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    O sol ainda não havia queimado a serena neblina da manhã quando Tassi adentrou a prefeitura do quilombo. O ar no interior da recém-construída prefeitura era fresco e carregado do cheiro reconfortante de capim-cidreira. Sentada à sua pesada mesa de madeira maciça, ela envolveu as mãos em torno da caneca de barro, sentindo o calor do chá penetrar sua pele enquanto dava um lento gole. A bebida, amarga e doce ao mesmo tempo, era o melhor despertar possível. Ao lado, uma fatia generosa de bolo de fubá, úmido e levemente adocicado, completava o ritual matinal. Ela podia sentir a textura arenosa do fubá entre os dentes, um conforto simples e profundo.

    Enquanto isso, seu assistente, um jovem chamado Kaio, lia em voz baixa e clara a lista do dia, o papel tremendo levemente em suas mãos.

    — Bom dia, Tassi. Os agricultores que precisam da sua bênção hoje são: o seu Zeca, nas plantações de mandioca ao norte; dona Iaiá, nos novos pés de inhame; e o seu Elias, precisa de ajuda com o trigo.

    Tassi assentiu, os olhos semicerrados enquanto saboreava um pedaço de bolo. O nome de seu Elias fez um canto de sua boca se erguer levemente. O trigo. Era seu projeto mais orgulhoso, uma cultura que se recusava a prosperar no solo e no clima do quilombo sem a sua intervenção direta. Um desafio que ela aceitara com gosto.

    — O seu Elias já tem a farinha pronta para eu levar? — perguntou ela, a voz um pouco rouca pelo primeiro gole de chá.

    — Sim, senhora — respondeu Kaio, erguendo um pouco a cabeça. — Ele disse que a moenda tradicional funcionou perfeitamente. Ele separou um saco especialmente para a prefeitura.

    — Que bom — murmurou Tassi, levantando-se. A paz do início do dia era um manto que ela vestia com gratidão. — Agora, tenho que avisar o Carlos sobre um assunto.

    Antes de iniciar sua rotina, ela se dirigiu à sala de Carlos. Para sua surpresa, Quixotina estava lá, os dois imersos em uma animada discussão sobre a escola que seria inaugurada em breve.

    — …a gente também precisa de uma cantina— Carlos dizia, quando Tassi entrou.

    — Carlos, tenho que te informar uma coisa — interrompeu Tassi, parando à frente da mesa dele. — Hoje, depois de completar meu trabalho, vou participar de um duelo. Uma velha companheira me desafiou.

    Carlos nem teve tempo de abrir a boca para responder quando Quixotina pulou da cadeira, os olhos brilhando de empolgação.

    — Um duelo! Me deixa ver! Tô cansada de ficar mexendo com papel o dia todo, isso sim é coisa de verdade!

    Tassi suspirou profundamente, sentindo o cansaço da ideia antes mesmo do duelo começar.

    — Claro, pode ver. Mas nada de interrupções, hein? Isso é algo sério entre duas guerreiras de verdade. É por isso que preciso de um juiz — ela disse, voltando-se para Carlos. — E você, Carlos, será perfeito.

    Carlos se espreguiçou na cadeira, os ossos estalando baixo, e soltou um bocejo exagerado antes de responder.

    — Claro, isso parece emocionante. Tô cansado de ficar enfurnado nesse lugar. Um duelo é bem mais minha praia do que essa papelada toda.

    — Combinado, então — Tassi finalizou, virando-se para sair. — Vai ser no campo de futebol após o sol se pôr. Não se atrasem.

    A visita ao seu Elias foi, como sempre, a mais importante da lista, uma mistura de trabalho e celebração. O velho agricultor, com suas mãos calejadas pela enxada e um sorriso fácil que criava rugas profundas ao redor dos olhos, aguardava ansioso na beira de seu trigal, que no momento nem havia crescido

    Tassi caminhou no campo, descalça para sentir a terra sob seus pés. Fechou os olhos, fincou seu cajado no chão e respirou fundo. Uma energia verde e marrom, que somente ela podia perceber, pulsou da ponta do cajado, fluindo para o solo e entrelaçando-se com as sementes do trigo como um rio subterrâneo de vida. Ela não forçava o crescimento; ela sussurrava, encorajava, dançava com o potencial de vida que já existia ali. Em minutos, o campo parecia respirar mais fundo, as cores se intensificando de um amarelo pálido para um dourado vibrante, como se o próprio sol tivesse decidido habitar cada espiga.

    Seu Elias observava, com um respeito que beirava a reverência, tirando o chapéu de palha para enxugar a testa.

    — Obrigado, Tassi. Com você, poderemos comer pão que nem os senhores de engenho comiam.

