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    O sol mal havia nascido, tingindo o céu de laranja e rosa, quando Nyran já suava no campo de treinamento da Serra da Vitória. O ar matinal ainda carregava o frescor da noite, misturado com o cheiro de terra batida e suor. Cada golpe de sua lança contra o poste de madeira era um esforço para disfarçar sua verdadeira missão: descobrir o segredo por trás da vitória quilombola sobre o exército do governador.

    “Tudo aqui parece um quilombo normal…”, pensou ela, os olhos disfarçadamente vasculhando o entorno. “Mas, de vez em quando, vejo aqueles carrinhos cobertos com panos grossos subindo a serra. Sempre vão para uma área de treinamento restrita.” Seus ouvidos captaram um boom abafado ao longe, seguido por um leve tremor no solo. “Mais uma explosão. Devem ser as tais armas mágicas. E estão trazendo mais delas a cada dia. Isso é… perigoso.”

    No auge de seu treinamento, o guarda Ícaro se aproximou. Seus passos foram abafados pela terra fofa até que ele parou a seu lado.

    — Nyran — chamou ele, com um tom ao mesmo tempo casual e inquisitivo. — O Espectro me contou que você é adepta da magia do vento e do fogo. E que sua mana é notável. É verdade?

    Nyran fincou a lança no chão com um movimento seco. A lâmina cravou-se na terra, e ela endireitou as costas, erguendo o queixo com uma expressão deliberadamente neutra.

    — Sim, senhor.

    — Excelente — ele respondeu, um sorriso breve cruzando seu rosto. — Então, por favor, venha comigo. O Chefe Carlos quer falar com você.

    “Um chefe? Finalmente, uma oportunidade de conseguir informações melhores.”

    Eles desceram a Serra da Vitória, e o caminho se abriu em direção ao Mocambo do Tatu. Nyran observava tudo atentamente. Vários homens passavam por eles, empurrando carrinhos de uma roda só, com rodas de um material escuro e liso que ela não reconhecia — nem madeira, nem metal comum. As cargas eram cobertas por panos encardidos.

    “Estamos indo justamente para o lugar de onde esses carrinhos vêm… Então, a origem dessas armas está no Mocambo do Tatu.”

    Lentamente, ela adentrou o mocambo. Por ser ainda cedo, o movimento não era intenso, mas a vida já pulsava. O cheiro de pão fresco e lenha queimada vinha de algumas casas. Pessoas varriam as calçadas, e o som suave das vassouras se misturava ao farfalhar das folhas das árvores que margeavam as ruas, cujas sombras se alongavam no chão de terra batida.

    “Bonito e bem ordenado. Parece que tudo aqui foi planejado com cuidado.”

    Enquanto andavam, ela avistou ao longe um homem usando luvas azuis de um material estranho, flexível e brilhante, retirando baldes de um banheiro público e os colocando em um carrinho similar aos outros.

    “Pelo visto, o chefe aqui leva a limpeza a sério.”

    Quando se aproximaram, o homem virou uma esquina e desapareceu de vista. Pouco depois, Nyran e Ícaro se depararam com uma cena inesperada: centenas de pessoas caminhavam pelas ruas, todas seguindo na mesma direção. Um murmúrio baixo de conversas enchia o ar.

    “Será que vai ter um festival? A essa hora?”

    Eles se juntaram à multidão. Nyran notou que homens e mulheres adentravam grandes galpões. Um deles, em construção, era erguido com um material que parecia uma pedra lisa e uniforme, coisa que ela nunca vira. O cheiro de argila úmida e cal era forte no local.

    Finalmente, viraram uma esquina e chegaram ao seu destino. O que Nyran viu a fez parar por um instante. Encostada na parede de um galpão, havia uma monstruosidade de aço em formato de um ovo gigante, maior que uma casa. No chão, outra estrutura de ferro rugia e bufava, com engrenagens expostas se movendo ritmicamente. O calor que emanava dela era intenso, aquecido por várias gemas de fogo que brilhavam com uma luz alaranjada incandescente em sua base.

