Índice de Capítulo

    O ar noturno no Mocambo do Tatu era frio e carregado do perfume distante de alguma flor notívaga. No alto de uma torre de terra solidamente construída por Tassi, Kauã fincava os pés no barro seco, sentindo a textura áspera sob suas botas. Ele levou a luneta da visão aos olhos, e o mundo à sua volta ganhou uma nova dimensão. Cada folha, cada galho, cada sombra na mata parecia vibrar com uma vida própria, enquanto seus ouvidos captavam o coro incessante de grilos e sapos.

    “Preciso encontrar algo… qualquer brilho que não pertença a esse lugar,” pensou ele, varrendo a linha das árvores com paciência de caçador.

    Seus dedos estavam frios, e o metal da luneta grudava um pouco na sua pele. Até que, no alto da copa das árvores, um clarão dourado cortou a penumbra. Não era um reflexo tímido, mas uma explosão de luz âmbar que parecia pulsar. O brilho era tão intenso que ardiam os olhos de Kauã, impossibilitando-o de discernir a forma que o carregava. Não estava no chão, mas sim no ar, voando com uma graça sinistra.

    Sem perder um segundo, ele levou o berrante aos lábios. O som grave e urgente do instrumento ecoou pela clareira, um rugido primitivo que fez com que os pássaros se calassem de repente.

    Lá embaixo, guardas que patrulhavam as cercanias interromperam sua marcha. Rostos se voltaram para a torre, iluminados pelas tochas.

    Seguindo o protocolo, Kauã pegou uma gema do fogo e a armou em seu estilingue. A pedra ganhou vida em suas mãos, liberando um calor que afugentou o frio da noite. Ele ativou a gema e a lançou em um arco perfeito em direção à criatura voadora. No meio do caminho, a gema não apenas pegou fogo, mas explodiu em uma chuva de faíscas alaranjadas. Era o sinal. Várias outras gemas flamejantes seguiram o mesmo trajeto, pintando riscos de fogo no céu escuro. Imediatamente, os guardas mais próximos correram, suas armas tilintando, na direção onde as luzes haviam se apagado.

    Kauã ajustou a luneta, esperando ver a criatura recuar, assustada. Para seu completo espanto, ela não só não se escondeu como alterou seu curso. Com um movimento fluido, desceu, voando sob a copa das árvores, e então emergiu sobre as casas do mocambo. A essa distância, a silhueta tornou-se mais clara: asas largas, corpo compacto, um voo silencioso de coruja. Mas uma coruja que exibia uma aura de luz dourada.

    Ele soprou o berrante mais uma vez, um toque mais agudo e repetitivo, de alerta máximo. Desta vez, lançou uma gema em uma direção quase oposta à anterior. Os guardas, já em movimento, viraram-se, desorientados por um instante, mas recuperaram a direção. Pela velocidade da criatura, porém, parecia que não chegariam a tempo.

    A tal “coruja” pousou suavemente numa calçada de concreto, perto de Guaíra Mirimque, com uma pasta debaixo do braço, voltava cabisbaixo da escola noturna. O ar em volta do monstro pareceu vibrar, como ar sobre o asfalto em um dia quente. Ao tocar o solo, sua forma se dissolveu e se reformou. Não era mais um pássaro, mas uma velha de aparência horrenda. Sua pele era um mapa de rugas profundas, e um nariz adunco, semelhante a um bico, dominava seu rosto. Penas grisalhas cobriam partes de seus braços e costas, e onde deveriam haver mãos, garras afiadas de águia cintilavam à luz fraca. Nos cotovelos, duas grandes gemas de um verde opaco e doentio pulsavam com uma energia silenciosa. Por alguma razão perturbadora, a luneta mágica de Kauã se recusava a reconhecer aquilo como gemas; não emitiam aura.

    A bruxa-pássaro se lançou em direção ao trabalhador, suas garras erguidas para o golpe fatal. O homem, paralisado pelo terror, mal conseguiu emitir um som. O cheiro de almíscar e terra molhada exalava da criatura. Naquele momento, parecia que o fim era inevitável.

    Mas então, uma luz marrom terrosa irrompeu de um local perto deles. O solo tremeu, e com um estrondo que fez o homem estremecer, uma parede de terra sólida explodiu para cima, destruindo a calçada de blocos de concreto e erguendo-se como um escudo entre ele e o monstro. Fragmentos de concreto voaram pelo ar.

    Quase ao mesmo tempo, um clarão vermelho cortou a escuridão. Era Quixotina, movendo-se a uma velocidade sobre-humana. Seu punho cerrado, envolto em energia escarlate, mirou no centro das costas da bruxa. O monstro, no entanto, com uma percepção aguçada, bateu as asas e lançou-se para trás, evitando o soco por centímetros. O vento do movimento levantou uma nuvem de poeira.

    Tassi chegou ao lado de Quixotina, seus pés firmes no chão. Ela não tirou os olhos da criatura, mas sua voz foi firme e calma ao se dirigir ao trabalhador, que tremia incontrolavelmente:

    — Fique atrás de nós. Vamos te proteger.

    O Guaíra, aliviado e aterrorizado ao mesmo tempo, apenas anuiu com a cabeça, arrastando-se para trás das duas mulheres.

    Tassi então pisou forte no solo. O chão pareceu sussurrar, e com um rápido movimento, uma videira grossa e resistente brotou da terra, crescendo e se moldando no ar até tomar a forma de uma espada longa de madeira, com veios verdes pulsantes.

