudou mãe e filha a subirem, orientando-as para que não pisassem na mercadoria, que consistia em pacotes de papel, várias barras de aço e pequenas gemas da luz, brilhando fracamente, assim como copos de cristais. Uma carga pequena, mas que parecia valiosa.
Francisco não perdeu tempo. Logo estavam saindo da cidade, a carroça movendo-se com uma suavidade surpreendente para uma estrada tão esburacada. No caminho, era possível ver um fluxo constante de outras carroças indo e vindo. Muitas delas estavam abarrotadas com os mesmos tecidos e roupas que Fernanda vira na cidade. Observando aquilo, um frio percorreu sua espinha, e ela não pôde deixar de perguntar.
— Então… essas roupas… vêm todas do quilombo?
Francisco, agora com um chapéu de palha na cabeça para se proteger do sol, mantinha os olhos focados na estrada, mas confirmou com a cabeça.
— Não só elas — respondeu, apontando com o queixo para as rodas de sua própria carroça. — Notou como a viagem é menos trepidante, mesmo nesta estrada de carroças? Esses pneus de borracha também são de lá.
Carla, curiosa, se inclinou para olhar as rodas com interesse.
— Que diferente, tio!
Uma sensação conflituosa invadiu Fernanda: um ódio residual pelo quilombo, que arruinara sua vida anterior, brotava ao lado de uma frágil, mas teimosa, esperança de uma vida melhor.
— Entendo… — murmurou, perdida em seus pensamentos.
Dominada por essa mistura de emoções, ela não quis questionar mais nada, permanecendo em um silêncio pensativo durante a longa viagem. O sol escaldante do meio-dia queimava suas cabeças e a poeira da estrada cobria suas roupas e pele.
Francisco olhou para trás e viu as duas sofrendo com o calor. Relutantemente, tirou seu próprio chapéu de palha e o estendeu para Fernanda.
— Tome. Pelo menos para a menina.
— Não precisa… — protestou Fernanda, fracamente. — O senhor já está fazendo demais por nós…
— Ha ha ha! — ele riu, um som genuíno e caloroso. — Não estou fazendo nada, não. Vocês é que estão me fazendo companhia. É sempre bom ter alguém para conversar na estrada, mesmo que a conversa seja silenciosa.
De forma relutante, mas profundamente grata, ela pegou o chapéu. O interior ainda guardava o calor da cabeça de Francisco. Ela o colocou cuidadosamente na cabeça de Carla.
— Então… eu aceito. Muito obrigada, bom senhor.
“Hmm, não estou acostumado a ser chamado de ‘bom senhor’”, pensou Francisco, ajustando o lenço no pescoço. “Só estou sendo generoso porque, no momento, a vida está sorrindo para mim. O comércio com o quilombo está lucrativo como nunca. Até abri uma sociedade mercantil com outros comerciantes para exportar seus produtos. Acho que vou conseguir me aposentar em uma bela mansão… Mas sem escravos, definitivamente. Não seria sábio me tornar inimigo deles…”
A viagem pareceu mais curta com esses pensamentos, e logo avistaram o destino: uma clareira movimentada à beira da mata, onde várias barraquinhas, bancos e mesas com toldos coloridos ofereciam sombra. O ar estava cheio de vozes, do cheiro de comida simples e da poeira levantada pelas carroças. Alguns ambulantes vendiam até mesmo bebidas alcoólicas para os outros comerciantes. Do lado do quilombo, uma variedade cada vez maior de produtos era exibida: pilhas de roupas, itens de borracha como os pneus que estavam se tornando populares entre os comerciantes mais abastados, e outros artefatos que Fernanda não reconhecia.
— Chegamos, meninas — anunciou Francisco, puxando as rédeas. — Não sei o que vocês pretendem fazer aqui, mas desejo boa sorte a ambas. Se me derem licença, tenho muitos produtos para vender e comprar.
Fernanda desceu da carroça de forma desengonçada, suas pernas fracas tremendo, e ajudou Carla a descer. Francisco levou sua carroça para uma fila organizada de outros comerciantes. No fim da fila, todos os produtos eram minuciosamente avaliados por homens sérios, e o pagamento era feito na hora. Depois, os comerciantes se dirigiam a outra fila para comprar as mercadorias do quilombo. O processo parecia burocrático, mas era surpreendentemente ágil, com ambas as partes demonstrando uma ânsia quase palpável por fechar bons negócios.
Enquanto isso, Fernanda e Carla, de mãos dadas, aproximaram-se cautelosamente de um dos guardas que observava todos os movimentos com um olhar sério e vigilante. Ele era um homem negro, alto, com um porte que inspirava respeito e um pouco de temor.
— Boa tarde, senhor — começou Fernanda, a voz falhando. — Eu… eu sou a esposa do Jorginho. Ele me disse, por carta, que eu poderia… entrar no quilombo…
Para sua surpresa, a expressão severa do guarda suavizou-se imediatamente ao ouvir o nome. Seus olhos percorreram sua figura magra e as roupas surradas, e Fernanda pôde ver não apenas reconhecimento, mas um lampejo de genuína pena em seu olhar.
— Só um momento — disse ele, a voz mais baixa agora.
Ele se virou e foi rapidamente falar com outro guarda um pouco mais afastado, trocando algumas palavras rápidas. Logo voltou.
— Apenas me sigam — ordenou, com um gesto.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.