    Tassi se virou para encarar o velho agricultor, um sorriso cansado nos lábios.

    — Eu apenas faço o trigo crescer, seu Elias. É o seu suor que colhe e transforma em alimento. Por falar nisso, como anda a farinha?

    Ele acenou com a cabeça em direção a um saco de aniagem robusto, encostado à parede de sua humilde casa de toras.

    — Toda moída no pilão, como antigamente. O segredo é a paciência. Deixar o trigo descansar, a pedra fazer seu trabalho devagar…

    Tassi sorriu, sentindo o cheiro do pó de farinha que emanava do saco.

    — Por enquanto, é assim. Mas jajá o Carlos vai instalar uma daquelas máquinas a vapor para moer. Já chegou a ver como é? Aquilo é um monstro de metal, parece um bicho pronto para rugir e atacar alguém.

    Elias não pareceu ter o mesmo entusiasmo. Seu rosto, marcado pelo sol, permaneceu sério, e nenhum sorriso o iluminou.

    — Para mim, comida tem que ser feita com mãos humanas, se não perde o gosto, perde a alma. É por isso que vivo aqui na roça e me recuso a trabalhar nessas fábricas barulhentas. Tudo o que eu como vem dessa terra… — Ele fez uma pausa, cuspindo no chão de terra com ceticismo. — Até a sua magia, com todo o respeito, não me parece das mais naturais, mas… 

    Nesse momento, um leve e inesperado sorriso surgiu em seus lábios cansados. — Minha mulher quer muito fazer bolo com farinha de trigo, e não tenho como recusá-la. Ela já até separou os ovos.

    As outras visitas seguiram o mesmo ritmo. Usando magia para fazer as plantas crescerem, Tassi nunca foi boa em lidar com pessoas, mas ultimamente sentia que estava melhorando, ouvindo mais as histórias e menos apenas as demandas. Era um trabalho cansativo, que deixava seus ossos latejando, mas profundamente gratificante. Ver a terra responder ao seu toque era a mais pura forma de magia que conhecia.

    Ao meio-dia, o aroma inconfundível de feijoada – um cheiro pesado de feijão preto, louro e carne gordurosa – a guiou como um fio invisível até o restaurante da Tia Vera. O lugar era um ponto de convergência do mocambo, sempre barulhento e cheio de vida, com o som de talheres batendo em pratos e vozes se sobrepondo em conversas animadas. Tassi pegou a comida se acomodou num canto, num banco de madeira áspero. O feijão preto brilhava, a carne seca se desfazia, as costelinhas suculentas… era um banquete de resistência e sabor.

    Enquanto comia, saboreando a textura cremosa do feijão, ouvindo as conversas ao redor, o assunto recaiu sobre os últimos ataques às fronteiras do quilombo. Dois jovens guerreiros, com vozes carregadas de uma indignação crua, falavam das pessoas que foram mortas por monstros pouco antes do amanhecer.

    — Aposto que foi coisa do governador, é sempre a mesma coisa… não nos deixam em paz! — disse um deles, o punho cerrado sobre a mesa de madeira, fazendo os pratos tremerem.

    Tassi mastigou lentamente um pedaço de couve, sentindo sua textura levemente resistente entre os dentes. As palavras ecoaram nela, mas encontraram um lugar amortecido pela idade e pela experiência. A notícia era grave, sim, mas não a surpreendia. Não a afetava com o desespero deles, que mal conheciam o gosto amargo e constante da guerra. Em vez de pânico, uma tristeza familiar e pesada assentou em seu peito, fria como uma pedra. Ela se lembrou de outros tempos, de quando sua lança era mais leve em suas mãos e o grito de guerra era mais frequente em seus lábios. Lembrou-se de rostos, nomes de irmãs de batalha que não estavam mais ali para sentar à mesa e compartilhar uma feijoada. A perda era uma velha conhecida, uma cicatriz que doía menos com o tempo, mas nunca desaparecia completamente.

    Terminou a refeição em silêncio, e a tristeza foi dissipada com uma sobremesa simples e perfeita: uma bola de sorvete de manga que ela comprou da sorveteria onde seu Jorginho trabalhava. A fruta estava doce e ácida ao mesmo tempo, um frescor que limpou seu paladar do salgado da feijoada e, de certa forma, acalmou seu espírito. Ela notou que o homem por trás do balcão parecia mais feliz ultimamente, cantarolando baixinho, mas não comentou, preferindo se deleitar com a suave textura do sorvete derretendo em sua língua.

    A tarde foi dedicada ao seu outro trabalho: a experimentação. Nos campos-laboratório, como Carlos chamava, uma série de canteiros retos e organizados abrigava suas investigações mais ousadas. Hoje, o foco era o milho. O ar cheirava a terra molhada e esterco.

