Capítulo 88 - Agrofloresta
O sol da tarde lançava seus raios dourados sobre os campos experimentais de Tassi, criando um mosaico de esperança e frustração. Carlos caminhou por entre os canteiros, sentindo o cheiro misto de terra úmida e plantas murchas sob seus pés. Algumas áreas estavam completamente ressecadas, com galhos retorcidos apontando para o céu como dedos acusadores, enquanto outras teimavam em manter pequenos focos de verde resistente.
Encontrou Tassi ajoelhada em um dos canteiros menos devastados, suas mãos sujas de terra examinando atentamente as folhas de uma planta que parecia estar lutando pela sobrevivência.
— Boa tarde, heroína do mocambo! — cumprimentou Carlos, com um sorriso bem-humorado.
Tassi revirou os olhos com força, deixando escapar um suspiro exasperado.
— Pelo amor de Deus, Carlos! Já perdi as contas de quantas vezes me chamaram disso hoje — reclamou, esfregando as costas doloridas enquanto se levantava. — Até o Seu Elias, que mora lá no fim do mundo, quase dentro da mata, apareceu aqui mais cedo sabendo de tudo. O homem me fez uma enxurrada de perguntas que nem me deixou trabalhar direito!
Carlos deu uma leve risada, o som ecoando suavemente no ar tranquilo da tarde.
— É claro que ele sabia. Ele e sua esposa são seus maiores admiradores desde que você salvou eles dos ataques dos monstros no mês passado.
— Pois é, mas dessa vez eu é que precisei ser salva pelo Pedro — retrucou Tassi, seu tom ficando mais sério. — Nem consigo explicar direito o que aconteceu. Quando aquele monstro se transformou naquela figura masculina… era uma beleza tão perturbadora que minha mente simplesmente… parou. Fiquei completamente paralisada.
— Quem diria que até a lenda do boto cor-de-rosa encontraria eco neste mundo — comentou Carlos, balançando a cabeça com uma expressão pensativa. — Mas não foi por isso que vim. Como estão progredindo os testes com a gema da grama?
O rosto de Tassi se tornou sombrio, e ela fez um gesto de frustração em direção aos canteiros falidos.
— Estagnados. Eu estava fazendo progresso, mas agora… é como se tivesse batido numa parede invisível. Consegui mapear como diferentes combinações de adubo afetam espécies específicas, mas o máximo que alcancei foi fazer as plantas durarem uns dez minutos antes de murcharem. Cheguei a tentar colher e comer os frutos antes que estragassem, mas a única coisa que ganhei foi uma dor de barriga terrível.
— Realmente, é um trabalho que exige paciência — reconheceu Carlos, passando os olhos pelos campos fracassados. — Mas, sabe, ontem à noite, enquanto revisava alguns livros do meu mundo, encontrei um volume sobre agrofloresta que pode te dar novas ideias.
— Agrofloresta? — perguntou Tassi, franzindo a testa em confusão. — O que seria isso?
— Isso mesmo — respondeu Carlos, abrindo o livro e mostrando as ilustrações coloridas de florestas exuberantes e produtivas. — Veja só. Basicamente, é um sistema onde você imita uma floresta natural, mas com plantas escolhidas a dedo para trabalharem juntas. Elas criam uma simbiose, uma parceria onde todas se beneficiam, produzindo comida com muito menos intervenção externa do que uma plantação convencional.
Tassi se aproximou, seus olhos percorrendo as páginas com interesse crescente. Ela pôs a mão no queixo, reflexiva, um dedo sujo de terra apontando para uma ilustração específica.
— Você já tinha me falado algo parecido antes, lembra? Sobre como o feijão fixa nitrogênio no solo, que pode ser usado por outras plantas, como o milho.
Cada dia que passa, ela assimila mais rápido os conceitos, pensou Carlos, impressionado. Evoluiu de uma guerreira focada apenas em armas para uma verdadeira estrategista da terra.
