Índice de Capítulo

    O sol da tarde começava a ceder lugar a uma brisa suave, carregando o cheiro de terra molhada e o perfume adocicado das flores que enfeitavam o pátio da capela. Zala esperava, sentado num banco de madeira tosca, ouvindo os últimos preparativos. O som dos passos do padre Antônio ecoava no pequeno espaço, enquanto ele ajustava a toalha branca sobre a pia batismal de pedra, o barulho da água sendo vertida um som cristalino e contínuo.

    “Não acredito”, o pensamento veio cortante, como uma faca. “Na reunião, a Papisa Paula mal dirigiu a palavra pra mim. O tempo todo, seus olhos e seus ouvidos estavam para o Carlos, como se ele fosse o líder do quilombo e não eu, o filho de Aqua! Minha própria mãe, que sempre preferiu o som das espadas ao diálogo, agora apoia aquele belicista só porque ele promete guerra e glória, coisas que ela entende. Enquanto eu, que busco a paz… eu, Zala, sou tratado como um sonhador, um ‘Ganga’ que não enxerga a realidade.” 

    “Agora, a Papisa está passeando, andando pelo Mocambo do Tatu com aquele interesse todo… e eu aqui, esperando como um menino. Não sou digno nem do seu tempo. Mas esse Carlos vai esperar pra ver. Eu é que vou levar o quilombo para um novo mundo, um mundo de paz! Vou abdicar de tudo, de tudo mesmo… aí ninguém vai poder me julgar, ninguém vai poder sussurrar que sou ganancioso. Eles acham que eu não vejo como me olham durante as reuniões!”

    Sua linha de pensamento foi cortada por Ântonio.

    — Quase tudo pronto, meu filho — disse o padre, sem virar, percebendo o peso do silêncio atrás de si. — Só aguardamos a chegada da Papisa. Sua mãe, Aqua, ficará bem feliz.

    O comentário, ingênuo e mal direcionado, foi como uma pedra atirada em um lago de memórias turvas. “Ficará feliz?”, o pensamento de Zala foi ácido e imediato. “Ela me contou que o avô, sim, se converteu de coração. E ela mesma repetiu o ritual, mas nunca acreditou de verdade. Para Aqua, isso sempre foi outra forma de estratégia, outra ferramenta de poder. E agora eu aqui… fazendo o mesmo. Estou fazendo isso para ter a Igreja como mediadora para a paz, um aliado forte contra os senhores de engenho. Mas ela? Não vê valor na paz. Ela só vê valor nisso se eu usar a cruz como um machado, não como um ramo de oliveira.”

    Apesar de seu corpo estar ali, imóvel no banco da capela, sua mente vagueava para algumas horas antes. Para o seu aposento privado, onde a luz do entardecer filtrada pelas frestas de madeira iluminava corpos reclinados em esteiras macias. O ar estava pesado com o cheiro de óleos corporais e suor, o toque suave de mãos femininas tentando distraí-lo. Era supostamente seu último dia com o harém, uma despedida dos prazeres que abdicaria. Mas, mesmo no meio daquilo, seu rosto estava tenso, seus olhos fixos no teto de palha. O sabor amargo da inveja e do ressentimento era mais forte que qualquer sensação de prazer. Os risos baixos das mulheres soavam distantes, abafados pelo zumbido incessante de seus próprios pensamentos.

    O som de passos firmes e diferentes do andar do padre trouxe-no de volta à realidade. A Papisa havia chegado. Zala se ergueu, ajustando a túnica branca, pronto para ser conduzido. Mas então, viu algo que fez seu sangue ferver.

    A Papisa, após trocar algumas palavras com o padre Antônio, não se dirigiu a ele. Em vez disso, com um gesto rápido e natural, ela se aproximou de Carlos, que estava de pé perto da entrada, conversando com Espectro. Ela inclinou a cabeça para ouvir algo que Carlos sussurrou, respondendo com um aceno breve e um quase imperceptível sorriso de cumplicidade. O gesto durou meros segundos, mas para Zala, cada um deles foi uma agulhada. Só então, como se fosse uma obrigação secundária, ela se voltou para a pia batismal, assumindo sua posição.

    — Zala — chamou o padre Antônio, sua voz soando abafada para os ouvidos do jovem, que ainda fitava as costas de Carlos com raiva. — É hora.

    Ele seguiu o padre, seus pés descalços sentindo o frio da pedra limada do chão como se caminhasse sobre brasas.

    A capela estava agora cheia de uma luz dourada e tênue, proveniente de velas acesas nos nichos das paredes. O ar estava carregado com o cheiro de cera derretida e do incenso suave. Mas não era apenas um grupo comum de fiéis que lotava os bancos de madeira. Além dos moradores do Mocambo do Tatu, estavam presentes todos os chefes dos mocambos vizinhos. Zala sentiu o peso daqueles olhos sobre ele.

    Lá estavam, sentados na primeira fileira como um conselho de anciãos silencioso: Espectro, do Mocambo da Serra; Carlos, do Mocambo do Tatu, agora com um ligeiro sorriso de satisfação nos lábios; e ao seu lado, como um selo de aprovação final, sentava-se Aqua, sua própria mãe. Seu rosto, marcado por cicatrizes de batalhas passadas, era uma máscara impenetrável, seus olhos fixos no filho com uma frieza que cortava mais que qualquer espada. Ela tinha sido a primeira a abandonar seu lado, a primeira a declarar sua lealdade ao projeto belicoso de Carlos.

