Capítulo 87 - Indústria Química
A manhã seguinte ao ataque trouxe um sol forte que dissipou a névoa noturna e iluminou o Mocambo do Tatu com uma luz dourada e esperançosa. Pelas ruas de concreto, os habitantes não sussurravam apreensivos, mas conversavam em vozes animadas, seus sorrisos fáceis e gestos largos contando a mesma história: pela primeira vez, eles haviam enfrentado o perigo e saíram vitoriosos, sem uma única baixa.
— Você viu a Ministra? — comentava uma mulher, carregando uma cesta de roupas na cintura. — A parede de terra surgiu do nada! Parecia que o próprio chão se levantou para nos proteger.
— E a Quixotina, movendo-se como um redemoinho! — completou outra, enquanto pendurava as roupas no varal. — Aquele monstro, com todas as suas formas, não foi páreo para elas.
O sentimento de otimismo era palpável. Enquanto outros mocambos pelo quilombo relatavam sustos e danos, o Mocambo do Tatu se tornava um exemplo. As lunetas mágicas fornecidas pela Papisa haviam provado seu valor, dando o alerta crucial que permitiu a defesa organizada. O respeito pela líder religiosa, que já era grande por sua compaixão e tratamento igualitário a todos os fiéis, independente da cor de sua pele, agora beirava a veneração.
Nos bares e restaurantes do mocambo de Carlos, movimentados mesmo naquela hora da manhã, o burburinho era outro. Entre um gole de café forte e um pedaço de bolo de aipim, os nomes mais repetidos eram os de Carlos e Tassi.
— Foi o Carlos quem conseguiu o financiamento, quem trouxe o progresso de verdade — argumentava um homem mais velho, batendo o dedo na mesa para dar ênfase. — Sem esse dinheiro, não teríamos as lunetas, nem os guardas treinados.
— Sim, sim, mas foi a Tassi quem botou a mão na massa, ou melhor, na terra! — rebateu um jovem. — Quem ergueu a torre? Quem criou a espada de madeira na hora do perigo? Ela não planejou de longe, ela lutou aqui, conosco!
Enquanto a comunidade fervilhava com os debates, o próprio Carlos estava longe de compartilhar daquela euforia. Em sua casa, ele observava o movimento pela janela, seu rosto marcado por uma preocupação que as sombras sob seus olhos acentuavam. A vitória tinha um gosto amargo para ele. Cada elogio soava como uma expectativa ainda maior sobre seus ombros.
Eles comemoram uma batalha, pensou ele, esfregando os olhos cansados. Mas eu preciso vencer a guerra. E guerras não se vencem apenas com coragem, mas com ferramentas. E química.
Seu pensamento, no entanto, voou para além do laboratório. Apesar da fábrica de armas ainda não estar pronta, isto é só uma questão de tempo. Ele podia quase ouvir o som ritmado das futuras máquinas. Nia está finalizando as máquinas-ferramentas, como a fresadora.
“É isso que vai mudar tudo – uma máquina que consegue produzir peças para mais máquinas a vapor. É como plantar uma semente de metal que cresce e dá frutos de aço.” Um sorriso breve lhe tocou os lábios.” E quem irá operar esse novo coração industrial serão justamente os melhores assistentes da oficina, os que mais se destacaram. O Lucas, com suas mãos precisas… a Mara, que não erra uma medida… Logo, muito logo, teremos máquinas a vapor suficientes não só para a fábrica de armas, mas para a de munições, e para qualquer outro setor que precisar.”
Sua mente viajava por essas possibilidades. Ele imaginou a fábrica de papel, com seus pesados pilões de bater pasta sendo movidos a vapor, produzindo folhas em uma fração do tempo. Viu moinhos de trigo, de mandioca, de milho, com suas pedras girando sem cessar, libertando mãos humanas para outros trabalhos. “A farinha ficaria mais barata, mais acessível…”
Mas foi um pensamento mais mundano que fez seu rosto se contrair de leve com incômodo. Também gostaria que as pessoas parassem de pegar água de poços. “Até no apartamento a caixa d’água exige que alguém faça esse trabalho manualmente, enchendo balde por balde. É um desperdício de tempo e energia.” Ele olhou pela janela, vendo uma jovem carregando um balde pesado na cabeça, a água escorrendo pela sua roupa. Mas com uma bomba a vapor, vou poder mudar isso. Canalizações de ferro, água correndo para as casas… O contraste era quase cômico. “Mesmo na minha própria casa, com todos os meus planos, ainda tenho que pedir para trazerem água no balde. A comodidade mais básica ainda é um luxo.”
Ele se lembrou então do vaso sanitário de cerâmica, instalado em seu banheiro, um objeto estranho e maravilhoso para todos os outros. O bom é que sempre posso usar minha casa como protótipo para essas tecnologias, pensou, com uma ponta de orgulho resignado. Primeiro foi o cimento, testando as misturas no antes de construir a casa. Depois, o vaso sanitário e a descarga, que ninguém entendia direito para que servia. “Agora… agora talvez seja a hora da bomba de água. Um luxo que se tornará uma necessidade.”
Abandonou a janela e, em vez de se dirigir à sua mesa de trabalho, saiu pela porta. Seu destino naquela manhã não seria a prefeitura, mas o laboratório de química. Ele precisava ver com os próprios olhos o fruto de seus esforços.
