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    O dia havia sido uma provação para o corpo e o espírito de Papisa Paula. Além das reuniões intermináveis, as longas caminhadas sob um sol implacável a deixavam com os ossos pesados e a pele grudenta de suor e poeira. Uma ansiedade quase infantil por um banho tomava conta dela. A promessa de água corrente era um luxo tão estranho e maravilhoso que ofuscava até a fadiga.

    Mal entrou no quarto, despiu-se das vestes pesadas e encharcadas, aquelas roupas de papas não foram pensadas no clima tropical do Brasil, sentindo o alívio imediato do ar contra a pele. No banheiro, ela encarou o chuveiro de metal com uma curiosidade misturada com apreensão. Carlos explicara sobre as duas torneiras – uma para a água que saía fria da cisterna e outra, miraculosa, que jorrava água aquecida.

    “A noite esfriou, mas o ar ainda está morno… Um banho frio seria o mais sensato…”, pensou, sua frugalidade habitual lutando contra a tentação. “Mas… ele se deu ao trabalho de preparar tudo isto. Seria uma ingratidão não experimentar, não é mesmo? Apenas para entender a sua invenção.”

    A decisão foi tomada. Sua mão girou a torneira marcada com um “Q”, e ela recuou um pouco com o ruído surpreendente dos canos. Um jorro fraco no início, depois uma corrente constante de água morna começou a cair. Paula levou a mão, testando a temperatura. Era… agradável. Mais do que isso, era reconfortante. Ela entrou sob o fluxo e um suspiro profundo e involuntário escapou de seus lábios. A água quentinha escorria por seus cabelos, pelos ombros tensos, lavando para longe o cansaço do dia. Era uma sensação de abraço, de puro prazer físico, muito melhor do que qualquer banho que já tivera.

    Seus olhos percorreram as paredes úmidas do boxe, pousando em alguns frascos de cerâmica e vidro presos em nichos. Em um deles, um desenho simples mostrava uma mulher esfregando o produto nos cabelos. Havia instruções em letras claras.

    “Shampoo… para limpeza capilar. Condicionador… para maciez e brilho…”, ela leu em voz baixa, intrigada.

    A curiosidade superou qualquer hesitação. Ela pegou o frasco de shampoo, verteu um pouco em sua mão – uma substância gelatinosa e perfumada com algo que lembrava ervas e flores – e a aplicou em seus cabelos. Para sua surpresa, uma espuma farta e cremosa surgiu, envolvendo-a num aroma delicioso. O sabonete líquido que veio a seguir era igualmente perfumado, e o condicionador, uma loção sedosa que prometia maravilhas. Aquele banho tornou-se mais do que uma limpeza; foi um ritual de descoberta. Ao sair, envolta em uma toalha macia, sua pele estava limpa e perfumada, e uma estranha leveza tomava conta de seu corpo.

    Na manhã seguinte, ao se olhar no espelho embaçado, Paula não pôde conter um espanto. Seus cabelos, sempre um pouco rebeldes e opacos, pareciam diferentes. Estavam visivelmente mais brilhantes, sedosos ao toque. Ela levou uma mecha ao nariz e inalou profundamente. O cheiro suave e persistente de flores silvestres era inegável.

    “Esse Carlos…”, pensou, um sorriso involuntário surgindo em seus lábios. “Certamente armou uma armadilha para mim…” Cheirou os cabelos novamente, fechando os olhos para saborear a sensação. “Uma armadilha tão deliciosa… Ele vai, sem dúvida, tentar me vender esses produtos a um preço exorbitante. E eu… bem, tenho medo de que eu aceite qualquer preço que ele pedir.”

    Um ronco profundo e inconfundível saiu de sua barriga, quebrando o encanto. Ela se espreguiçou, alongando os músculos ainda relaxados.

    — Carlos disse que teríamos café da manhã em um de seus restaurantes — murmurou para si mesma, vestindo-se com uma de suas túnicas mais simples, mas não menos elegantes.

    Ao sair do quarto, deparou-se com um guarda postado do lado de fora de sua porta. O homem, de semblante sério, inclinou levemente a cabeça.

    — Bom dia, Vossa Santidade.

    — Bom dia, filho. Que Deus te guarde — ela respondeu com um sorriso genuíno antes de seguir pelo corredor.

