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    O ar do fim da tarde estava começando a ficar frio. Nyran fitou Tassi, seus olhos cintilando com uma mistura de desdém e uma ponta de pena sob a luz fraca das estrelas. Sua voz, quando ecoou na clareira, era suave, mas cortante como o aço.

    — Sinto muito, Tassi — disse ela, e o peso daquela falsa compaixão pareceu ecoar na floresta. — Mas cedo ou tarde, o quilombo cairia. Vocês são fracos. E neste mundo, o forte sobrepuja o fraco. É a lei mais antiga e a única que importa.

    Ao seu lado, um homem alto, negro e cego de um olho, rangia os dentes. A longa corrente de ferro que ele carregava arrastava-se no chão, e na sua ponta, uma lâmina larga e cruel balançava com um som pesado e metálico.

    — Deixa a conversa fiada para depois, Nyran — rosnou o homem, sua voz um rugido grave. — Palavras não matam ninguém.

    Antes que Tassi pudesse retrucar, o homem girou a corrente acima da cabeça com um braço possante. O assobio do metal cortou o vento um instante antes que a espada fosse lançada como um projétil, direto em direção a Carlos.

    Tassi nem sequer olhou para Nyran. Cada fibra do seu ser concentrava-se no perigo iminente. Seu pé direito pisou com força no solo, e com um rugido surdo, a terra respondeu. Um muro espesso de terra, raízes e pedras ergueu-se do chão, jogando para longe os blocos de concreto da estrada, bloqueando o caminho da lâmina com um baque seco que fez vibrar os ossos de todos presentes.

    Do outro lado de Nyran, um homem magro, carregando um cajado adornado com pequenos sinos de metal, entrou em ação. Ele pulou para o lado com uma agilidade felina, balançando o bastão em um arco preciso. Imediatamente, uma onda de som visível — uma distorção no ar que fazia a luz tremer — projetou-se em direção a Tassi e Carlos. A parede de terra foi irrelevante; a onda sonora simplesmente a atravessou como se não existisse.

    O ruído era agudo e penetrante, um zumbido ensurdecedor que parecia vibrar dentro do crânio. Tassi, que ainda segurava o revólver, levou as mãos aos ouvidos instintivamente, seu rosto se contorcendo numa máscara de dor.

    “Merda, um adepto da gema do som! Odeio lidar com eles!” pensou ela, os dentes cerrados enquanto uma dor latejante se alastrava por sua cabeça.

    Aproveitando a abertura, Nyran avançou. As gemas do vento incrustadas nas solas de suas botas cintilaram com uma luz opalina, e ela saltou sobre a parede de terra com uma graça sobrenatural. No ar, seu corpo se contorceu, e ela abriu a boca. O ar ao redor de seus lábios começou a tremeluzir com o calor intenso que emanava de sua garganta.

    Mas ao pousar, seus olhos, ajustados à penumbra, não encontraram seus alvos. O local onde Carlos e Tassi estavam momentos antes estava vazio.

    Ela não hesitou. No meio do ar, pareceu dar um passo firme no nada, realizando um mortal para trás com impressionante agilidade.

    — Cuidado! — ela gritou para seus companheiros.

    O aviso, porém, chegou tarde. Uma bala jorrou de um ponto no chão, seguido pelo estampido abafado de um tiro. A bala atingiu a perna do homem da corrente com um impacto úmido e repugnante. Um grito de agonia e raiva ecoou na clareira enquanto ele cambaleava, a mão pressionando o ferimento que jorrava sangue quente e escuro.

    — Seu maldito! — ele rosnou, agarrando a corrente com fúria renovada. A gema de ferro nela incrustada brilhou com uma luz metálica, e a espada larga, ainda cravada na parede de terra, desalojou-se e voou como um demônio de aço em direção ao ponto de onde o tiro havia saído.

    Sob a estrada, dentro de um bolsão abafado que Tassi criara quebrando o concreto por baixo, Tassi respirava ofegante. O ar era pesado, cheio do cheiro de minério e das próprias vísceras do mundo.  O suor frio escorria por suas têmporas. Cada músculo doía; ela havia usado mana demais para romper a camada de concreto.

    Carlos, ao seu lado na escuridão apertada, via sua expressão de sofrimento no clarão fraco que sua magia de luz mínima proporcionava.

    — Tassi, você precisa parar, você não tem mana suficiente sobrando… — ele sussurrou, a voz carregada de uma preocupação que era quase um peso físico.

    Ela não o deixou terminar. Com um gesto brusco e cansado, ela ergueu a camada de terra onde estavam, mas sem emergir à superfície, como se estivessem em uma plataforma elevatória, escapando por um triz do golpe da espada que se enterrou profundamente no solo com um ruído de terra revolvida. Mal seus pés tocaram o chão firme, ela já estava em movimento, pisando firme mais uma vez e deslizando ambos para a esquerda com a terra se movendo sob seus pés como uma maré sólida. 