O laboratório, uma estrutura robusta de concreto que cheirava a cal e produtos novos, era um mundo à parte. Lá dentro, o ar era pesado e acre, uma mistura de vapores metálicos e odores ácidos que queimavam levemente as narinas e deixavam um gosto amargo na parte de trás da garganta. Fileiras de tanques de chumbo, frios e impassíveis ao toque, reluziam sob a luz fraca que entrava pelas frestas superiores. O som era o de um borbulhar suave e constante, vindo de frascos de vidro onde líquidos escuros e fumegantes circulavam em um ciclo interminável.
Seu assistente, um jovem de entusiasmo contagiante, recebeu-o com um sorriso largo, seus dedos manchados por uma substância escura.
— Chefe! Finalmente! Olhe só o nível nesse tanque — disse ele, levando Carlos até um dos grandes recipientes de chumbo e batendo nele com os nós dos dedos, produzindo um som surdo. — Ácido sulfúrico quase puro. O suficiente para começarmos a produção em escala industrial. O processo de câmara de chumbo está finalmente funcionando!
Carlos observou os recipientes, um cansaço profundo em seus movimentos. Aquele sucesso era o fim de semanas de noites mal dormidas e frustração.
— Quem diria, não é? — o assistente continuou, animado, seguindo Carlos pela sala enquanto gesticulava para ilustrar suas palavras. — Passamos semanas tentando produzir ácido nítrico em quantidade. A gente sabia a teoria: você pega o salitre, aquece com o ácido sulfúrico e destila o vapor. Mas a produção era uma gota de cada vez! Um frasco por dia não abasteceria nem uma fábrica de fogos de artifício, quanto menos a de armas.
Ele parou diante de um aparato de vidro mais complexo, onde um gás de cor marrom-avermelhada borbulhava através de um líquido.
— A peça que faltava era o dióxido de nitrogênio — explicou o jovem, com o brilho de uma descoberta nos olhos. — E para produzir isso em quantidade, adivinha? Precisávamos de… mais ácido sulfúrico para oxidar o nitrogênio do ar! Foi um ciclo. Um quebra-cabeça químico. Precisávamos do ácido para, no final das contas, produzir mais do mesmo ácido. Ficamos rodando em círculos até você ter a ideia de usar o próprio processo para alimentar a si mesmo.
Ele riu, aliviado, como se estivesse contando a piada interna de um clube secreto. Carlos parou diante do tanque principal, colocando a mão na superfície fria do metal, sentindo a leve vibração do conteúdo reativo.
— Sim. Um ciclo quase vicioso — murmurou, mais para si mesmo. — Um processo autocatalítico. O dióxido de nitrogênio que produzimos acelera a própria reação que o cria. Se eu tivesse acesso a livros de química industrial… talvez tivéssemos descoberto isso semanas atrás. O tempo que perdemos… tempo que não temos.
O rosto do assistente ficou sério, captando a gravidade na voz do chefe. Ele pegou um frasco de vidro contendo um líquido claro e oleoso e o entregou a Carlos.
— Mas conseguimos, chefe. O que importa é isso, não é? Aqui está. Ácido nítrico fumegante, da melhor qualidade. Agora… com a produção em escala, o laboratório vai precisar de mais gente. Vai virar uma fábrica. Onde eu fico nisso tudo?
Havia um misto de receio e ambição em sua voz. Carlos pegou o frasco, observando como o líquido fumegava levemente ao contato com o ar. Aquele era o cheiro do progresso, ácido e perigoso.
— Você ficará no comando da operação diária — disse Carlos, devolvendo o frasco com cuidado. — Quem mais entende dos detalhes, dos perigos e dos pontos críticos desse processo, além de mim, é você. Precisamos usar esse ácido nítrico para nitrar a celulose do algodão, produzir nitrocelulose o mais rápido possível. A fábrica de armas ainda não está totalmente pronta, mas já podemos começar a abastecer os canhões e fabricar granadas. — Ele fez uma pausa, estudando o jovem. — E, é claro, suas responsabilidades e seu salário serão proporcionais ao cargo. Você será o supervisor químico.
O sorriso do assistente voltou, mais amplo e grato.
— Obrigado, chefe! Pode deixar comigo. Vou supervisionar a primeira leva de nitrocelulose pessoalmente.
Carlos acenou com a cabeça e saiu, deixando para trás o cheiro ácido do progresso e o som do conhecimento sendo transformado em poder. O cansaço o puxava para baixo, mas seu trabalho ainda não estava completo. Ele foi direto para casa e, sem sequer tirar as botas, caiu sobre a cama, sucumbindo a um sono pesado e imediato. Sua mente, exausta da noite em claro, por medo de outro ataque, passou a noite estudando esquemas de armas e máquinas, finalmente encontrou repouso.
Horas depois, já com a tarde avançada, Carlos acordou com a mente mais clara. O sono havia lavado parte do cansaço, mas não a urgência. Ele se levantou, lavou o rosto com a água fria de uma bacia e, pegando uma pasta cheia de esboços e anotações que cheiravam a tinta e papel, saiu em busca de Tassi. Sua noite de insônia e preocupação havia, pelo menos, rendido uma ideia produtiva. Era hora de colocá-la em prática.

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