    “Meu Deus”, ela pensou, sentindo o suor na nuca por causa do calor radiante. “Para que alguém faria algo tão inútil com um material tão caro? E onde conseguiram tanto ferro para isso? Achei que o chefe fosse um homem prático, mas isso parece um desperdício monumental.”

    Em frente ao “ovo” de aço, um homem — que ela presumiu ser o Chefe Carlos — discutia com uma mulher morena de rabo de cavalo e luvas grossas de couro. Outros trabalhadores, com rostos marcados pela labuta e roupas sujas de fuligem, os observavam.

    — Chefe,achei que usariamos o minério de ferro para produzir aço. É o jeito certo — argumentava a mulher, cruzando os braços.

    Carlos balançou a cabeça, um brilho de convicção nos olhos.

    — Infelizmente, não temos minério de ferro em quantidade aqui. Mas pensei num método usando as próprias barras de ferro que compramos. Com a Gema do Fogo, podemos fundi-las para criar um ferro-gusa artificial e controlar o carbono com carvão e a liga spiegel. O único problema era o manganês para a liga, mas para nossa sorte, o Nordeste tem veios de pirolusita, que é rica em manganês, perto de fontes de argila. Mandei uma equipe procurar e acharam um veio aqui pertinho!

    Nyran ouvia tudo, cada palavra grifada em sua mente. Ícaro, ao seu lado, esperou pacientemente até que Carlos fizesse uma pausa.

    — Bom dia, Chefe! — anunciou Ícaro, chamando a atenção. — Esta é Nyran, a adepta que você pediu.

    Carlos se virou, e seu rosto se iluminou com um sorriso aberto. Seus olhos escrutinaram a recém-chegada, que mantinha uma postura rígida e uma expressão imperscrutável.

    — Prazer! Sou Carlos, o Chefe do Mocambo do Tatu. E vou precisar muito da sua ajuda aqui — disse ele, com um tom energético. — Tanto, que espero que você venha morar conosco. E pode ficar tranquila, vai receber um bom salário por usar as gemas mágicas, além de um adicional pela periculosidade do trabalho!

    “Salário?”, pensou Nyran, ironicamente. “Eu já ganho ‘meu salário’ do Caetano Velho.”

    — Obrigada, chefe. Farei o meu melhor — respondeu ela, mantendo a voz neutra e o rosto inexpressivo.

    Carlos assentou, satisfeito, e então voltou sua atenção para os trabalhadores, esfregando as mãos.

    — Muito bem, pessoal! Com a ajuda da Nyran, podemos começar!

    Ele subiu por uma escada de metal até uma plataforma onde um forno de cadinho estava posicionado bem acima da boca do estranho “ovo” de aço. De lá, ele jogou dentro do cadinho várias barras de uma liga escura e quebradiça.

    — Esta é a liga spiegel que preparamos antes, com o manganês que reduzimos da pirolusita! — explicou ele, em voz alta, para todos ouvirem. Em seguida, apontou para um trabalhador, que subiu e, com cuidado, colocou a mão enluvada sobre uma Gema do Fogo incrustada na base do forno. Imediatamente, a gema brilhou com intensidade, e o forno começou a irradiar um calor visível, fazendo o ar ao redor tremer.

    — Esta liga tem que estar perfeita para quando for adicionada ao conversor Bessemer! — Carlos gritou, sobre o ruído que começava a emanar do equipamento.

    Ele então se moveu pela plataforma até outra estrutura, um alto-forno. Ao seu redor, havia pilhas de barras de ferro comum e montes de carvão vegetal em pó. Carlos orientou outros trabalhadores a carregarem o forno, e outro adepto, com outra Gema do Fogo, acionou o calor. O ar encheu-se com o cheiro pesado de metal aquecendo e carvão queimando.

    Nyran observava tudo aquilo, seus olhos percorrendo cada movimento. Por fora, ela parecia uma estátua de gelo. Por dentro, a confusão fervilhava.

    “O que diabos está acontecendo aqui? É alguma forma de alquimia? Porque ninguém mais parece achar isso uma loucura completa?”