    Ela fechou os olhos por um momento sentindo as vibrações na terra sob o concreto – a agitação febril do homem ferido, os passos leves e rápidos do adepto do som. A presença de Nyran, porém, era evasiva, um toque de pluma no concreto antes de desaparecer, impulsionada por suas gemas do vento. Ela engoliu a frustração e focou no que podia atingir.

    Outro tiro ecoou, desta vez arrancando a orelha do homem da corrente. Ele gritou, um som rouco de fúria e desespero, e a espada de ferro, respondendo à sua raiva cega, voou em direção a eles como um raio, passando perigosamente entre Carlos e Tassi com um assobio mortal que cortou o ar.

    Tassi sentiu as pernas fraquejarem. A reserva de mana estava esgotando-se, um vazio doloroso se abrindo em seu centro. Ela não tinha mais escolha.

    — É agora ou nunca! — ela grunhiu, e com um último esforço, quebrou o concreto sob eles mais uma vez, levando ambos de volta à superfície.

    Assim que emergiram, sua mão já estava armada. Ela mirou e atirou no homem da corrente, que ainda tentava se levantar, segurando o que restava de sua orelha. O tiro foi certeiro, acertando seu crânio. Ele caiu pesadamente, um silêncio súbito e sinistro tomando seu lugar.

    Ela se virou imediatamente, procurando Nyran, mas já era tarde. A mulher já estava lá, de boca aberta, soprando uma lança de fogo vivo e crepitante diretamente sobre eles. Tassi reagiu por instinto, atirando no pé de Nyran. O grito de dor da mulher foi seguido por um baque, e Nyran caiu de joelhos no chão. Imediatamente, Tassi canalizou o último vestígio de sua energia, e  videiras brotaram de uma fenda no concreto, enrolando-se com força no pé ferido de Nyran.

    — PORRA, TASSI! — Nyran gritou, lutando contra as plantas que a prendiam, suas mãos tentando queimar os caules sem se queimar. — EU NÃO QUERO TE MATAR! O ALVO É O CARLOS! SE AFASTE DELE E VOCÊ VIVERÁ! É UMA ORDEM DIRETA!

    Tassi, com movimentos mecânicos e pesados, ejetou os cartuchos usados do revólver e começou a recarregar, os dedos tremendo ligeiramente de cansaço.

    — Sem ele — ela falou, ofegante, cada palavra custando um fôlego, — o quilombo morrerá lentamente, consumido por hienas como vocês. E eu… eu morrerei defendendo o quilombo, seja hoje ou amanhã. Não há diferença.

    Nyran forcejava, as chamas saindo de suas palmas para carbonizar as videiras, mas novas brotavam, alimentadas pela última centelha de mana de Tassi.

    — O quilombo irá morrer de qualquer forma! — ela insistiu, sua voz misturando raiva e um estranho, quase desesperado, apelo. — Abandone essa luta fútil! Nosso rei… ele nos descartou! Lembra-se de Rio das Almas? Ele não pagou o resgate! Deixou-nos apodrecer naquela prisão! Toda a nossa lealdade, todo o sangue que derramamos… foi inútil! Não existe reino, não existe causa que valha a nossa vida! Por favor, Tassi, abre os olhos! Abandone esses ideais idiotas e apenas VIVA!

    Tassi abriu a boca para responder, as palavras de Nyran ecoando em sua mente exausta como um sino fendido. Mas antes que qualquer som saísse, o tilintar ensurdecedor e familiar dos sinos preencheu o ar novamente. Uma onda de força sonora pura, mais densa e violenta que a anterior, atingiu-a e a Carlos como um martelo de guerra invisível.

    A dor foi excruciante, uma faca de agonia mental. Tassi sentiu algo quente e úmido escorrer de seus ouvidos. Seus tímpanos haviam estourado. A combinação do baque físico e o esgotamento total de sua mana foi o golpe final. A visão escureceu, manchas negras dançando em sua frente. Suas pernas cederam e ela desmaiou, o corpo despencando como um boneco de pano, o revólver caindo de sua mão inerte com um ruído metálico no chão.

    Carlos, também atordoado e com os próprios ouvidos sangrando, conseguiu se manter de pé por pura força de vontade. Ele agarrou o corpo de Tassi antes que ela caísse pesadamente, verificando rapidamente seu pescoço com dedos trêmulos. O pulso estava lá, fraco e acelerado, mas persistente. Ele a deitou com cuidado contra uma raiz e pegou o revólver pesado. Sua expressão, antes de preocupação, endureceu em uma máscara de determinação feroz. Ele varreu o local com os olhos, procurando Nyran, a fonte de todo aquele mal.

