Capítulo 72 - Caçador
Na capital da Capitania de Pernambuco, dentro do imponente Palácio das Duas Torres, a atmosfera era pesada e carregada do mormaço do fim de tarde. O ar salgado da costa se infiltrava pelas janelas abertas, misturando-se ao cheiro de cera de abelha que polia os pesados móveis de jacarandá.
— Por todos os santos, isso é inaceitável! — gritou o governador Bento Vidal, um homem de feições jovens marcadas pela frustração, passando uma mão impaciente por seus longos cabelos negros.
À sua frente, sentado confortavelmente na poltrona de couro, estava o capitão-mor Caetano Velho. Um homem alto e de porte robusto, cuja barba longa e roupas práticas de bandeirante contrastavam com a refinada indumentária do governador. Sobre a mesa que os separava, mapas e cartas com selos quebrados testemunhavam conversas urgentes.
Caetano pegou o pesado copo de cristal com suco de caju, a bebida âmbar reluzindo à luz do candelabro. Tomou um gole lento, sem pressa, antes de falar, sua voz um baixo profundo que ecoava na sala.
— Pelo visto, esses pretos do Quilombo da Jabuticaba descobriram uma forma de fabricar mais armas mágicas. É uma pena que nossa espiã, Nyran, só tenha localizado o mocambo de origem no último dia antes de enviar a carta. Se tivéssemos mais tempo…
Bento Vidal interrompeu, erguendo as mãos.
— E o que pretende fazer? Um ataque direto agora?
— Acalme-se, Governador — Caetano balançou a cabeça, colocando o copo de volta sobre a mesa com um clique suave. — Minha estratégia requer paciência. Iria esperar mais um mês, dar brecha para nossos espiões nos enviarem mais informações. As que Nyran conseguirá são cruciais. Só a forma como estão produzindo aço já é um segredo de valor incalculável. Logo, ela nos trará mais. Por isso, planejo apenas um pequeno ataque, uma investida para medir suas defesas e, quem sabe, causar algum estrago.
O governador suspirou, massageando as têmporas. O zumbido insistente de um mosquito perto de seu ouvido parecia ecoar sua própria irritação.
— Está bem… acho um bom plano, Capitão-mor. Um ataque contido pode ser a chave.
Caetano tomou outro gole, seus olhos fixos em Bento por cima da borda do copo. Ele não parecia totalmente convencido.
— Há, porém, uma questão que me intriga profundamente… — começou, sua voz agora mais lenta e ponderada. — De onde, exatamente, eles estão conseguindo tantas barras de ferro? Governador, por acaso algum senhor de engenho, ávido por lucro, estaria vendendo ferro ao quilombo?
Bento Vidal estremeceu, sua cadeira rangendo quando ele se recostou bruscamente.
— Não, Caetano, eu… eu não acredito que algum dos nossos faria isso. Porém…
O bandeirante apoiou as mãos sobre o castão de sua bengala, onde uma gema pulsava com uma luz suave e interior. Seus dedos se apertaram em torno do cabo.
— Diga — insistiu, sua voz suave, mas inflexível. — Toda informação é essencial. Tudo indica que o inimigo está mais bem armado e organizado do que antecipamos. Não é à toa, com todo respeito, que você tenha perdido feio para eles.
O governador corou, sentindo o peso daquela observação. Ele desviou o olhar, encarando a parede onde um retrato de um antepassado parecia julgá-lo.
— Bom… há boatos — ele começou, baixando a voz —, boatos sobre a Cidade Sagrada. Dizem que lá se pode vender qualquer coisa facilmente, assim como comprar produtos de qualidade duvidosa. No começo, ignorei. A Igreja manteve-se neutra durante a guerra contra os holandeses, na verdade, lucrou com ela. Eu pensei… bem, pensei por um segundo que a Papisa poderia estar comercializando com o quilombo. Mas soa como uma loucura agora que digo em voz alta.
Em vez de ridicularizá-lo, Caetano Velho ficou em silêncio por um momento, seus olhos perdidos na gema de sua bengala. Então, com um grunhido de esforço, ele se levantou, apoiando-se firmemente na bengala.
— Talvez não seja uma loucura, Governador. Talvez você não esteja tão errado assim — ele disse, começando a caminhar lentamente pela sala, o som da bengada ecoando no assoalho de madeira. — É dito que a Papisa tem uma certa… compaixão pelos negros. Mas será que ela se compadeceria a ponto de cometer traição, comercializando com eles?
Ele parou de frente para a janela, observando o movimento no pátio do palácio.
— Por falar nisso, Nyran mencionou, de passagem, que havia uma igreja dentro do mocambo. Assumi que fosse uma simples capela de negros, mas agora… talvez seja uma igreja dela. Precisamos investigar isso mais a fundo. E caso seja verdade, teremos de denunciá-la à Cidade Sagrada Alba. A Igreja oficial jamais ficaria ao lado de um reino negro de descrentes.
Caetano se virou, e pela primeira vez, Bento viu um brilho diferente em seus olhos: não de preocupação, mas de excitação predatória.
