Capítulo 80 - Apartamentos
Carlos levava a Papisa e Francisco junto de seus guardas para conhecer seu mocambo. Tanto Paula quanto Francisco olhavam ao redor com olhos arregalados, absorvendo cada detalhe: as calçadas arborizadas, os carrinhos de mão eficientes, as lojas limpas e organizadas, as crianças saindo de um prédio escolar.
— Sabe, acho essa ideia da escola pública muito interessante — comentou a Papisa, observando as crianças carregando mochilas e livros. — Na verdade, é um complemento interessante ao nosso sistema de escolas paroquiais. Talvez possamos adotar algumas dessas práticas afinal, precisamos de mais pessoas letradas não apenas para os ofícios divinos, mas também para ajudar em meus experimentos.
— Só não sei como conseguiu tantos livros para todas essas crianças. Em nossas escolas, os alunos ainda copiam tudo à mão de um único exemplar, ou usamos livros copiados por monges. O que os torna bem caros
Francisco, por sua vez, balançou a cabeça em desaprovação.
— Com todo respeito, Vossa Santidade, as escolas da Igreja já formam bons escribas e clérigos. Ensinar leitura e contas para todos… é muito mais difícil fazer um bom negócio com uma pessoa estudiosa demais.
— No seu caso, quer dizer, é muito mais difícil enganar uma pessoa bem estudada — a papisa corrigiu, com um sorriso malicioso. — Além disso, Francisco, um povo mais instruído pode gerar mais riqueza para toda a comunidade… inclusive para os comerciantes astutos.
Carlos, ouvindo a Papisa normalmente tão séria e reservada fazer uma piada, não pôde conter uma risada genuína. Mas logo retomou a seriedade e se virou para eles, um sorriso nos lábios.
— Temos tantos livros assim graças à prensa móvel — explicou ele. — Conseguimos imprimir dezenas de livros idênticos em poucas horas. E em breve será ainda mais eficiente — acrescentou, com um brilho nos olhos. — Vou adaptar uma das máquinas a vapor para mover um moinho especial. Isso nos permitirá produzir papel em larga escala, barateando ainda mais os custos.
A Papisa arregalou os olhos, claramente impressionada.
— Produzir papel em larga escala? — repetiu ela, quase sem fôlego. — Isso revolucionaria não apenas a educação, mas toda a administração da Igreja! Atualmente dependemos de pergaminhos ou do papel importado de Portugal, que chega aqui a preços exorbitantes.
Francisco, sempre o comerciante, não perdeu a oportunidade.
— E esse papel… estaria disponível para venda? — perguntou, sua mente já calculando os lucros potenciais. — Imagine poder fornecer papel para todas as cidades sagradas…
— Ela então se voltou para Carlos, seu tom ficando mais sério. — Quando essa produção de papel começar, gostaria de discutir um acordo. A Igreja poderia ser sua primeira e maior cliente.
Carlos parou bruscamente, virando-se para enfrentá-los. A luz do fim de tarde dourava seus contornos enquanto ele estendia o braço em um gesto amplo e teatral.
— Não se preocupem — disse ele, seu sorriso abrangendo tanto a Papisa quanto Francisco —, vocês serão sempre meus primeiros clientes. O Quilombo deve muito à Igreja… e ao seu talento para o comércio, Francisco. — Seu olhar tornou-se mais introspectivo. — Sem o apoio de vocês, nada disso seria possível.
Ele fez uma pausa, deixando as palavras pairaram no ar carregado de poeira e promessas, antes de clarear o tom.
— Mas deixemos as discussões comerciais para amanhã — continuou, com um gesto despreocupado da mão. — Imagino que estejam exaustos após a longa reunião e esta caminhada. Preparei acomodações para vocês aqui.
Sua mão descreveu um arco no ar, apontando para o imponente complexo de apartamentos que se erguia diante deles. A estrutura de concreto, ainda impregnada do odor adocicado da madeira nova e do cimento fresco, destacava-se contra o céu que escurecia. Suas janelas vazias pareciam olhos cegos observando a chegada dos ilustres visitantes.
— É o primeiro edifício deste tipo no Quilombo — explicou Carlos, um misto de orgulho e cansaço em sua voz. — As unidades ainda estão vazias; não tive tempo de organizar uma cerimônia de abertura. — Ele lançou um olhar significativo na direção de onde haviam vindo. — Os preparativos para nossa reunião e os… incidentes recentes consumiram todo meu tempo.
O prédio permanecia em silêncio solene, um testemunho mudo do progresso que teimosamente avançava, desafiando todos os obstáculos que a colônia lhe impunha. Cada andar vazio, cada corredor não pisado, representava não apenas uma promessa de futuro, mas uma vitória silenciosa contra todas as probabilidades.
