Índice de Capítulo

    O cheiro gostoso de feijão enchia a casa pequena. Carlinha comia devagar, ouvindo a conversa animada dos seus pais. O som da colher de pau batendo na panela ainda ecoava na cozinha.

    — Jorginho, é a chance perfeita! — disse Fernanda, os olhos brilhando. — A sorveteria é num cantinho bom, perto da praça. Com esse seu dom  das gemas gelo e ferro, você pode inventar sabores que ninguém nunca viu!

    Jorginho balançava a cabeça, um sorriso largo no rosto. — É verdade, amor. Vou fazer isso. Ter um negócio de novo, nosso negócio… vai mudar tudo para nós.

    Fernanda balançou a cabeça.

    — Seu negócio, já eu, vou trabalhar na prefeitura. Nunca mais vamos deixar todos os ovos em uma cesta.

    Carlinha comia seu feijão com arroz, observando umas formigas que carregavam um arroz perto da mesa. Ela não entendia direito o que era um “negócio” ou por que a sorveteria era tão importante. Só sabia que fazia tempo que não via o pai e a mãe tão animados, rindo e fazendo planos. Antes, as conversas eram sussurradas e tristes, cheias de palavras como “fome” e “contas”. Ela preferia assim.

    “É tão bom quando eles estão rindo”, ela pensou, chupando o dedo melado. “A mamãe fica com uma voz de passarinho.”

    Mal tinha terminado de comer, o cansaço do dia inteiro brincando de pega-pega com as outras crianças no quilombo bateu. Suas pálpebras ficaram pesadas.

    Fernanda viu a filha balançando na cadeira, quase caindo de sono. — Nossa, parece que alguém brincou até a última gota de energia — disse, com uma voz macia.

    Ela se levantou, pegou Carlinha no colo — que já estava mole e quentinha — e a carregou até o colchão de palha. O cheiro de palha seca era aconchegante.

    — Boa noite, meu anjinho — sussurrou Fernanda, cobrindo-a com um cobertor remendado.

    Assim que Carlinha fechou os olhos, Fernanda pegou a mão de Jorginho com um sorriso esperto. — Agora é nossa vez de brincar.

    Ela o puxou para o outro cômodo, nem se importando com os pratos sujos na mesa. Tinham coisas mais importantes para fazer.

    O sol da manhã entrou pela fresta da porta, e Carlinha foi acordada pelos beijos suaves da mãe no rosto.

    — Bom dia, princesa! Hoje é um dia especial, hein? Hora de acordar para a escola!

    Ela esfregou os olhos com os punhos, sentando na cama. — Tá bom, mãe… — resmungou, com uma voz cheia de sono.

    O café da manhã foi rápido: pão com melado doce e um chá de ervas que aqueceu sua barriga. Depois, puseram-se a caminho. Carlinha não fazia ideia do que era uma “escola”. Mas a Dulcinéia, sua melhor amiga, tinha dito que ia estar lá. E isso era suficiente.

    “Será que a gente vai poder brincar de pega pega? Ou desenhar no chão com graveto?”, ela imaginou, segurando a mão da mãe. Mas uma pontadinha de saudade apertou seu coração. “Queria que o Pedro e a Ana, lá de Areia Branca, pudessem vir também… Será que eles se lembram de mim?”

    A escola era um prédio diferente de todos os outros, feito de tijolos vermelhos e com um cheiro forte de cal. Parecia nova e importante.

    — Tudo bem, filha? — perguntou Fernanda, ajoelhando-se diante dela. — Vai ser ótimo. Aprende direitinho, ouve a professora e brinca bastante no recreio. A mamãe vem te buscar depois.

    Um friozinho dançou na barriga de Carlinha, mas sumiu no instante em que ouviu um grito familiar.

    — Carla!

    Era Dulcinéia, correndo com seus vestido colorido balançando e os cabelos loiros esvoaçando. Ela agarrou a mão de Carlinha. — Vem! Eu mostro a nossa sala! Tem um desenho gigante na parede!

    Agora sim, tudo parecia certo.

    Só que o primeiro dia foi… chato. Muito chato. Ela tinha que ficar sentada numa carteira dura, ouvindo adultos falarem de números e letras que não faziam sentido. “Por que eu preciso saber isso se eu já sei contar até dez?”, ela pensou, bocejando e desenhando bichinhos na margem do caderno.