— Isso deve ser uma iniciativa pessoal da Papisa — continuou Caetano, um sorriso quase imperceptível tocando seus lábios sob a barba. — Ela realmente é uma pessoa singular, não é? Mas que interessante… Finalmente, depois de tantos anos, parece que encontrei inimigos à minha altura!
Ele voltou à mesa e bateu a palma da mão sobre a superfície de madeira, fazendo os copos tremerem.
— Então é isso, Governador! Vamos aguardar mais informações de Nyran e nos prepararmos meticulosamente para nosso ataque. O jogo, afinal, acaba de ficar muito mais emocionante.
O sorriso quase imperceptível de Caetano se ampliou, formando uma expressão carregada de perigosa antecipação.
— Sim, inimigos à minha altura — ele repetiu, como se saboreasse as palavras. — O que nos leva ao próximo passo. Governador, ordene que dupliquem a vigilância nos portos e estradas que levam à Cidade Sagrada. Discretamente. Não podemos alertar a Papisa.
Bento Vidal assentiu, ainda um pouco atordoado pela guinada que a conversa tomara.
— E os espiões no quilombo? Mandamos outra mensagem para Nyran?
— Já é tarde para isso. O mensageiro que trouxe a carta só saberá o ponto de contato de onde a recolheu. Nyran seguirá o protocolo e enviará novas informações quando for seguro. Enquanto isso… — Caetano caminhou até a porta e a abriu, dirigindo-se ao guarda do lado de fora. — Chamem o Tenente Álvaro. Digam que é para uma missão de reconhecimento, não de confronto. Ele deve vir equipado para uma viagem rápida.
O governador arregalou os olhos.
— Você vai mandar alguém para a Cidade Sagrada agora?
— Uma investida diplomática, nada mais — respondeu Caetano, voltando para a mesa com um brilho nos olhos. — Álvaro é filho de um comerciante de Lisboa, sabe falar de lucros e trocas. Ele tentará comprar uma barra de aço dos ferreiros da cidade. Se a origem for a mesma do quilombo… bem, teremos nossa confirmação sem precisarmos levantar uma espada sequer. Pelo menos, não ainda.
O aroma adocicado do suco de caju ainda pairava no ar, mas do outro lado da pesada porta de carvalho, outro perfume, discreto e terroso, misturava-se ao cheiro da cera. Era o odor de sabão de cinzas e tecido suado que impregnava as roupas de Marcia, a escrava do governador. Com o coração batendo como um tambor aprisionado no peito, ela se mantinha colada à madeira, uma das faces quase tocando a superfície áspera, enquanto um olho vigiava o corredor vazio e silencioso.
“Não… Eles planejam mais ataques, e descobriram a conexão com a Cidade Sagrada!” — o pensamento ecoou em sua mente, um frio percorrendo sua espinha. A voz rouca do bandeirante era clara como o sino da igreja. — “Pena que não consegui ouvir o nome da espiã…”
Dentro da sala, Caetano, ainda de pé perto da mesa enquanto discorria sobre seus planos, parou abruptamente no meio de uma frase. Seu olhar, sempre atento, captou um movimento fugaz no limite de sua visão periférica: duas sombras indistintas que cortavam a faixa de luz sob a porta. Silencioso como uma onça, ele deu dois passos rápidos e agarrou a maçaneta de ferro, puxando a porta de uma vez.
O corredor estava vazio. Apenas o vento quente que soprava de uma janela aberta no final do corretor balançava a chama de uma tocha, fazendo as sombras dançarem nas paredes de pedra.
— Capitão-Mor? — a voz de Bento Vidal veio de trás, carregada de curiosidade e um fio de preocupação. — Esqueceu de algo?
Caetano fitou o vazio por um segundo mais, seus ouvidos atentos captando apenas o silêncio. Ele então se virou, fechando a porta com um baque suave.
— Não foi nada, não — respondeu, sua voz retornando à calma habitual. — Apenas o vento brincando com as sombras.
Sentou-se novamente no banco, que gemeu sob seu peso. Enquanto o governador retomava a conversa sobre logística, a mente de Caetano já estava longe.
“Cometi um erro crasso,” — pensou, os dedos tamborilando levemente na gema de sua bengala. — “Deixei-me levar pela empolgação do jogo e me esqueci de como este lugar está infestado de ratos de orelhas grandes… Mas não faz mal.” Seus olhos se estreitaram, calculando. “Mesmo que tenham ouvido o nome de Nyran, ela é uma das minhas melhores discípulas. Sabe se virar sozinha melhor do que a maioria dos meus homens. E quanto ao resto… bem, os quilombolas já devem estar preparados para outro ataque de ‘monstros’. Mas o que podem fazer contra uma investida cirúrgica? E a conexão com a igreja… não há como esconderem um fio dessas por muito tempo.”
Ele ergueu o copo de suco para os lábios, um sorriso quase imperceptível sob a barba.
“Apesar de tudo, na próxima, serei mais cauteloso com minhas palavras. A caça, afinal, ficou mais interessante.”

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.