    Lá fora, o mocambo já pulsava com a vida matinal. O ar fresco carregava o cheiro de pão fresco. Crianças com mochilas de pano corriam em direção à escola, seus risos ecoando entre as construções. Trabalhadores varriam as ruas de paralelepípedos, enquanto um fluxo constante de operários se dirigia às fábricas. Foi então que uma mulher branca, vestida com um traje bem cortado e simples, aproximou-se com um sorriso profissional.

    — Bom dia, Vossa Santidade. Me chamo Fernanda. Com a escassez de pessoal na prefeitura, serei sua guia hoje. Imagino que esteja com fome. Podemos seguir para o restaurante para que possa se alimentar.

    Paula acenou com a cabeça, começando a seguir a guia, quando um vulto desengonçado irrompeu da porta do complexo de apartamentos. Era Francisco, quase tropeçando nos degraus, ainda ajustando as roupas.

    — Esperem, esperem por mim! Acabei dormindo demais! — ele gritou, ofegante, alcançando o grupo. — Por todos os santos, aquela cama era um convite ao pecado da preguiça! Macia demais!

    Paula abanou a cabeça, divertida.

    — A preguiça já morava em você muito antes dessa cama, Francisco. Venha, o cheiro de comida está me deixando tonta.

    O restaurante, assim que entraram, estava silencioso e vazio, reservado apenas para eles. O que os aguardava, no entanto, era um espetáculo para os sentidos. Uma mesa enorme estava posta com uma abundância que beirava o sonho. Havia montes de pães de queijo dourados, jarras de leite fresco, queijos de várias cores e texturas, uma bebida escura e fumegante que cheirava a cacau, geleias que brilhavam como joias, goiabada em pasta, potes com manteiga amarela, pães franceses crocantes, salames curados e uma profusão de frutas que alguns deles mal reconheciam.

    Francisco, com os olhos arregalados pela fome e pela maravilha, não perdeu tempo. Agarrou um pão de queijo ainda fumegante e deu uma mordida audível. A casca crocante cedeu à pressão, revelando um interior macio e elástico, cheirando intensamente a queijo.

    — Mas que delícia celestial! — ele exclamou, com a boca ainda cheia, ignorando o olhar reprovatório de um dos guardas. — Preciso, preciso conseguir essa receita com o Carlos! Se eu vender isso nas padarias da Cidade Sagrada, vou fazer uma fortuna!

    Paula, por sua vez, foi atraída como por um ímã para a mesa dos doces. Serviu-se de uma caneca do chocolate quente, cujo aroma rico e amadeirado encheu suas narinas. Provou primeiro um simples pão com uma geleia de morango rubra e doce, e em seguida, um pedaço de goiabada que derreteu na boca. Para finalizar, uma fatia de mamão maduro e suculento.

    “Tantas armadilhas”, refletiu, saboreando o doce da fruta. “Carlos é um mestre em colocar iscas deliciosas no meu caminho, para fazer o Quilombo parecer o Éden… E o pior é que estou começando a acreditar que é.”

    Até os guardas, cujo dever era manter a compostura, não conseguiam disfarçar o prazer. Em um canto, um deles sussurrou para o outro, enquanto devorava um pão com manteiga derretida:

    — Nunca comi algo assim, irmão. Parece comida de rei.

    Após se saciarem, Fernanda os conduziu para o tour pelas fábricas. A visita ao Conversor Bessemer foi uma experiência avassaladora: o calor intenso que queimava a pele, o rugido ensurdecedor do metal sendo processado, o brilho ofuscante do aço líquido que era como lava derretida. Nas fábricas têxteis, o bater ritmado dos teares e a dança das lançadeiras hipnotizavam. Tanto Francisco quanto a Papisa ficaram fascinados, fazendo perguntas atrás de perguntas.

    — E o vapor, como consegue tanta força? — questionou Francisco, gritando para ser ouvido sobre o ruído.

    — É a pressão, Senhor Francisco! — explicou o mestre de obras, suando. — A água fervente vira vapor e quer expandir. Nós só… direcionamos essa fúria!

    Paula, por sua vez, observava as operárias com um olhar mais clínico.

    — E a saúde dessas mulheres? O barulho é tão alto… — comentou com Fernanda.

    — Temos turnos de revezamento e protetores de ouvido de cera, Santidade. É o melhor que podemos fazer por agora.