    Ele ergueu a arma, mirando na figura da mulher que ainda lutava contra as videiras. Mas sua atenção estava tão focada nela que não percebeu o adepto do som, que havia se movido silenciosamente como um fantasma. O homem magro apareceu ao lado do corpo inconsciente de Tassi, uma faca longa e escura feita de uma gema de decomposição brilhando com uma luz esverdeada e doentia em sua mão. A lâmina desceu, pronta para cravar-se no peito desprotegido da mulher.

    — PARE! — o grito foi de Nyran, estridente e carregado de um comando inesperado.

    Num impulso que parecia custar-lhe um imenso esforço, as gemas em suas botas brilharam com força total, e ela se projetou para a frente, arrastando as videiras que a prendiam. Ela colocou seu próprio braço no caminho da lâmina. A faca a atingiu no antebraço com um som horrível e úmido, e imediatamente um cheiro doce e nauseante de carne apodrecendo encheu o ar. A pele ao redor do ferimento escureceu, tornou-se negra e começou a se desfazer como papel molhado.

    — O plano é matar apenas o Carlos! — Nyran gritou para o homem, o suor escorrendo de seu rosto pálido pela dor insuportável. — Sem ele, ela não terá mais razão para lutar! Ela vai desistir! É mais útil viva!

    O adepto do som olhou para Nyran com fúria e confusão, seus lábios se retorcendo para soltar um insulto.

    — Ambos são alvos! Eu não ligo se você conhece essa mulh-

    Mas a palavra nunca saiu. Carlos, recuperado do susto inicial, agiu. Ele apertou o gatilho a queima-roupa. O estampido foi um trovão na quietude relativa. A cabeça do homem estremeceu violentamente, e uma névoa vermelha e densa explodiu atrás dele antes que seu corpo caísse pesadamente no chão, inerte.

    Nyran saltou para trás, aguentando a dor do tiro por conta da adrenalina e arrancando as últimas videiras, seus olhos arregalados de uma mistura de choque, raiva e dor lancinante no braço. Carlos, movido por um ímpeto de vingança, continuou atirando. Cada disparo era um clarão laranja que iluminava brevemente o crepúsculo. Nyran, no entanto, era um alvo notoriamente difícil. Ela saltava e rodopiava, as gemas do vento a impulsionando de um lado para o outro em zigue-zagues imprevisíveis, fazendo com que cada tiro passasse raspando ou errasse completamente, lascando cascas de árvores e levantando torrões de terra.

    — Merda! Que arma maldita é essa que vocês inventaram? — ela gritou, desviando de outro projétil que varou a folhagem atrás dela. — Não é à toa que acabaram com o exército do governador!

    Carlos ignorou suas palavras, concentrando-se em recarregar. Ele rapidamente enfiou a mão nos bolsos do vestido de Tassi, seus dedos procurando febrilmente por mais cartuchos. Foi o momento de distração que Nyran esperava. Com um salto poderoso, ela voou sobre Carlos, posicionando-se acima dele como um abutre, a boca se abrindo mais uma vez, o calor intenso distorcendo o ar à sua frente para liberar o jato de fogo que encerraria a luta de uma vez por todas.

    Mas, do nada, duas figuras surgiram entre eles com velocidade impressionante. Sombra, com seus olhos castanhos escuros que mais pareciam pretos, materializou-se de uma mancha de escuridão profunda ao lado de uma árvore. E, ao seu flanco, Amadi ergueu as mãos com um grito de esforço. Um escudo translúcido branco irrompeu do ar, absorvendo o sopro de fogo com um silvo alto e um clarão ofuscante. O calor intenso fez o ar tremer ao redor do escudo, mas ele se manteve firme.

    Nyran aterrissou com um rosnado de frustração, segurando o braço ferido que agora exalava um vapor fétido.

    — Pelo visto — cuspiu ela, ofegante, — seus reforços chegaram.

    Antes que Amadi ou Sombra pudessem responder ou contra-atacar, um pássaro de penas vermelhas e brilhantes como brasas vivas pousou suavemente ao lado de Nyran. No instante em que suas garras tocaram o solo, a forma da ave se distorceu e cresceu, transformando-se em uma enorme serpente de fogo dançante — um Boitatá. A criatura sibilou, suas escamas cuspindo faíscas que queimavam o ar, e um calor radiante emanava dela. Do outro lado da clareira, saindo da escuridão entre as casas, um cachorro magro e de pelo escuro surgiu com um rosnado baixo. Seu corpo se contorceu e esticou em um espetáculo de ossos se rearrumando e músculos se expandindo, transformando-se em um lobisomem musculoso e de olhos ardentes de ódio. Ele ergueu a cabeça e soltou um uivo longo e ameaçador para o céu noturno, um som que prometia sangue e carnificina.

    — Mas os meus — Nyran finalizou, um sorriso cruel e doloroso estampando seu rosto sujo de fuligem e sangue, — também chegaram.

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