Capítulo 85 - Dúvida
O sol da tarde pesava sobre o quilombo. Nos últimos dias, Nyran se via enrolada em uma teia de tédio e inércia. Com o ferro rareando, as longas jornadas no conversor haviam dado lugar a horas vazias. Ela não podia voltar para o exército – seu valor, disseram-lhe, estava aqui, então se agarrava à única rotina que lhe restava: treinar até a exaustão, longe dos olhares alheios, enquanto tentava, sem sucesso, coletar informações.
“Lidar com pessoas nunca foi meu forte”, pensou, com um amargor familiar. “Espionagem, para mim, sempre foi sobre o silêncio, a observação, o golpe certeiro. Não sobre… conversinha.”
Seus músculos queimavam enquanto ela corria, marcando o ritmo de seus pensamentos ao redor do campo de futebol. No centro, um espetáculo de alegria fácil. Tassi, suada e risonha, driblava os amigos com uma graça natural, sua risada ecoando no ar.
“Como é possível?” O pensamento cortou como uma lâmina. “Ela só trabalha, joga essa coisa ridícula e mal pega numa espada. E ainda assim… ainda assim me venceu. É inaceitável.”
Aumentou o passo, tentando enterrar a frustração sob o ardor físico. O suor no rosto escorria, e ela sentiu o gosto salgado nos lábios.
“Queria acabar com isso logo”, desejou, ofegante. “Mas com a Papisa como mediadora da paz… É por isso que o Velho Caetano ainda não deu o sinal. Está hesitante.”
Uma sensação quente e familiar pulsou em seu dedo. O anel. Um aviso silencioso.
“E ainda tem esse fantasma, essa sombra que me observa”, ela refletiu, diminuindo o ritmo até parar, com as mãos nos joelhos, o peito ardendo. “Depois dos últimos ataques, a vigilância só aumentou. Será que desconfiam? Será que sabem?”
O ar quente encheu seus pulmões. Uma mosca zumbiu perto de seu ouvido, insistente.
“Pelo menos o Velho Caetano é cauteloso. Ele me dá brechas. E logo vai abrir outra.”
Enquanto recuperava o fôlego, viu Tassi se despedir dos amigos e caminhar em direção aos vestiários. Nyran a seguiu. Apesar de sua afirmação constante de que o salário do aço lhe era irrelevante, uma parte dele havia sido gasta em um vestido de guerreira Mino, idêntico ao que Tassi usava. O tecido áspero, porém familiar, contra sua pele era um conforto ambíguo. Vestir aquilo era como vestir um pedaço de um passado que não existia mais, uma sensação de lar que doía.
Enquanto se trocavam no vestiário abafado, cheiroso a sabão de cinzas e suor seco, Nyran não pôde evitar notar os detalhes no corpo de Tassi. Os músculos, outrora definidos e prontos para o combate, pareciam mais suaves, menos tensos. A pele, sem as marcas recentes da batalha.
— Tassi… você ainda é forte — Nyran quebrou o silêncio, sua voz soando áspera pelo esforço. — Mas seria mais forte se treinasse como antes.
Tassi puxou a própria camisa sobre a cabeça, e sua voz saiu abafada pelo tecido.
— Mas eu treino! Só… menos. Tenho muita coisa para fazer. Já você… — Ela emergiu, e seu olhar percorreu o corpo de Nyran, marcado por músculos salientes, uma rede de cicatrizes prateadas e calos grossos nas mãos. — Com tantos dias livres, você podia fazer algo além de se torturar. Podia jogar futebol com a gente. Acho que levar o corpo a esse limite não faz bem.
Nyran balançou a cabeça, o rosto uma máscara impassível.
— Não. Preciso estar preparada. Para qualquer coisa.
As duas terminaram de se vestir em silêncio e saíram do vestiário, a luz morna da tarde acariciando seus rostos. O barulho da vida no quilombo – crianças brincando, o martelar distante de um ferreiro – parecia um mundo à parte.
— Já lhe disse — Tassi recomeçou, a voz mais suave —, só de ajudar na preparação do aço, você já está defendendo o mocambo. Não precisa ser tudo ou nada. As armas de fogo vão dar conta de ajudar na defesa.
“De novo essas armas”, pensou Nyran, uma pontada de frustração na nuca. “Ela sempre menciona, mas nunca entra em detalhes. Por mais que eu tente me aproximar, a confiança não vem por completo.” O anel em seu dedo estava frio. “E o observador se foi. Confia que a Tassi é guardiã suficiente para mim… Que humilhação. Ela é mais forte vivendo dessa forma desleixada. Para que eu dediquei minha vida à força, se tudo que consegui foi ficar para trás?”
— Tem algo lhe incomodando? — A pergunta de Tassi foi direta, suave.
Nyran quase se surpreendeu. “O quê? Como ela notou? Achava que escondia bem.” Mas uma centelha de oportunidade acendeu dentro dela.
— Essas armas… são mesmo tão fortes assim? — a voz de Nyran saiu mais áspera do que pretendia. — Fortes o suficiente para negar décadas de treinamento? Décadas de dedicação?
Tassi simplesmente confirmou com a cabeça, um gesto solene.
“Me dê mais!”, pensou Nyran, desesperada por uma fresta.
— Mas… — Tassi hesitou, escolhendo as palavras. — Existe um jeito de você ficar mais forte. O Carlos tem uma teoria… Ele acha que o conhecimento ajuda na aptidão mágica, no uso das gemas. Ele pensou nisso vendo como eu melhorei. Como sou ministra, tenho de ir à escola aprender a ler e escrever. Mas mesmo que não fosse, eu iria. Para testar se é verdade.