    Ela havia criado uma mistura peculiar de guano de morcego, de cheiro forte e amoniacal, e estrume de gado, incorporando-a ao solo de um canteiro específico. Com o bracelete da grama firmemente ajustado em seu pulso, ela canalizou seu poder sobre as sementes plantadas na terra. Não era o sussurro gentil da manhã; era um comando focado, um estímulo intenso e controlado. Um suor leve brotou em sua testa com o esforço.

    Os resultados eram, de fato, promissores. Os pés de milho brotaram e cresceram diante de seus olhos, as folhas verdes desenrolando-se e alcançando a altura do joelho em questão de minutos, com um leve ruído de vegetação se expandindo. Ela observou atentamente a cor verde-viva das folhas, a firmeza do caule ao toque. A gema da grama apenas forçava o crescimento; Agora ela tinha de garantir que a planta mantivesse seu valor nutritivo, outra coisa que aprendeu com Carlos, também tinha que manter seu sabor.

    — Kaio, anota aí — ela disse, sem virar-se. — Crescimento acelerado. Cor vibrante. Sem murchidão aparente. Agora só temos que ver quanto tempo isso vai durar. O último ficou assim por dez minutos.

    Ouviu o som da pena do jovem raspando contra o papel. Cada dia que passa a ideia de aprender a ler e escrever soa melhor… Acho que vou ter que ir para a escola também durante a noite, quando a escola estará aberta para adultos..”

    O sol começou a se despedir, pintando o céu com tons de laranja, roxo e um vermelho profundo. Tassi limpou as mãos sujas de terra na roupa, uma fadiga satisfeita pesando em seus membros, misturada à antecipação pelo que estava por vir. O dia de trabalho estava quase no fim, mas um último compromisso a aguardava.

    Com os últimos raios de sol iluminando seu caminho como tochas douradas, Tassi dirigiu-se ao campo de futebol. Hoje não haveria nenhum jogo; o espaço estava silencioso e vazio, exceto por uma única figura. Lá, sob a luz bruxuleante do crepúsculo, uma mulher esguia e séria a aguardava com postura rígida: Nynran.

    A guerreira, de idade próxima à de Tassi, usava um par de sapatos robustos adornados com gemas verdes, gemas do vento, que pareciam capturar e refletir a última luz do dia.

    — Você está atrasada — disse Nynran, seu tom de voz era um desafio claro e frio.

    — Sabe que eu sou Ministra, não sabe? Tenho muitos trabalhos para fazer. Trabalhos esses que impactam diretamente no futuro desse quilombo — respondeu Tassi, parando a alguns metros de distância.

    Tassi usava apenas dois braceletes simples: um continha a gema da terra, opadca e marrom, e outro a gema da grama, com um brilho interior suave. O revólver que ela possuía estava com Carlos; afinal, ela não queria nem pensar em matar sua antiga amiga. Além disso, usar uma arma de fogo em um duelo como esse seria uma espécie de trapaça, uma desonra.

    Visto de longe, parecia haver somente elas duas no campo amplo, mas ambas sentiam uma presença sombria e atenta escondida nas bordas do gramado. Tassi sabia que deveria ser o Sombra.

    Nos bancos de madeira, ao longe, estavam mais duas pessoas, que seriam os juízes: Carlos e Quixotina. Observando as duas guerreiras se prepararem, eles conversavam em vozes baixas que carregavam na brisa.

    — Pelo visto você não é a única que ama duelos, Quixotina — comentou Carlos, um sorriso maroto no rosto.

    Quixotina franziu o nariz e cruzou os braços, ficando visivelmente irritada.

    — Humf, pelo menos eu ganho os meus duelos! — Quixotina disse isso bem alto, a ponto de sua voz ecoar clara pelo campo e fazer Tassi revirar os olhos.

    “Até de longe aquela peste consegue ser um incômodo.”

    Nyran olhou na direção dos dois na arquibancada, seu rosto uma máscara de desdém.

    — Pelo visto fez amiguinhos. Eles parecem bem… fracos. Mas o que aquela branquela falou… Não vai me dizer que perdeu para ela?

    Tassi não se deixou irritar. Respirou fundo. Afinal, ela havia aprendido muito bem com a própria Quixotina que aparências enganam.

    — Eles serão os juízes — respondeu Tassi, com calma. — E não se preocupe, serão imparciais. Pode confiar.

    Obrigado por lerem mais este capítulo!

    Quem puder dar uma força extra: estou publicando a versão em inglês no Royal Road. Quem puder visitar a página e ler alguns capítulos para treinar o inglês, e deixar um comentário rápido ou apenas avaliar a história, ajuda demais a alavancar a história lá fora.

    Link: Beyond Chains

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