Capítulo 83 - Maquinações
O ar no escritório do Palácio das Duas Torres era pesado e morno, impregnado pelo cheiro de cera de abelha usada para polir a pesada mesa de jacarandá e pela umidade mofada que subia das pedras antigas. Governador Bento Vidal, com a testa brilhante de suor, ouvia o relatório do Tenente Álvaro com uma atenção que beirava a angústia. Do outro lado da mesa, o Capitão-Mor Caetano Velho aparava sua longa cabeleira negra com gestos lentos, enquanto os dedos finos giravam um copo de cristal cheio de suco de laranja, cujo aroma cítrico e doce cortava momentaneamente a atmosfera carregada.
Quando o tenente terminou e saiu, fechando a pesada porta de madeira com um baque surdo, Caetano colocou o copo sobre a mesa com um clique suave. O silêncio que se seguiu foi preenchido pelo zumbido distante de um inseto e pelo ruído da pena do governador, que tamborilava nervosamente sobre um documento.
— Pelo visto, a Papisa escolheu um lado — comentou Caetano, sua voz um fio sedoso carregado de ironia. — E não a culpo. Parece ser um lado diabolicamente mais lucrativo.
Bento Vidal suspirou, esfregando os olhos. — É um desastre, Caetano. Um desastre completo.
— Sugiro, Governador, que envie uma carta urgente a Lisboa — continuou o capitão-mor, ignorando o desânimo do outro. — Informe que temos negros manufaturando produtos dentro da colônia. Se eles já matam brancos que tentam refinar um simples ferro, pode imaginar o que fariam com… concorrentes indesejados de outra cor? — Ele fez uma pausa dramática, olhando para a porta como se esperasse um espectro. — E deve mandar outra carta à sede da Igreja. Duvido muito que Sua Santidade em Roma aprecie que uma filial local esteja a distorcer tanto as regras do jogo.
O governador balançou a cabeça, uma expressão de profunda derrota em seu rosto. — Esqueça as cartas, Caetano. Já é tarde para isso.
Caetano ergueu uma sobrancelha, surpreso. — Como assim?
— Recebi um correio de Lisboa há três dias — explicou Bento, abrindo uma gaveta e retirando uma carta com o selo real. — Eles sabem. E pior, aprovaram. A Coroa portuguesa está vendendo minério bruto de Gemas Gerais diretamente para a Cidade Sagrada. A tal Papisa vai usar esses minérios, supostamente através de “milagres”, para transformá-los em aço. E futuramente, diz a lenda, até em ouro.
— Portugal devia favores imensos à Igreja — interrompeu o governador, esmagando a carta real com o punho. — Foi forçado a aceitar o acordo. Estamos sozinhos nessa, Caetano.
O capitão-mor não pôde conter uma risada baixa e rouca. — Ha! Pelo visto, ela está sempre dez passos à nossa frente. Então, porque a cara tão comprida, Bento? Eles não sabem, a Papisa mente sobre a origem divina do seu aço, e nós podemos provar a verdadeira fonte…
O governador pegou uma pena e um tinteiro, e uns papéis e começou a escrever a carta no mesmo instante.
Caetano Velho se levantou, apoiando-se levemente na bengala de ébano que estava encostada na cadeira. Seus olhos escuros percorreram a sala, parando na janela aberta que dava para o movimentado pátio do palácio.
— Calma, Governador. Deixe as cartas para depois. Temos um problema mais urgente para resolver. O que fazer com relação ao Quilombo… ou melhor, com relação ao Mocambo do Tatu.
Bento Vidal largou a pena com um suspiro de cansaço. — Se a informação da sua espiã está correta, é lá que estão forjando essas armas e mercadorias.
Caetano tomou um gole lento de seu suco, saboreando a doçura antes de falar. — Agora conhecemos melhor o nosso inimigo. E notei uma fraqueza gritante. Segundo a Nyran, a produção de comida e a criação dessas máquinas geniais estão nas mãos de apenas duas pessoas: a Tassi, que faz a terra dar frutos, e um chefe chamado Carlos, o cérebro por trás de tudo.
Ele se virou, seu olhar ficando frio e calculista. — Vamos orquestrar um ataque em larga escala. No meio do caos, meus outros dois espiões, que já estão infiltrados no exército deles e armados, vão “desaparecer” da linha de frente e eliminar os alvos. Carlos é a prioridade. Pode ser fraco fisicamente, mas sem seu gênio, o quilombo é apenas um amontoado de casebres.
O governador pareceu reviver por um instante, um sorriso tenso surgindo em seus lábios. — Me parece um plano excelente! Finalmente, uma ação direta!
Nesse momento, batidas firmes na porta interromperam a conversa. Um guarda entrou, seu elmo embaçado pelo calor externo.
— Governador, chegou uma correspondência urgente. Da Papisa.
Bento Vidal empalideceu. Ele se levantou tão rápido que sua cadeira raspou no chão de pedra. Sem uma palavra, arrancou a carta das mãos do soldado, que, confuso, se retirou rapidamente.
Com mãos trêmulas, o governador quebrou o selo de cera púrpura e leu. A cada linha, seu rosto ficava mais pálido, mais sombrio, como se uma nuvem pesada tivesse se instalado sobre seus ombros.