    A única parte boa era quando a mãe da Dulcinéia dava aula. Ela ensiva a ler com histórias que contavam histórias sobre bichos da floresta e plantas que curavam. Aquilo sim era legal!

    O grande alívio veio no recreio. O som do sino ecoou pelo pátio e todas as crianças saíram correndo para o sol. A merenda era uma fatia de bolo de fubá, doce e fofinho. Carlinha e Dulcinéia brincaram de pega-pega até ficarem sem fôlego, suas risadas enchendo o ar.

    ***

    Alguns dias depois, no laboratório da Papisa, dentro da Cidade Sagrada de Santa Maria.

    Antes de iniciar o delicado procedimento, Paula preparou o sujeito. Colocou o rato em um recipiente de vidro e, com uma pinça, introduziu uma brasa sobre uma pequena porção de ópio resinoso. Um cheiro adocicado e pesado começou a encher o espaço. Em segundos, os movimentos ansiosos do animal deram lugar a uma sonolência profunda, e ele jaziu imóvel, pronto para o seu batismo de regeneração. Era um método muito mais eficaz do que a concussão ou o álcool, permitindo que o corpo permanecesse relaxado e intacto para seus estudos.

    Um cheiro agudo de álcool e ervas medicinais impregnava o ar. Paula, com as mãos firmes, dissecava a perna do rato branco anestesiado. Então, um brilho suave emanou de suas mãos, e a gema da alteração em seu peito cintilou. A perna do animal começou a se regenerar, os ossos, músculos e vasos se tecendo num espetáculo de luz. 

    Usando a perna que curtou fora, ela tentou, meticulosamente, dar forma a um segundo rato, um gêmeo embrionário.

    Quando a luz cessou, dois ratos idênticos jaziam na mesa. Um respirava, o coração batendo. O outro, perfeitamente formado, permanecia imóvel, um corpo vazio.

    — Mais um fracasso — ela murmurou, a frustração tingindo sua voz. — Consigo recriar a matéria viva, a carne, os ossos… mas não consigo acender a faísca. O corpo está vivo, as funções vitais estão lá… mas é como uma casa linda e vazia. Será que a peça que falta é a alma? 

    Ela anotou os resultados com uma caneta de pena, o som do raspagem era o único ruído no silêncio pesado.

    “Se eu tivesse um corpo humano para estudar… a complexidade seria maior, mas as respostas poderiam estar lá”, ela pensou, olhando para os livros sagrados abertos em sua mesa. “Mas recriar um corpo humano exigiria uma quantidade de mana absurda… e um erro seria catastrófico. Será que Carlos, com sua mente peculiar, teria alguma ideia do que falta? Vale o risco. Só espero que ele não peça outro feito impossível em troca.”

    Enquanto organizava suas anotações, um cardeal bateu à porta.

    — Vossa Santidade! Cartas da sede da igreja!

    Paula abriu a porta rapidamente e quase arrancou os envelopes das mãos do homem.

    “O único benefício real de ser uma autoridade eclesiástica”, ela refletiu, quebrando o selo de cera. “Ter acesso aos navios impulsados por gemas do vento. A comunicação com o outro lado do mundo, que para outros levaria meses, para mim leva semanas. Conhecimento é poder, e o poder precisa ser rápido.”

    Ela leu a primeira carta e um sorriso vitorioso estampou em seu rosto. — Ha! Sabia que aceitariam a proposta! — disse para as paredes silenciosas do laboratório. — Carlos vai ficar eufórico com essa notícia. Os minérios vão demorar mais um mês para chegar, mas já posso cobrar minha recompensa. Antibióticos! Se eu dominar sua fabricação, será visto como mais um milagre direto de minhas mãos. Não importa quão complexos sejam, eu vou descobrir como fazê-los!

    A euforia, no entanto, durou pouco. A segunda carta a deixou com o rosto tenso. Falava sobre o envio de “ajudantes” da sede para administrar a crescente Cidade Sagrada.

    “Esse maldito Papa Henrique”, ela pensou, os dedos apertando o papel até amassá-lo. “Mesmo a quilômetros de distância, ele insiste em me infernizar. Claro que a sugestão de mandar espiões para me vigiar partiu dele. Agora vou ter que gastar energia escondendo o laboratório e os tomos mais… controversos. Eles vão descobrir eventualmente, mas até lá, preciso consolidar meu poder.”