— A agrofloresta vai muito além disso — explicou ele, virando a página para mostrar um diagrama complexo de camadas vegetais. — Imagine uma floresta com diferentes andares. No topo, árvores grandes, como nogueiras ou castanheiras, cujas copas dão sombra e cujas folhas caídas servem de adubo natural para as plantas de baixo.
Ele apontou para a ilustração, mostrando os diferentes estratos.
— No meio, arbustos frutíferos como acerola, cujas raízes ajudam a afofar a terra. Na base, plantas rasteiras como abóboras ou tomates, que protegem o solo. A ideia é ocupar cada nicho, cada camada de luz e profundidade, para que elas se complementem em vez de competir. É como… montar um quebra-cabeça vivo, onde cada peça ajuda a outra a se encaixar.
Tassi se afastou, olhando para seus campos falidos e depois de volta para o livro, seus olhos brilhando com compreensão renovada.
— Entendo… É como na natureza, onde tudo está conectado. As árvores altas protegem as menores do sol forte, as folhas que caem alimentam a terra, as raízes profundas trazem nutrientes para as superficiais… — Ela mordeu o lábio, pensativa. — E cada planta atrai seus próprios insetos e animais, que ajudam no equilíbrio. Isso… isso pode realmente funcionar. Vou tentar. Agora mesmo!
Reinvigorada pela nova perspectiva, Tassi pegou seu cajado e marchou em direção a um terreno baldio próximo. Fincou a ponta de madeira no solo e fechou os olhos, concentrando-se. Uma onda de energia verde pulsou da ferramenta, fazendo o ar vibrar levemente. As ervas daninhas secas murcharam e se dissolveram na terra, que instantaneamente ficou mais escura e fértil, exalando aquele rico e característico aroma de terra molhada após a chuva.
Carlos não ficou parado. Caminhou até a pequena cabana de experimentos e voltou carregando um balde pesado de adubo, espalhando-o meticulosamente pelo terreno agora preparado.
Juntos, foram buscar as sementes na cabana de experimentos. O pequeno espaço era um tesouro de vida, com sacos de aniagem cuidadosamente empilhados contendo sementes de todos os tipos – algumas nativas do mocambo, outras importadas a pedido de Carlos. Os dois se sentaram em um banco rústico, passando as páginas do livro sob a luz do final da tarde, até encontrarem uma combinação que pareceu promissora.
— Veja esta — sugeriu Carlos, apontando para uma ilustração detalhada. — Podemos tentar castanheiras no fundo, como estrato alto. Depois, bananeiras no meio, que gostam de meia-sombra. E na frente, tomateiros e abóboras rasteiras, que se beneficiam da proteção.
Plantaram as sementes com cuidado, Carlos fazendo covas regulares com as mãos enquanto Tassi colocava as sementes com precisão cirúrgica, respeitando os espaços necessários para cada espécie. Então, Tassi ergueu o bracelete com a Gema da Grama. Suas mãos tremeram levemente com o esforço, e um suor fino brotou em sua testa enquanto um verde intenso e pulsante emanava da gema.
Diante de seus olhos, um milagre se desenrolou. Brotos verdes emergiram do solo, crescendo em câmera acelerada. Mudas se transformaram em plantas adultas, galhos se estenderam para o céu, folhas se abriram em leques verdes. Em questão de minutos, onde antes havia apenas terra nua, agora se erguia uma densa massa de folhagem, uma mini-floresta em pleno vigor.
Carlos observou, maravilhado. — É incrível… a quantidade de mana que isso deve consumir. Isso me faz lembrar da luta com o Mapinguari. Sua mana chegou a acabar naquele dia?
Tassi, ofegante mas com um ar de orgulho cansado, encostou-se no cajado para se equilibrar.
— Esqueci de te contar um detalhe importante… só porque sou adepto da Terra e da Grama não significa que tenho a mesma afinidade com ambas. — Ela respirou fundo, passando as costas da mão pela testa suada. — Como pode ver, minha conexão com a Grama é muito mais forte. Quanto à luta… minha mana não acabou completamente. Se tivesse acabado, eu estaria morta, como quase aconteceu com a Quixotina. Por sorte… você saberia como me trazer de volta.