    Quando o interior do alto-forno brilhou com a luz laranja-branca do ferro fundido — o tal “ferro-gusa artificial” —, Carlos desceu a escada e se dirigiu a uma máquina preta e ruidosa, de onde saíam jatos de vapor.

    — Agora é a hora! — anunciou ele, colocando a mão em uma alavanca vermelha e robusta. — Vamos despejar o gusa no conversor! Para isso… puxamos a alavanca vermelha da máquina a vapor!

    Ele puxou a alavanca com força. Um rugido profundo e mecânico ecoou, e Nyran viu um sistema complexo de engrenagens e correias se movendo. A tampa do alto-forno se abriu com um rangido metálico, e uma cascata de metal incandescente, brilhante como um sol em miniatura, jorrou por uma calha refratária direto para a boca do “ovo” de aço. O calor era tão intenso que ela sentiu a pele ardendo mesmo à distância.

    — Nyran! — chamou a mulher morena, entregando-lhe um cajado com uma Gema do Vento incrustada. — Por favor, use a gema e assopre por esta entrada! — ela indicou um tubo de ferro que levava à base do conversor.

    Nyran pegou o cajado. Sentiu a madeira lisa em suas mãos e a leve vibração da gema. Concentrando-se, canalizou sua mana. Um jato de ar concentrado e poderoso sibilou para dentro do tubo, e o conversor pareceu ganhar vida, com um ronco mais profundo e labaredas dançando em sua boca.

    Voltando lá para cima na plataforma, Carlos observava o processo com os olhos fixos, gritando ordens.

    — Certo, agora! Alavanca azul! — um trabalhador puxou uma alavanca azul. Um mecanismo de correntes e rodas dentadas entrou em ação, e o forno de cadinho, agora contendo a liga spiegel fundida, moveu-se lentamente sobre trilhos, posicionando-se com precisão sobre a boca do conversor. O cadinho inclinou-se, e um fluxo de metal brilhante, diferente do anterior, despejou-se dentro do conversor. — Perfeito! Agora é só aguardar o processo finalizar!

    O ronco do conversor mudou de tom, tornando-se mais suave. Depois de alguns minutos, Carlos deu a ordem final.

    — Agora, puxem a alavanca vermelha novamente!

    Desta vez, a grande “máquina de aço oval” começou a se mover. Com um gemido de metal, ela foi basculada para o lado. De sua boca, um rio de aço líquido e brilhante jorrou, fluindo para uma série de formas de areia na base. O metal deslumbrou, cintilando como água prateada e incandescente, até que, lentamente, começou a escurecer e solidificar, tomando a forma de milhares de barras regulares.

    O cheiro metálico e quente impregnou o ar. Quando as barras estavam frias o suficiente para manusear, Nia, incrédula, aproximou-se. Ela pegou uma. Era pesada, lisa, e tinha o tom cinza-azulado característico. Ela a bateu levemente contra outra. O tlim claro e agudo, sem nenhuma fragilidade, confirmou sua suspeita.

    — Não acredito… — a palavra saiu como um sussurro rouco de seus lábios, sua fachada impassível finalmente rachando. — Eu tenho que bater no ferro por dias para conseguir um punhado de aço decente… O preço de importação é uma fortuna… E você… você fez milhares de barras… em minutos! Só esta pilha aqui deve valer uma fortuna!

    Carlos se aproximou, limpando as mãos sujas de fuligem em um pano.

    — É, esse é o preço pelo qual compramos o aço importado — ele explicou, acenando com a cabeça. — Mas não podemos vender pelo mesmo valor. Precisamos usar boa parte desse aço para construir mais máquinas, mais ferramentas. Mas a outra metade… essa sim, vamos vender. E com o lucro, vamos contratar mais gente e aumentar o salário de todo mundo aqui no mocambo. Quem sabe, um dia, todos aqui possam ganhar tanto quanto um homem livre e abastado!

    A euforia tomou conta dos trabalhadores. Sorrisos largos, tapas nas costas, um renovado ânimo para o trabalho. O dia seguiu em um ritmo frenético e produtivo.

    Ao final do expediente, exausta mas com a mente a mil, Nyran foi liberada. Enquanto caminhava de volta pelas ruas tranquilas do mocambo, agora iluminadas pela luz dourada do fim de tarde, seus pensamentos fervilhavam.