    Depois do tour exaustivo, voltaram ao restaurante, onde Fernanda se despediu.

    — Preciso levar o relatório ao Prefeito Carlos. Foi uma honra, Vossa Santidade, Senhor Francisco.

    Francisco ficou até meio sem jeito por todos estarem chamando ele de senhor e exibindo tanto respeito, totalmente diferente da primeira vez que vieram aqui e queriam matá-lo.

    Um tempo depois, na prefeitura, Fernanda relatava a Carlos, que a ouvia com atenção, apoiado em sua mesa.

    — O senhor Francisco mostrou um interesse aguçado pelas máquinas têxteis e de alimentos. Percebeu que não poderia comprar uma máquina a vapor, então não insistiu. Já a Papisa… — Fernanda fez uma pausa dramática. — Ficou verdadeiramente encantada com os shampoos e condicionadores. Fez perguntas detalhadas sobre o vaso sanitário e, claro, também se interessou pela máquina a vapor.

    Carlos não conseguiu conter um sorriso de satisfação.

    — Fernanda, parece que sua ideia de última hora, de hospedá-los no apartamento, foi excelente. E você ainda teve a idéia de mobiliá-lo com os melhores produtos do Quilombo.

    Ela estufou o peito com orgulho, jogando seus longos cabelos castanhos para trás em um gesto cheio de confiança.

    — Depois que experimentei o shampoo e o condicionador, soube que qualquer mulher se renderia, especialmente uma como a Papisa. Os rumores dizem que ela aprecia a beleza, mas luta contra a vaidade excessiva. São produtos que caminham nessa linha tênue.

    — Estou mais impressionado por você ter mobilizado todos os móveis a tempo.

    — Não foi fácil, Chefe — ela admitiu, o cansaço visível em seus olhos por um instante. — Mas tudo deu certo, graças à sua sugestão de mantê-los aqui no mocambo. Senão, meu trabalho teria sido em vão.

    “Ela sabe bajular seus superiores”, pensou Carlos, observando-a. “Mas não está errada, e sua competência é inegável. Nomeá-la como Ministra do Trabalho foi uma das minhas melhores decisões.”

    — Isso me deu uma ideia — ele disse, erguendo-se. — Precisamos construir um hotel, especificamente para receber visitas ilustres. Quando Domingo Lopez terminar o hospital, ele pode assumir esse projeto. Seu trabalho por hoje está encerrado, Fernanda. Pode descansar. Agora, vou discutir negócios com nossos convidados.

    No restaurante, Carlos encontrou Paula e Francisco já esperando. Depois que os últimos trabalhadores saíram, ele se sentou à mesa.

    — Espero que tenham gostado do passeio — começou Carlos.

    — Foi… esclarecedor — disse Paula, medindo suas palavras. — Suas fábricas são impressionantes. Mas confesso que meu interesse pessoal está em outras inovações. Itens de higiene, por exemplo.

    Francisco não perdeu a chance.

    — E as receitas, Carlos! Esse pão de queijo! As geleias! Precisamos falar sobre isso!

    A negociação fluiu então, de forma mais natural. Carlos concordou em vender os projetos para a construção de vasos sanitários e as receitas de vários alimentos. No entanto, foi firme em sua recusa quando o assunto eram os designs das máquinas industriais.

    — As máquinas são a espinha dorsal do Quilombo, Francisco. Isso não é negociável. — explicou ele. — Já os alimentos… bem, são perecíveis, difíceis de exportar. E o vaso sanitário… acredite, evitará mais doenças no mundo do que qualquer remédio.

    Francisco relutou, mas aceitou. Após acertarem os detalhes, a Papisa decidiu visitar a igreja local para encontrar seus fiéis e para se preparar para o batismo de Ganga Zala. Para surpresa de Carlos, a multidão que a recebeu era numerosa e fervorosa.

    “Ela é realmente famosa”, ponderou Carlos, observando de longe a comoção. “Sua influência se estende até aqui, entre os mais humildes…”

    Francisco, por sua vez, passou a tarde percorrendo as lojas, analisando cada produto, provando cada iguaria. De vez em quando, voltava correndo para fazer uma nova oferta a Carlos por alguma receita específica.

    A tarde já começava a se findar quando Ganga Zala apareceu pronto para ser batizado

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