    Ao redor deles, os outros chefes: Maria, do Mocambo da Lagoa; Mohammed, do Mocambo da Lâmina; Fernando, do Mocambo do Vale; e Malik, do Mocambo do Sol; Kaion, do Mocambo do Vale Sombrio, um homem de ombros largos e braços cruzados; Jabari, do Mocambo da Montanha, cujo rosto severo era conhecido por poucas palavras e ações decisivas; e Tau, do Mocambo do Rio Profundo, que observava tudo com a calma aparente de um jacaré à espera. Muitos desses rostos, Zala sabia, já apoiavam mais Carlos do que a ele.

    Um murmúro baixo enchia o espaço, cessando quando a Papisa se posicionou diante da pia.

    A Papisa então se voltou para ele, e um silêncio profundo caiu sobre a capela.

    — Zala — sua voz era suave, mas para ele, soava falsa após a cena que testemunhara. — Você vem a esta casa de Deus pedindo o batismo. Pede para ser lavado do pecado original e para renascer na graça de Cristo. É este o seu desejo?

    Zala engoliu seco. “Ela nem sequer usou ‘Ganga'”, pensou, amargamente. “Seria um descaso, ou… um respeito?” Seu olhar fugiu para os chefes. “Estão todos aqui para me julgar”, pensou, “todos que preferem a força de Carlos e o espírito belicoso de minha mãe à minha busca por paz”.

    — É… é o meu desejo — respondeu, a voz um pouco mais áspera do que pretendia.

    A Papisa estudou seu rosto por um momento que pareceu uma eternidade.

    — O batismo não é apenas um rito, Zala. É uma morte. É a morte do homem velho, daquele que vive para si mesmo, para seus desejos, suas ambições… suas invejas.

    Zala sentiu um frio percorrer sua espinha. Era como se ela estivesse lendo os segredos mais sombrios de seu coração, ali, na frente de toda a liderança dos quilombos.

    — É uma morte — ela repetou, deixando as palavras pairaram no ar. — Para que o homem novo possa nascer. Um homem que vive para a comunidade, para a fé, para a paz. Você está disposto a morrer para si mesmo?

    Ele sentiu um suor frio nas costas. “Eles acham que não sei como me olham…” O pensamento veio rápido, e desta vez, ele não pôde evitar. Seus olhos se encontraram com os de Carlos. Desta vez, houve um sorriso. Pequeno, quase cortês, mas para Zala, era um sorriso de vitória. A voz da Papisa o puxou de volta.

    — Bem? — a voz dela era um convite, não uma pressão.

    — Estou… estou disposto — ele conseguiu dizer, sentindo a resposta mais como um desafio lançado a Carlos do que uma promessa a Deus.

    Padre Antônio, ao lado dela, fez um sinal da cruz sobre a água na pia.

    — Abençoamos esta água, para que todos os que por ela forem batizados morram para o pecado e nasçam para a vida eterna.

    A Papisa então molhou a mão na água benta. Zala sentiu o cheiro úmido da pedra e o aroma leve do óleo santo.

    — Zala — disse ela, erguendo a mão molhada. — Eu te batizo em nome do Pai…

    A água estava fria em sua testa, um choque que fez seus músculos se contraírem. Na congregação, Espectro inclinou a cabeça, num gesto solene.

    — …e do Filho…

    Outra gota, escorrendo pela pele. Maria observava atentamente, enquanto Mohammed mantinha sua expressão polida.

    — …e do Espírito Santo.

    A terceira gota caiu. Um murmúro de “Amém” percorreu a plateia. Malik, o cético, permanecia com os braços cruzados, mas seu rosto suavizara-se um pouco.

    — Amém — disseram padre Antônio e os presentes em uníssono.

    A Papisa baixou a mão. Seus olhos ainda estavam fixos em Zala, e pela primeira vez, um leve e quase imperceptível sorriso tocou seus lábios. Era um sorriso que não era de congratulação, mas de compreensão. Como se dissesse: “Agora a verdadeira luta começa”.

    — Está feito — anunciou o padre Antônio. — Seja bem-vindo à família de Cristo, filho.

    Enquanto a cerimônia se dissolvia e as pessoas começavam a se aproximar para cumprimentá-lo, Zala viu os chefes se levantarem. Espectro se aproximou e, sem dizer uma palavra, colocou uma mão pesada e ossuda no ombro de Zala, um gesto de reconhecimento. Maria lhe dirigiu um breve aceno de cabeça. Mas Carlos… Carlos não veio em sua direção. Ele se dirigiu diretamente à Papisa, e os dois trocaram mais algumas palavras baixas, com a Papisa assentindo serenamente. Aquela segunda conversa, tão próxima e após o batismo, foi a gota d’água. A água batismal ainda fresca em sua testa agora parecia um suor frio de humilhação. O homem novo precisaria nascer sobre os escombros do velho, mas os demônios da ambição e do ressentimento, agora alimentados pela rejeição tácita de sua mãe, pela afronta de Carlos e pela aparente cumplicidade da Papisa, rugiam dentro dele, prometendo que a paz que ele tanto almejava talvez tivesse que ser conquistada através da guerra que tanto desprezava. A guerra interior, ele sabia, havia escalado para algo muito maior.

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