    “Tenho que relatar isso imediatamente ao Caetano Velho… Mas ainda estou sendo vigiada. Preciso esperar a oportunidade certa. Sei que ele já previu algo assim. Só preciso ter paciência.”

    Seus olhos percorriam as calçadas limpas, as casas bem cuidadas, quando, de relance, avistou algo que a fez parar o coração. Uma mulher alta, usando um vestido simples listrado, mas de um corte inconfundivelmente familiar — igual ao que suas companheiras do exército usavam.

    “Uma companheira? Aqui? Impossível!”

    Sem pensar, ela se virou e começou a seguir a mulher, que andava com passos rápidos e decididos. A mulher entrou em um pequeno barracão à beira de um campo aberto de grama bem aparada, marcado com linhas brancas.

    Nyran hesitou em entrar. Várias outras mulheres adentravam o local, rindo e conversando. Ela não podia se arriscar. Havia bancos de madeira ao redor do campo, e algumas pessoas já estavam sentadas, formando um pequeno público. Decidiu se sentar e esperar.

    Não demorou muito. A mulher que ela esperava saiu do barracão, mas agora vestia uma roupa absurdamente curta — uma calça que mal passava das coxas e uma camisa verde. Era ela, sem dúvida. Tassi.

    — Quem será que vai ganhar a partida de hoje? — ouviu Nyran uma mulher dizer no banco de trás. — Aposto que o time da Roupa Fina vai ganhar de lavada!

    — Nada disso! — retrucou outra, ao seu lado. — Quem vai ganhar é o time da Tassi, o Verde Floresta!

    — Bah! — grunhiu um homem atrás delas, com voz grossa. — Não importa. O meu, o time Explosão, daria uma surra em qualquer um desses times de mulheres! Até o time Pedra Dura ganharia delas.

    — Fala isso porque nunca viu a Quixotina em campo! — a primeira mulher revidou, rindo. — Ela dribla qualquer um!

    Enquanto a discussão amigável continuava, Nyran observava, perplexa. Tassi, no centro do campo, apontou para outra mulher, a tal Quixotina.

    — Ouviu isso, Quixotina? — gritou Tassi, com um sorriso largoo que Nyran jamais imaginaria ver em seu rosto. — Meu time é mais importante dentro e fora do campo! Nós alimentamos todo mundo! Mas hoje, vocês vão é comer grama!

    Quixotina, uma mulher de estatura menor, mas com um ar de determinação, não se abalou.

    — Vocês podem alimentar a barriga, Tassi — respondeu ela, erguendo a voz. — Mas nós alimentamos a alma com conhecimento! E também vestimos todo mundo!

    Algumas mulheres do time riram ao ouvir a troca de palavras delas, já outras tentavam esconder seus rostos em vergonha.

    O jogo começou. Era caótico, barulhento e cheio de energia. Mulheres corriam, chutavam uma bola de borracha, gritavam, riam. Nyran via Tassi, a mesma mulher dura e disciplinada que conhecera, rindo abertamente, sujando-se de terra, comemorando com suas companheiras de time. Era um lado dela que Nyran nem sabia existir.

    O time de Tassi, o Verde Floresta, por fim venceu. Afinal a maioria das agricultoras não tinham que ficar o dia todo cuidado dos campos graças aos poderes de Tassi e podiam ficar jogando ou fazendo outras atividades.

    Mas mesmo assim a partida foi disputada. Quando acabou, as mulheres, suadas e felizes, foram se trocar. Nyran esperou, seu coração batendo forte. Quando viu Tassi sair, já de volta ao seu vestido normal, aproximou-se lentamente, garantindo que ninguém estivesse por perto.

    — Tassi? — chamou ela, em um sussurro carregado de incredulidade.

    A mulher se virou, e seus olhos, que momentos antes brilhavam de diversão, encontraram os de Nyran. A expressão de Tassi se transformou instantaneamente. O sorriso desapareceu, substituído por um olhar de alerta e reconhecimento. O mundo ao redor delas pareceu parar.

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