— Ela… ela… — a voz de Bento falhou. Ele engoliu seco. — A Papisa declara oficialmente que está em parceria com o quilombo para a produção de aço e o comércio de produtos da mata. E que… que Ganga Zala se converteu ao cristianismo.
Caetano, que observava tudo com interesse renovado, deu uma risada seca. — Não acredito!
— Foi ela mesma quem o batizou! — continuou Bento, sua voz subindo para um tom de desespero. — Ele largou o harém, adotou uma única esposa e agora crê no único Deus. O “Rei Negro” Zala… quer um acordo de paz.
O bandeirante soltou outra gargalhada, ainda mais sonora. — Magnífico! É uma jogada de mestre! Ela não está dez, está vinte passos à nossa frente!
— Por que está rindo? — gritou Bento Vidal, furioso, atirando a carta sobre a mesa. — Não conseguirei mais escravos para os senhores de engenho! Pior, perdi os que eles já haviam cedido para a batalha! Eles estão à beira de um motim, Caetano!
Caetano se aproximou da janela, observando o movimento lá fora. — Apenas precisamos fazer uns… reajustes. O Tenente Álvaro nos falou sobre a nova rota comercial até o quilombo, cheia de comerciantes otários e caravanas pesadas. É um alvo suculento.
— Atacar uma rota da Igreja? Em terras da Igreja? Enquanto negociações de paz estão em andamento? — O governador parecia estar tendo um acesso.
Sem se virar, Caetano respondeu com voz suave e venenosa: — E quem disse que nós vamos atacá-la? Em tempos de crise, a bandidagem floresce. E que dinheiro mais fácil do que saquear comerciantes ricos? Não precisamos sujar nossas mãos, apenas… semear as notícias certas nos lugares errados. E talvez, quem sabe, alguns dos nossos homens, descontentes e sem pagamento, possam ser “forçados” a recorrer ao crime para sobreviver. Entende a ideia?
Bento Vidal arfou, mas o raciocínio começou a acalmar seus nervos. Ele se deixou cair pesadamente na cadeira. — E… e quanto ao ataque ao quilombo? O seu plano grandioso?
Caetano voltou para a cadeira à frente do governador e sentou-se com um grunhido suave. — Um ataque de larga escala agora é politicamente inviável. Mas… um ataque de monstros… isso é outra história. Lembra-se daquele meu capanga que eles mataram? A morte tem um jeito engraçado de revelar a verdadeira forma de um homem. — Ele encolheu os ombros.
— Mas isso é irrelevante. Como vão provar que os monstros eram meus homens? Podem até tentar fazer uma conexão comigo, e daí? Basta você, meu caro Governador, lavar as mãos como Pôncio Pilatos. Diga que agi por conta própria, sem o seu consentimento. E no meio do caos do ataque bestial… — seus olhos brilharam com uma luz sinistra — …matamos Carlos e Tassi.
O governador suspirou profundamente, a resistência se esvaindo de seu corpo. Ele abriu uma gaveta, tirou uma garrafa de cachaça e um copo baixo. Encheu-o até a borda e tomou um gole longo, estremecendo enquanto o líquido ardido descia pela garganta.
“Esse Caetano Velho”, pensou Bento, observando a serenidade quase sobrenatural no rosto do bandeirante. “Está disposto a pôr sua própria reputação e nome na fogueira, tudo em troca de uma vitória? Ele fala de sua própria culpa e sacrifício como se estivesse discutindo a peça de um relógio, sem colocar um pingo de sentimento ou amor-próprio no meio. Que homem assustador.”
— E as conversas de paz? — perguntou, sua voz agora rouca e resignada. — O que propomos?
Caetano tomou o último gole de seu suco, colocando o copo vazio sobre a mesa com um ruído definitivo. — Proponha um acordo. Um acordo que soe razoável aos ouvidos de Lisboa e da Igreja, mas que seja absolutamente inaceitável para Ganga Zala.
Bento franziu a testa. — Como assim?
— Digamos… — Caetano inclinou-se para a frente, baixando a voz para um sussurro conspiratório — …que eles terão que cessar todos os ataques, entregar todas as armas, desocupar a serra e se mudar para um local que nós escolhermos, servindo lealmente à Coroa Portuguesa. Além disso, deverão pagar uma indenização por cada escravo que “roubaram” e, pasme, nos ajudar a capturar qualquer futuro fugitivo. Qualquer escravo que buscar refúgio no quilombo após o acordo deverá ser devolvido imediatamente.
Bento Vidal olhou para Caetano, compreendendo lentamente. Um sorriso amargo e admirativo surgiu em seu rosto.
— Se eles recusarem — continuou Caetano, retirando um fio de cabelo imaginário de sua manga —, podemos gritar aos quatro ventos que recusaram a paz e a civilização. A justificativa para a guerra estará dada. E se, por um milagre dos que a Papisa tanto gosta, eles aceitarem… — Ele abriu as mãos em um gesto de oferta. — …nós ganhamos sem disparar uma única magia. Desarmamos, controlamos e humilhamos o maior quilombo do Brasil. De qualquer forma, Governador, sairemos vitoriosos.

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