    Quixotina olhou para a arma orgânica, depois para Tassi, e um rápido aceno de cabeça bastou como agradecimento. Seus dedos se fecharam em torno do cabo, surpresos pela textura áspera, mas viva, da madeira.

    A bruxa-pássaro, agora pairando no ar, observava a cena com seus olhos amarelos e penetrantes. Um farfalhar sinistro saía de sua garganta. Parecia pesar suas opções. De repente, ela se virou, decidida a fugir, e começou a se encolher, seu corpo se contraindo para se transformar em um pequeno pássaro.

    Foi então que um estampido seco quebrou o suspense. Um tiro de revólver, preciso e certeiro, atingiu uma de suas asas. Um grito agudo, mais humano do que aviário, escapou-lhe. A transformação foi interrompida bruscamente, e ela caiu em direção ao chão. Antes de se espatifar, conseguiu se retransformar parcialmente na bruxa, usando a asa lesionada para gerar uma forte rajada de vento que amorteceu sua queda. Ela aterrissou de joelhos, ofegante, segurando o membro ferido de onde um líquido escuro e viscoso escorria.

    Sem dar tempo para que se recuperasse, Quixotina investiu mais uma vez. A espada de madeira silvou no ar, buscando o pescoço da criatura. A bruxa, com um gesto rápido de sua garra, conjurou uma ventania localizada que empurrou Quixotina para trás, fazendo-a errar o golpe por poucos centímetros.

    — Sua raposa velha! — rosnou Quixotina, recuperando o equilíbrio.

    Enquanto isso, sob os pés da bruxa, mais videiras surgiram do solo, entrelaçando-se em seus tornozelos como serpentes. Tassi já apontava sua arma, mas o monstro foi mais rápido. Seu corpo se dissolveu, encolheu, e em seu lugar um gato preto e ágil se contorceu para fora do emaranhado de plantas e correu.

    Quixotina, incansável, correu atrás dele. Desta vez, um chute potente mirava no pequeno felino. O gato, porém, pulou no último instante, e no ar, seu corpo começou a se distender, a crescer, os ossos estalando audivelmente. O que aterrissou não era mais um gato, mas um lobisomem feroz, com um dos braços sangrando profusamente pelo ferimento de bala. Mesmo machucado, ele atacou Quixotina com fúria, tentando enterrar suas presas afiadas na perna dela.

    — Quixotina! — gritou Tassi.

    Mais uma vez, o solo respondeu ao chamado de Tassi. Uma segunda parede de terra surgiu, separando Quixotina da fera, que mordeu o barro sólido com raiva.

    O lobisomem, agora claramente desesperado e enfraquecido, recuou. Virou-se para tentar mais uma fuga, mas Quixotina foi implacável. Aproveitando a abertura, ela investiu por trás e cravou a espada de madeira reforçada nas costas da criatura. O impacto foi seguido por um estalo seco — a espada, atingindo algo duro dentro do monstro, partiu-se ao meio.

    O lobisomem soltou um grunhido abafado de dor, um som que era ao mesmo tempo animal e humano. Ele cambaleou, quase caiu, mas rolou no chão em um movimento fluido. Durante o rolamento, sua forma voltou a mudar, o pelo retrocedeu, a postura se ergeu, e agora um homem branco, bem vestido, de chapéu, estava de joelhos no chão, segurando o ombro onde o machucado da bala ainda sangrava e manchava o tecido impecável.

    Guaíra, que ainda observava a cena escondido atrás de um barril, sentiu um novo surto de esperança. A Ministra da Educação e Agricultura e sua companheira haviam dominado a ameaça. Mas então, ele notou algo estranho. Quixotina não se movia. Ficara paralisada, a meio caminho de outro ataque, com os olhos vidrados. Tassi, da mesma forma, estava imóvel, sua expressão congelada em uma máscara de concentração vazia.

    — Senhorita Quixotina! — o homem gritou, sua voz trêmula carregada de pânico. — Acorde!

    Seus apelos pareciam se perder no ar. Nenhuma das duas reagiu. Corajosamente, ele saiu de trás do barril e correu até Tassi, colocando uma mão em seu braço e sacudindo-a levemente.

    — Por favor, Ministra!

    Ela não respondia, seus olhos estavam fixos em um ponto distante, como se estivesse presa em um transe profundo. O homem de chapéu, o metamorfo, sorriu um sorriso frio. Com cuidado teatral, ele se levantou e pegou o pedaço quebrado da espada de madeira que ainda estava cravado em suas costas — ou que agora parecia ser apenas parte de seu casaco rasgado. A lâmina de madeira gotejava um fluido escuro. Ele se aproximou de Quixotina, que estava indefesa, sua intenção clara nos olhos calculistas.

    Ele ergueu o estilhaço, pronto para fincá-lo no pescoço dela.

    Um segundo tiro de mosquete de pederneira ecoou, mais alto e decisivo que o primeiro. A bala acertou a têmpora do homem de chapéu, fazendo sua cabeça se estremecer. Imediatamente após, uma flecha cristalina e gélida, sibilando pelo ar, atingiu seu peito, e uma camada de gelo rapidamente começou a se espalhar pelo seu torso.

    Pedro e outro guarda, finalmente, haviam chegado.

    O homem de chapéu caiu de joelhos, depois de bruços no chão. Sua forma final se dissolveu mais uma vez, e quando a poeira baixou, a figura que jazia inerte no solo era a de um indígena, seus traços sérios e marcados agora eternamente congelados pela morte.

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