    Ela saiu do laboratório e foi para seu escritório, jogando as cartas com desdém sobre a mesa de carvalho maciço. “Melhor focar no que posso controlar”, decidiu, pegando uma folha de pergaminho nova. “Vou cobrar meu pagamento adiantado de Carlos.”

    Mal havia molhado a pena no tinteiro, quando o cardeal bateu novamente.

    — Vossa Santidade! Outra carta, desta vez do quilombo!

    “Finalmente”, ela pensou, pegando o envelope com expectativa. “Meu resumo mensal de conhecimento.”

    Nas cartas do quilombo, havia os conhecimentos que Carlos lhe passará e não só isso, como os relatórios de Antônio, que no momento interessavam ela e muito.

    Lendo a carta, era o mesmo de sempre.

    Carlos planejava construir uma estrada até o ponto de encontro, construía mais uma fábrica, mais lojas, escolas, aumentava salários.

    “Construções, construções, construções… Ele planeja construir uma nova capital nesse novo mundo? Mas mais importante que isso, ele já começou a produzir aço! Só as taxas disso vão me deixar rico.”

    Depois de ler o relatório ela foi para as cartas de Carlos que se aprofundar mais ainda em biologia e corpo humano. Mas foi a pergunta no final que a fez parar. Lentamente, ela se sentou, colocando a carta sobre a mesa.

    “Então não é um dom único? Qualquer camponês com um punhado de terra pode alcançar a mesma iluminação que eu, se tiver o conhecimento certo? Não, é impossível. Eu fui a primeira! Eu sou a pioneira! Carlos só quer minha confirmação, porque reconhece minha autoridade no assunto. E ninguém, ninguém, tem a velocidade de aprendizado que a graça divina me concedeu. Esse dom ainda é meu, e só meu.”

    Com uma determinação renovada, ela puxou o pergaminho e começou a escrever sua resposta para Carlos. Mas parou no meio do caminho.

    Papisa deixou a pena de metal repousar sobre o tinteiro, o som metálico ecoando suavemente na quietude. Seus dedos, manchados de tina, percorreram a textura áspera do papel timbrado que havia acabado de preencher – a carta para a Quilombo da Jabuticaba.

    Ela recostou-se na cadeira de couro, que rangeu sob seu peso, e ergueu a xícara de chá de louça. O líquido morno e amargo, feito com ervas do sertão, escorreu pela sua garganta enquanto seus olhos, cansados, fitavam a parede onde um crucifixo de ébano pendia.

    “Com o pessoal da sede da igreja vindo… a teoria do Carlos sobre a gema… e ainda preciso cobrar minha recompensa por tudo que fiz até aqui”, sussurrou ela para si mesmo, a voz um pouco rouca.

    O silêncio que se seguiu foi quebrado pelo canto distante de um sabiá lá fora. Ela colocou a xícara de volta no pires com um tilintar suave, o som precisamente no ritmo de seu pensamento que se acelerava.

    — Talvez… talvez seja a hora de agir com mais ousadia — murmurou, levantando-se e caminhando até a janela semiaberta.

    Virou-se de costas para a janela, encarando a porta de seu escritório como se pudesse ver através dela.

    — Ficar escondida atrás de cartas e meias-palavras já deu o que tinha que dar — disse, sua voz ganhando uma firmeza nova. — É hora de tornar nossos laços públicos. De encarar as consequências de frente.

    Um sorriso lento, carregado de cálculo, surgiu em seus lábios

    — E já sei exatamente como fazer. Se eu conseguir converter o quilombo inteiro… — sua voz baixou para um tom quase conspiratório, os olhos fixos em um ponto distante no horizonte, para além das paredes. — …quem poderá criticar-me? Pelo contrário. Poderei clamar, perante a Igreja e as autoridades, que fui o instrumento divino que acalmou os temíveis ‘bárbaros’ quilombolas. Que os domesticou para a fé. Seria… uma vitória inquestionável.

    Ela caminhou de volta até a mesa. Sua mão, agora firme, pegou uma campainha de prata.

    — Sim — disse ela, sozinho no cômodo, mas com a convicção de quem fala para uma plateia. — É hora de uma conversa cara a cara com o Carlos. Precisamos falar sobre o futuro. O futuro deles… e o meu.

    O tilintar claro da campainha ecoou pelo corredor, chamando seu acólito. O plano estava em movimento.

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