Enquanto falava, uma dor latejante aumentava em suas têmporas, prova clara do imenso esforço despendido.
— Fascinante! — exclamou Carlos. — Você é realmente a pessoa perfeita para ser a Ministra da Agricultura. Mas falando nisso, vamos aos resultados!
Ele se adiantou e colheu um tomate vermelho e firme que pendia perto do tronco de uma castanheira já com mais de um metro de altura. Mordeu o fruto com expectativa. O sabor, no entanto, era aquoso e insípido, faltando completamente a acidez vibrante e o doce característico de um tomate maduro. Não era um fracasso total – era comestível –, mas estava longe do ideal.
Tassi experimentou uma folha de manjericão e uma acerola ainda verde. — O sabor está fraco, assim como o tomate… — confirmou, com uma ponta de decepção. — Mas mais importante que o sabor agora é ver por quanto tempo esse ecossistema vai se manter estável.
Carlos se sentou em um banco de madeira rústico à beira do campo experimental. — Nessas horas, ter um relógio seria uma mão na roda. Poderíamos cronometrar com precisão.
Tassi caminhou lentamente e sentou-se ao seu lado, esfregando os olhos cansados. — O que é um ‘relógio’? É outra daquelas invenções do seu mundo?
Carlos começou a explicar, usando os galhos das árvores e a posição do sol para ilustrar a passagem do tempo, descrevendo engrenagens, ponteiros e a magia de medir cada segundo com precisão. A conversa fluía, descontraída, e as sombras no chão foram se alongando lentamente enquanto ele falava sobre horas, minutos e a revolução que seria poder coordenar o trabalho de todos com precisão.
Até que Tassi, de repente, apontou para a mini-floresta, seus olhos arregalados de espanto. — Olha! Ainda está aqui! Não murchou! Carlos, sua ideia funcionou! É um sucesso!
Ela se levantou com dificuldade, seus músculos protestando, mas o entusiasmo de Carlos era contido.
— O sabor… ainda está muito aquém — lembrou ele, pragmaticamente. — Não sustenta.
— Isso é o de menos! — Tassi retrucou, animadíssima. — O importante é que a estrutura se manteve! O sabor eu descubro depois… E… acho que já tenho uma pista. — Ela caminhou até a borda do plantio, examinando as flores que começavam a se formar. — Talvez, em vez de forçar tudo a crescer de uma vez, eu deva fazer em fases. Deixar as plantas florescerem naturalmente, esperar os polinizadores fazerem seu trabalho… — Ela gesticulou, imaginando o processo. — A polinização é uma etapa fundamental, não é? Pular essa etapa com magia, acelerar demais o processo… deve estar causando algum desequilíbrio, algum vazio no desenvolvimento completo do fruto.
Carlos também se levantou, um sorriso de aprovação em seus lábios. — É uma teoria sólida. Faz todo o sentido que um processo natural exija seus ritmos naturais, mesmo com ajuda mágica. Mas por agora, preciso voltar para casa. Amanhã será um dia longo; preciso ver o andamento das máquinas da Nia.
Ele já se virava para se despedir quando um som grave e urgente cortou o ar, gelando o sangue de ambos: o berrante de ataque, seu lamento ecoando por todo o mocambo.
“Mas como?! Já? Acabamos de ser atacados ontem!”
Seu pensamento foi interrompido por Tassi, que agarrou sua mão com força, seus dedos ainda frios do cansaço mágico.
— Vamos! Agora! — ela ordenou, puxando-o na direção do centro do mocambo, onde ficavam os abrigos seguros. O protocolo era claro e recente: civis sem gemas para os abrigos; adeptos com gemas para a linha de frente.
Mas, no meio do caminho, ainda longe do centro, quando já podiam ouvir os gritos de alerta e o correr de pés, uma figura surgiu para bloquear sua passagem na estreita viela entre duas casas. Nyran. E ao seu lado, estavam dois homens negros de expressões duras e armas empunhadas.
O coração de Tassi gelou. Infelizmente, o que ela mais temia havia acontecido.

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