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    — Nyran? — disse Tassi, seus olhos se arregalando de surpresa genuína ao reconhecer a mulher à sua frente. Um sorriso largo e aberto, que Nyran jamais associaria àquela guerreira endurecida, iluminou seu rosto. — Não acredito! Nunca achei que fosse te ver de novo! Vamos, tenho tanta coisa para contar!

    A expressão calorosa e descontraída de Tassi deixou Nyran ainda mais confusa. Aquela não era a companheira estóica que ela conhecera.

    — Sim — respondeu Nyran, mantendo a voz contida. — Vamos conversar.

    Tassi a levou até um bar simples ali perto, com mesas de madeira rústica e o cheiro agradável de limão e cachaça no ar. Sem cerimônia, ela pediu duas caipirinhas.

    — Imagino que você não tenha dinheiro, mas não se preocupe, eu pago. Afinal, sou uma ministra do mocambo agora, ganho muito bem — disse Tassi, com um piscar de olhos.

    O garçom deixou os copos gelados sobre a mesa. Nyran observou a bebida branca e granulada com certa desconfiança, mexendo-a com o canudinho de taquara antes de levar o copo aos lábios. O primeiro gole foi uma explosão de sensações: o forte ardido da cachaça, o azedo refrescante do limão e o doce que vinha em seguida. Seus olhos se arregalaram ligeiramente, e ela tomou outro gole, mais longo, já rendida ao sabor.

    — Ministra? — questionou Nyran, franzindo levemente a testa. — O que é isso?

    Tassi tomou um gole de sua bebida, um ar de orgulho no rosto.

    — Sou a Ministra da Agricultura. Cuido de tudo que envolve alimentos no mocambo. Sabe, uso a gema da grama e da terra, né? Então, tenho um cajado especial que me permite fazer as plantas crescerem rápido e fortes!

    Tassi, longe da linha de frente? Impossível“, pensou Nyran, uma pontada de desdém surgindo em seu peito.

    — E por que não está na linha de frente, em vez de ficar… brincando com plantas? — Apesar de seu rosto permanecer uma máscara de impassibilidade, um fio de raiva permeou sua voz.

    Tassi pareceu surpresa com o tom acusatório, e por um instante, seu sorriso vacilou, como se uma memória dolorosa a houvesse tocado.

    — Nyran, se acalme. Nós não estamos mais com as Guerreiras Mino. Se você está aqui no quilombo, significa que é livre, assim como eu.

    — Sim, sou livre — Nyran retrucou, sua voz um sussurro cortante. — Mas você nem imagina o quanto eu lutei, e continuo lutando, para chegar onde estou!

    “Eu sofri tanto desde que vim para este país amaldiçoado, e você está por aí, se divertindo como se não houvesse amanhã!”

    Tassi, então, ergueu a mão e apontou calmamente para a letra “F” marcada a ferro em sua testa.

    — Consegui isso no meio do ano passado. Eu também sofri muito, Nyran. A diferença é que aqui, nós não precisamos sofrer. E eu ajudo o quilombo, sim, só não é mais pela guerra. Ajudo por outros meios. Mas, quando precisam de mim numa batalha, eu estou lá, sem problemas.

    “Ela tem razão. Ninguém que veio parar aqui chegou sem sua carga de dor. Por que estou sendo tão emotiva? Tenho que focar na minha missão. Tassi não faz parte dela.”

    Nyran começou a se levantar, suas costas rígidas, mas Tassi esticou o braço e segurou seu pulso com uma gentileza firme.

    — Calma. Eu entendo por que você está assim. Eu também era assim, lembra? Sempre escondendo tudo bem no fundo, a ponto de achar que não sentia mais nada. Mas… só porque eu não demonstrava, não quer dizer que não sentia. Acho que com você é a mesma coisa. Imagino que você me viu jogando, não foi?

    De forma relutante, Nyran permitiu que Tassi a puxasse de volta para a cadeira. Ela se sentou, seus olhos fixos nos da companheira.

    — Sabe de uma coisa, Nyran? De que adianta viver uma vida só lutando e trabalhando, se a gente não pode aproveitá-la? Eu trabalho duro para o Carlos, mas ele mesmo briga comigo quando eu faço horas extras ou trabalho nos feriados. Ele vive falando que tem que haver equilíbrio em tudo na vida… — Ela deu uma risadinha. 

    — Apesar de que ele mesmo não segue os próprios conselhos. Mas não o culpo; ele carrega um peso imenso nos ombros.

    “Quem me dera ter uma vida fácil assim. Enquanto isso, eu tenho que fazer todo o trabalho sujo só para sobreviver e manter meu conforto. Até gostaria de ter essa vida… mas é impossível. Só o fato de estarem aqui, perdendo tempo com jogos em vez de se prepararem para o próximo ataque, já mostra que não vão durar muito.”

    — Você ficou fraca Tassi Hangbé. 

    Apesar do insulto, Tassi não demonstrou raiva, apenas respondeu com calma e serenidade.

    — E que tal eu e você duelamos? Aposto que ainda consigo te vencer facilmente.

    “Hunf, ela acha que pode me vencer vivendo uma vida dessas? Eu não tenho tempo a perder com isso… No entanto… Tassi trabalha para Carlos. Ela pode ser uma fonte valiosa de informação.”

    — Feito!

    Tassi olhou para ela de forma serena e disse:

    — Amanhã, após o sol se pôr, lá no mesmo campo que eu estava jogando.

    Nyran concordou com a cabeça, tomou o resto da caipirinha num gole só e sem falar nada se levantou e saiu do bar.

    ***

    Mais tarde, sozinha em sua casa, Tassi olhou para um canto vazio da sala, onde as sombras dançavam fracas à luz de uma lamparina.

    — Pode aparecer, Sombra.

    Como se materializando da penumbra, o homem emergiu do escuro, silencioso como um suspiro.

    — Pelo visto, não consigo te enganar mesmo — ele sussurrou. — Mas, quanto à sua amiga…

    Tassi balançou a cabeça, um vestígio de tristeza em seus olhos.

    — Não. Ela sabia que você estava lá. Ela é muito mais perspicaz do que eu. Só acho que não acreditou no meu novo modo de vida. — Ela suspirou. — Mas ela pode mudar, Sombra. Assim como eu mudei.

    Sombra a observou em silêncio, processando cada palavra antes de falar.

    — Sabe, ela me contou que, no mesmo dia em que foi vendida como escrava, conseguiu escapar do engenho e libertar todos. Ela é forte, mas não imaginei que ela conseguiria me identificar.

    Tassi franziu a testa, um detalhe na história soando falso.

    — Ela foi escrava há pouco tempo? Mas isso é impossível. Faz dez anos que fomos capturadas juntas. O que ela estava fazendo antes disso? Ela te contou?

    Um alerta imediato acendeu na mente de Sombra.

    — Não. Ela só disse que chegou ao Brasil há um bom tempo e que demorou para ser vendida como escrava na cidade de Areia Branca. — Ele fez uma pausa, sua voz ficando mais grave. — Duvido muito que alguém fique dez anos esperando no cativeiro para ser vendida.

    Aproximando-se de Tassi, sua presença agora mais intensa, ele perguntou:

    — Você acha que podemos confiar nela?

    O coração de Tassi queria gritar que sim, ansiando pela redenção de uma antiga companheira. Mas a guerreira treinada, a estrategista, falou mais alto.

    — Depende — disse ela, sua voz clara e lúcida. — Ela só acredita em uma coisa, em força, no exército ela achava correto capturar pessoas inocentes para venderem como escravos. Porque segundo ela, tínhamos que comprar mais armas e nós tornamos mais fortes. Basicamente ela só trabalha para o lado mais forte, independente dos métodos que eles usarem.

    Com um tom carregado de preocupação, Sombra insistiu:

    — E você acha que ela acredita que somos os mais fortes?

    Tassi emitiu uma risada baixa e sem humor.

    — Isso, meu caro, é trabalho de vocês descobrirem. Ela sempre foi muito, muito boa em esconder o que sente, porém como pode ver ela me acha fraca, mas não dá para saber se acha o quilombo fraco.

    Ao ouvir isso, Sombra não disse mais nada. Simplesmente se fundiu de volta às sombras, indo direto relatar tudo ao Espectro.

    ***

    Na manhã seguinte, Nyran acordou com o primeiro raio de sol entrando pela fresta de sua nova casa no Mocambo do Tatu. O cheiro de terra molhada invadia o ambiente. Ela se levantou para preparar algo simples para comer, mas parou abruptamente. Uma presença familiar e indesejada pairou no ar do seu quarto. No mesmo instante, o anel em seu dedo começou a esquentar, quase queimando sua pele.

    “Então é isso. Só porque eu estava escapando da vigilância… Tassi, você disse algo sobre meu passado, não é? Você ainda me conhece bem, minha velha companheira.”

    Do lado de fora, escondido na penumbra do amanhecer, Sombra observava cada movimento de Nyran através de uma fresta, procurando por qualquer sinal de que ela o havia detectado. De repente, uma mão feminina e invisível puxou seu braço com força. Era sua irmã, Sussurro.

    — Estamos sendo atacados! — ela cochichou, urgente, puxando-o para longe da casa. — O Espectro está convocando todos, agora!

    Dentro de casa, Nyran sentiu as duas presenças sombrias se afastarem rapidamente. Ela soltou um suspiro profundo de alívio, seus ombros relaxando por uma fração de segundo.

    — Pelo visto… — sussurrou para si mesma, seus olhos se tornando frios e determinados. — Essa deve ser a abertura que o Caetano Velho preparou para todos nós.

    Sem perder um segundo, ela se ajoelhou e, com movimentos precisos, retirou um papel que estava escondido dentro da palha de seu colchão. Deixando a comida intocada sobre a mesa, Nyran saiu correndo pela porta dos fundos, desaparecendo na névoa matinal com uma velocidade sobrenatural.

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