Índice de Capítulo

    A ordem de “Sussurro” ecoou na mente de Sombra como um sino fúnebre, cortando instantaneamente sua vigilância sobre Nyran. A presença da irmã, normalmente tão etérea, estava carregada de um pânico tangível que fez o ar ficar gelado ao seu redor. Ele não pensou duas vezes. As sombras se contorceram ao seu redor, engolindo-o, e ele se moveu não como um homem, mas como um reflexo da própria escuridão, seguindo Sussurro em direção ao perímetro do Mocambo da Lâmina.

    O ar, que momentos antes cheirava a terra molhada e orvalho, agora trazia um fio doce, pesado e metálico de sangue. O primeiro sinal não foi um grito, mas um silêncio opressivo, o silêncio errado, vindo de onde sempre se ouvia o bate-bate ritmado do machado de Kito na roça. Ao se materializar na borda leste do quilombo, onde a mata começava a engolir o claro, Sombra parou, seus pés afundando na terra fofa. O cheiro de ferro era mais forte aqui.

    O corpo do homem adulto, Kito, estava estirado ao pé de um mamoeiro, sua sombra alongada pela luz fraca da manhã. Seu rosto, um quadro de terror eterno, os olhos abertos e vidrados, estava voltado para o céu. O torso era um amontoado de carne e rasgões, onde faltava uma perna, arrancada com uma violência que falava de força bruta. Marcas de garras profundas e dilacerações cruzavam o que restava de seu corpo, e a terra ao redor estava amassada e encharcada de um vermelho escuro.

    “Foi recente”, pensou Sombra, o estômago embrulhando com o odor adocicado da morte. “E isso… isso não foi obra de um humano, ou de um animal comum. Isso foi um monstro.”

    Enquanto o Espectro se agachava para examinar o corpo, seus dedos pairando sobre as feridas sem tocá-las, Sussurro se aproximou de Sombra, sua voz um sussurro ainda mais baixo do que o normal.

    — No Mocambo da Lagoa também encontraram um corpo… uma mulher, dilacerada da mesma forma. E o mais estranho… — ela fez uma pausa, seus olhos escansando a floresta ao redor. — Havia penas escuras espalhadas perto do corpo.

    Sombra virou o rosto para ela, uma premonição gelada correndo por sua espinha.

    — Penas? Matinta Pereira, A Bruxa Ave? Mas eu achava que ela só atacava quem não cumpria os pactos com ela…

    — Também achei isso estranho — Sussurro concordou, puxando o manto mais junto ao corpo. — Mas o pior veio do Mocambo da Serra. O lugar que deveria ser o mais protegido. Um guarda foi morto. Por sorte, outro viu o que aconteceu pouco antes do amanhecer… foi um lobisomem.

    Sombra se levantou de um salto, seus olhos encontrando os olhos negros e profundos da irmã.

    — Matinta-Pereira, lobisomens e agora isso aqui… — ele gesticulou em direção ao corpo de Kito. — Talvez seja o trabalho de um Mapinguari… Que deuses nós irritamos para tantos monstros nos atacarem de uma só vez?

    Outros guardas chegaram, formando um círculo mudo e tenso ao redor do Espectro e do corpo.

    — Eu também queria saber — disse o Espectro, erguendo-se. Sua voz era calma, mas carregada de uma gravidade que silenciou todos os sussurros. — Parece um ataque coordenado, premeditado. Mas monstros não trabalham juntos. E eu não conheço nenhuma gema capaz de orquestrar uma coisa dessas.

    Os três ficaram em silêncio por um momento, o peso daquela verdade pairando no ar. Isso nunca tinha acontecido antes. A reunião com os chefes dos mocambos e com Zala foi convocada na hora.

    A tensão na sala do conselho era palpável. Zala bateu o punho fechado na mesa de madeira maciça, fazendo os copos de água tremerem.

    — Como isso pôde acontecer? — sua voz era um misto de fúria e incredulidade. — Você está me dizendo que isso foi um ataque coordenado ao quilombo, e não uma série de acidentes com monstros?

    O Espectro permanecia impassível à frente dele.

    — Exatamente. O padrão e a diversidade das criaturas envolvidas são… anômalos. Alguém, ou algo, deve tê-los guiado. De qualquer forma, a partir de agora, estamos em alerta máximo.

    Carlos, que observava a discussão com uma apreensão visível, inclinou-se para frente, seus dedos entrelaçados sobre a mesa.

    — Uma pergunta, Espectro. É possível… dialogar com esses monstros? Seria viável tentar uma abordagem diplomática, convencê-los de alguma forma?

    O Espectro balançou a cabeça, um movimento lento e definitivo.

    — O diálogo é um conceito humano. Com a Matinta Pereira, talvez se faça um pacto, mas ela sempre cobra um preço terrível e distorce os desejos. É um consenso que tentar conversar com qualquer uma dessas criaturas só leva à morte ou a uma maldição pior que ela.

    Fernando, cujo mocambo também fora violado, falou com a voz carregada de preocupação:

    — Então, Espectro, há alguma forma de nos prevenirmos? Algum ritual, alguma barreira?