“Então é por isso”, o pensamento de Nyran foi rápido, certeiro. “Vejo membros da guarda indo para a escola à noite. Até os outros espiões… Estão todos buscando isso.”
— Talvez… — Nyran deixou a palavra pairar no ar. — Talvez eu devesse começar, então.
Caminharam pela calçada de cimento até um bar simples, com mesas de madeira novas e o cheiro agradável de comida caseira no ar. Sentaram-se.
— Sim, comece! — Tassi encorajou, um sorriso malandro nos lábios. — Porque atualmente sou uma das mais burras da sala, e estou precisando de alguém mais burra que eu para me sentir inteligente.
A expressão de Nyran não se alterou, mas um leve e quase imperceptível sorriso tensionou os cantos de sua boca. Por sorte, o garçom apareceu para anotar o pedido, dando-lhe um momento para recompor a fachada.
Depois que o homem partiu com o pedido de duas caipirinhas, Tassi voltou ao assunto.
— A pena é que estão faltando professores. Quase todo mundo que sabe ler e escrever está fazendo hora extra na escola, ensinando o básico para ganhar um trocado a mais. — Ela suspirou, olhando em volta. — Sendo sincera, o dinheiro nunca é suficiente. O Carlos fica colocando mais coisas no mercado… Os últimos foram uns produtos de beleza. Estou usando uns no cabelo, é muito bom. Também me mudei para um dos apartamentos novos que construíram, e o aluguel é um absurdo…
“Lá vem ela de novo falando do Carlos”, pensou Nyran, o interesse aguçado. “A pessoa que mais menciona. Se eu pudesse me aproximar dele, seria perfeito. Descobriria de onde vêm todos esses conhecimentos estranhos… Os boatos dizem que veio de outro mundo. Não pode ser verdade.”
O garçom trouxe as bebidas. Tassi pegou a dela imediatamente.
— Bom, talvez o aluguel seja absurdo porque peguei um dos melhores apartamentos — ela admitiu, dando uma golada larga. — Mas isso não vem ao caso.
Dessa vez, Nyran não conseguiu conter totalmente o sorriso. Um som baixo, quase um riso, escapou antes que ela pudesse abafar.
“Lidar com a Tassi está trazendo à tona lados de mim que eu nem conhecia”, ela refletiu, observando os dedos enluvados de calos ao redor do copo. “No exército, nunca tínhamos tempo para momentos assim… Mas é tudo pela missão. Eu acho…”
— Sabe — Nyran disse, a voz um pouco menos rígida —, você tem que me levar para conhecer esse seu apartamento!
Tassi terminou o gole antes de responder, enxugando a boca com o dorso da mão.
— Eu vou levar! É que… ainda estou ajeitando o lugar. Está uma bagunça, não terminei de organizar os móveis novos que comprei.
As duas conversaram mais um pouco, sobre trivialidades, sobre o sabor ácido e doce da cachaça, sobre o calor que não dava trégua. A tensão em Nyran parecia ter diminuído um pouco, dissolvida na conversa fácil e na companhia inesperada.
Depois de um tempo as duas saíram do bar e se despediram, Nyran sorria um pouco lembrando dos seus últimos dias no mocambo. Até que o som veio.
Foi primeiro um sopro gutural e distante, que cortou o burburinho do quilombo como uma faca. Um único toque, longo e urgente. Depois, outro se juntou a ele. O berrante.
Para todos no quilombo, aquele som significava apenas uma coisa: ataque.
Para Nyran, significava oportunidade. Ela não esperou. Virou-se e saiu em disparada.
O coração batia no peito, não de medo, mas de antecipação. Chegou à sua cabana, um cômodo simples e escuro. O cheiro de palha seca enchia o ar. Com movimentos precisos, enfiou a mão dentro do colchão de palha e retirou um pequeno rolo de papel amarrado com um fio: seu relatório mais recente.
Então, correu para a mata. Seus pés conheciam o caminho, evitando raízes e pedras com uma agência nascida da repetição. Passou por árvores com marcas quase imperceptíveis, sinais que só seus olhos treinados decifravam. Finalmente, chegou a uma árvore específica, com um tronco oco disfarçado por trepadeiras.
Com os dedos trêmulos de pressa, ela afastou a vegetação. A abertura estava lá. Ela se preparou para inserir o relatório quando seus dedos tocaram em outro papel. Já havia uma carta lá.
O sangue pareceu gelar em suas veias. Com um pressentimento funesto, ela desenrolou o novo mensagem. A caligrafia era a do Velho Caetano, seca e impiedosa.
A leitura foi rápida. As palavras queimaram mais que qualquer lâmina.
“No próximo ataque, aproveite a oportunidade e mate o Chefe Carlos e Tassi Hangbé.”
Ela deveria se manter firme. Focar na missão. Era o que sempre fizera, por anos a fio. A obediência era sua espinha dorsal para conseguir viver nesse novo mundo em que ela foi jogada.
Mas desta vez, algo diferente brotou em seu peito, uma semente venenosa e desconfortável. Dúvida.
Suas mãos, firmes para empunhar uma espada, tremeram segurando o leve pedaço de papel. O rosto impassível que ela tão cuidadosamente cultivava rachou, e no reflexo distante dos berrantes que continuavam a ecoar, sozinha na mata escura, Nyran permitiu-se, por um único instante, duvidar de tudo.

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