Carlos guiou o grupo através do pátio arborizado até a entrada principal do edifício de apartamentos. Ao abrir a pesada porta de madeira, revelaram-se um corredor fresco e bem iluminado, com várias portas laterais e uma escada de concreto que levava aos andares superiores.
— O apartamento de Vossa Santidade fica neste corredor — explicou Carlos, conduzindo-os pelo andar térreo.
Ele seguiu pelo corredor até parar diante da terceira porta à direita. Girando uma sólida maçaneta de latão, anunciou:
— Este será o seu apartamento, Vossa Santidade. O senhor Francisco ficará hospedado bem aqui em frente — disse, apontando para a porta diretamente oposta através do corredor. — E os senhores guardas poderão ocupar os apartamentos adjacentes ao de Vossa Santidade, pelos dois lados. Dessa forma, todos estarão próximos, mas com a privacidade necessária.
Francisco, que os havia seguido, esfregou as mãos com interesse ao espiar o interior de seu próprio alojamento através da porta aberta.
Ao abrir a porta do apartamento da Papisa, Carlos revelou um ambiente arejado onde a luz do entardecer entrava por amplas janelas, iluminando pisos de madeira polida e paredes rebocadas.
— Fizemos questão de incluir algumas inovações que creio serão do seu agrado — disse ele, conduzindo-a até um cômodo anexo ao quarto principal. — E aqui, Vossa Santidade, creio que encontrará uma das comodidades mais apreciadas do Mocambo.
Francisco, logo atrás, assobiou baixinho ao observar o espaço.
— Parece mais bem mobiliado que minha própria casa na cidade! — comentou, seus olhos percorrendo cada detalhe com a curiosidade aguçada de um comerciante.
Carlos abriu a porta do banheiro, revelando o ambiente simples mas revolucionário para os padrões da colônia. No centro, erguia-se uma privada de cerâmica vidrada assentada sobre uma base de concreto. Um reservatório de madeira com mecanismo de alavanca simples estava fixado na parede, conectado por tubos de cobre soldados — uma aplicação direta de sua metalurgia do aço.
Ele apontou para o reservatório de madeira acima da privada.
— A água vem de um tanque no telhado, por gravidade. Quando se puxa a alavanca, a água desce com força e leva tudo pelos canos de cobre que levam até as fossas sépticas que construímos atrás do edifício. É muito mais higiênico que as privadas comuns.
Paula observou tudo com os olhos arregalados, tocando a superfície lisa da privada e a alavanca de metal.
Francisco, já calculava o custo-benefício.
— E esse… sistema desse banheiro… — Francisco perguntou, hesitante, seus olhos brilhando com a perspectiva de novos negócios. — É muito caro para instalar? Imagino que os senhores de engenho pagariam fortunas por um conforto desses.
Francisco não era o único interessado, Paula também demonstrou interesse.
— Se os dejetos são levados imediatamente para longe das moradias, isso poderia prevenir incontáveis enfermidades. Febres, disenteria… — Ela olhou diretamente para Carlos, seu interesse transcendendo completamente o comercial. — Carlos, esse saneamento é uma arma contra a morte tão poderosa quanto qualquer antibiótico. Precisamos falar sobre levar isso para a Santa Casa em Santa Maria.
Carlos sorriu, o canto de seus lábios se erguendo levemente enquanto trocava um olhar significativo com o comerciante. A expressão dele transmitia uma confiança tranquila de quem sabia estar à frente de seu tempo.
— Francisco e Paula… — começou ele, em um tom quase cúmplice. — Todo conhecimento tem seu preço, e todo progresso, seu valor. — Fez uma pausa deliberada, deixando a curiosidade do dois crescer. — Amanhã, quando a luz do dia iluminar melhor nossas ideias, podemos sentar e discutir o que seria justo para compartilhar esses… conhecimentos. Mas por hoje podem descansar com calma
A resposta era ao mesmo tempo uma promessa e uma adiação tática. Carlos sabia que manter seus clientes um pouco na expectativa só aumentaria o valor percebido da tecnologia – e sua própria posição de vantagem na negociação que certamente aconteceria no dia seguinte, depois que usassem o banheiro.
— Para o banho — continuou, indicando o chuveiro —, temos um sistema prático. Um dos nossos adeptos da Gema do Fogo aquece o reservatório principal às cinco da tarde e às sete da manhã. Basta girar o registro dourado para a água quente.
— Banho quente e privada com descarga no calor do Nordeste… — comentou Francisco, já examinando a instalação com um sorriso maroto. — Isso sim é um luxo que até os senhores de engenho invejariam!
Já a Papisa não ficou tão interessada nesse banho quente, afinal já estava quente lá fora, na sua mente não havia porque tomar um banho com água quente.
Depois de falar um pouco mais, Carlos saiu e se despediu de seus hóspedes, que foram aos seus respectivos quartos.

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