    — Apenas vigilância — respondeu o Espectro. — Mais guardas, mais olhos. Mas é impossível proteger todos os mocambos o tempo todo, a não ser que… — ele fez uma pausa calculada. — A não ser que tivéssemos mais daquelas lunetas com gemas da visão que capturamos na última batalha. Com elas, poderíamos identificar ameaças à distância, com tempo de sobra para organizar a defesa.

    Foi quando Carlos se intrometeu, um leve brilho de oportunidade nos olhos.

    — Nesse caso, o problema se resume a comprar mais delas, certo?

    O Espectro soltou um suspiro curto, quase imperceptível.

    — Sim, mas o preço… é proibitivo.

    Um sorriso confiante se desenhou no rosto de Carlos.

    — Ah, nesse caso, acho que posso resolver a parte financeira.

    O Espectro franziu levemente a testa, uma fenda em sua habitual impassibilidade.

    — Você nem ouviu o valor, Carlos.

    — Não preciso ouvir — ele riu, um som seco. — Recentemente, dominei a produção de aço em larga escala. Só ontem, fabricamos o equivalente a milhões de réis. E vamos continuar até o fim do mês. A única limitação é o minério de ferro, que está escasso. Mas se a Paula cumprir sua parte do acordo, o dinheiro deixará de ser um problema.

    Os olhos de todos ao redor da mesa brilharam, especialmente os de Zala. Carlos notou a cobiça no olhar do homem e se virou diretamente para ele.

    — Isso até me lembra… estou pagando a taxa que o Ganga solicitou de uma forma… indevida.

    Ganga Zala, franziu a testa, confuso.

    — Indevida? De que forma?

    Carlos se levantou, pegou uma pilha de papéis e começou a distribuí-los, um para cada chefe.

    — Basicamente, eu estava te repassando metade dos lucros brutos, sem descontar os custos. Os salários dos meus funcionários, as armas que fabrico e doo para o exército, a importação de suprimentos essenciais para o mocambo funcionar… — ele fez uma pausa, deixando a informação pairar no ar. — Devo descontar isso, especialmente agora, depois do que gastei importando aço para as máquinas e ferro para a produção. Sem falar na taxa da igreja para hospital e, agora, nas novas aquisições para o exército.

    Zala bateu a palma da mão na mesa com um baque surdo.

    — Você sabe que essas são questões administrativas suas, não sabe, Carlos?

    — São questões que afetam a segurança de todos — contra-atacou Carlos, sua voz firme. — Este mês, quase não sobrou capital para o meu próprio mocambo. Imaginem se acontece uma crise, o quilombo fica isolado, e não temos fundos para pagar, por exemplo, a taxa de cura da Igreja?

    Seus olhos se desviaram para Maria, do outro lado da mesa. Maria, que até então permanecera em silêncio, falou com sua voz suave, porém firme:

    — Ganga, o Carlos tem um ponto. Acho prudente que ele leve em consideração os investimentos que faz no quilombo antes de calcular o repasse.

    Ver a normalmente reservada Maria confrontando Ganga deixou uma onda de surpresa visível no rosto de vários presentes.

    Carlos, sentindo o momentum a seu favor, voltou-se novamente para o Espectro.

    — Atualmente, também estou desenvolvendo armas novas e uma pólvora mais potente. Para isso, os custos com importação de minérios vão disparar. E agora, com essa emergência, vou importar qualquer gema mágica que o exército necessitar.

    O Espectro, em um raro movimento de apoio, inclinou a cabeça em concordância.

    — O Carlos tem razão. Dada a gravidade do ataque que sofremos, seria imprudente estrangular financeiramente justamente o mocambo que produz nossas armas e inova nossas defesas.

    Aproveitando o apoio, Carlos varreu a mesa com o olhar antes de dar seu último argumento.

    — Devo lembrar a todos que todo o quilombo se beneficia das armas que saem das minhas forjas e da cura que a Igreja nos provê, graças a acordos que eu negociei. E, falando nisso, preciso de mais trabalhadores. Se puderem espalhar a palavra: quem quiser se mudar para o meu mocambo terá comida farta, roupas boas e casas bem mobiliadas. — Ele fez uma pausa dramática. — E, é claro, com mais dinheiro em caixa, também poderei pagar melhor a todos os chefes que se dedicam ao quilombo, vocês também podem desfrutar do que meu quilombo oferta.

    Ganga bateu a mão aberta na mesa com força, um estampido que cortou o ar.

    — Já chega! Entendi seu ponto! — sua voz era um rosnado. — Mas você ainda vai me repassar uma parte dos lucros. E além disso…

    Zala o interrompeu, olhando fixamente para o Espectro.

    — E eu vou cobrir os custos de qualquer arma mágica que o quilombo precisar.

    A discussão se arrastou por mais algum tempo, mas o ânimo havia mudado. Pouco depois, a reunião foi encerrada. Zala retirou-se para seus aposentos, a porta fechando-se com um baque surdo. O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo rangido dos seus próprios dentes apertados.

    “Não acredito… Maria e o Espectro, do lado dele! Ninguém enxerga o que eu fiz por este lugar! O quilombo só está de pé graças aos meus esquemas, à minha influência! Se dependesse da minha mãe no poder, teríamos perdido metade dos nossos homens em ataques fúteis e incendiado a paciência de todos os senhores de engenho da região. Claro que eu mereço um pouco de dinheiro e ouro, depois de tanto suar e me sacrificar por todos!”

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota