Capítulo 90 - Assassinato Parte II
O ar no Mocambo da Lagoa estava pesado com o cheiro de água, suor e o odor metálico do sangue. Sombra e Sussurro lutavam em sincronia, suas formas movendo-se como partes de uma mesma máquina mortal contra as Iaras que emergiam da lagoa de águas cristalinas, agora turvas pela agitação, e outros membros invasores. O som de golpes, gemidos e espadas raspando contra escamas ecoava pela clareira.
Sombra, após desferir um golpe preciso com sua adaga contra uma criatura aquática, recuou alguns passos, ofegante. Seus olhos, sempre atentos, percorreram a margem do lago.
— A situação aqui está sob controle, pelo menos por enquanto — disse ele, virando-se na direção onde supunha que Sussurro estivesse. — Sussurro, consegue ver como está a situação em outros lugares? Precisamos de um panorama.
A alguns metros dali, Sussurro, completamente invisível graças à sua gema, ouviu a pergunta com clareza através dos brincos com gemas do som que adornavam suas orelhas. Ela baixou a luneta que estava usando, um artefato da Igreja com runas prateadas entalhadas na estrutura.
— Já estou nisso — sussurrou ela em resposta, sua voz chegando a Sombra como um sopro no ouvido, graças à mesma gema.
Ela tornou a erguer a luneta, e seu campo de visão se transformou. As cores do mundo real desvaneceram-se, substituídas por uma visão espectral onde as fontes de mana brilhavam como faróis. Ela não via pessoas, mas sim as assinaturas energéticas das gemas que carregavam. Vários pontos de luz cintilavam ao longe, cada um representando um adepto em movimento.
Enquanto ela fazia a varredura dos outros mocambos, Sombra permanecia em posição, sua mente trabalhando freneticamente.
“Por que um ataque tão grande logo após o outro?” pensou ele, os olhos fixos nas águas turbulentas da lagoa. “Eles não perceberam a futilidade de suas ações? Com as armas e artefatos mágicos que conseguimos com a Igreja, nosso potencial defensivo é enorme. Eles não conseguirão mais nos pegar desprevenidos como antes… A não ser…”
Sua expressão endureceu, uma suspeita terrível tomando forma em sua mente.
“A não ser que o objetivo deles não seja causar baixas em massa. A não ser que seja algo mais específico…”
— Sombra! — a voz urgente de Sussurro cortou sua linha de pensamento como uma lâmina.
Ele a viu, ainda invisível, mas a luneta pairava no ar. Ela levou a gema do som pendurada em seu colar até os lábios, sua voz saindo em um sussurro acelerado.
— No Mocambo do Tatu… tem adeptos demais! A concentração de gemas é intensa! E… e Tassi parece estar no meio da confusão, sua assinatura de terra está instável, muito fraca!
Sem perder um segundo, Sombra começou a correr em direção à sombra mais próxima.
— Avise o Espectro! Precisamos de reforços lá agora!
A resposta de Sussurro veio ofegante, o som de seus passos invisíveis seguindo-o.
— Já estou fazendo isso!
Sombra, já invisível, pisou na mancha escura projetada por um grande jequitibá. Era uma sensação peculiar, como mergulhar em água gelada e espessa. Ele desapareceu da margem do lago e emergiu instantaneamente da sombra de uma palmeira a cinquenta metros de distância, onde um guarda, Amadi, vigilava o caminho.
— Amadi, venha comigo! — ordenou Sombra, aparecendo subitamente ao lado do homem.
Amadi deu um salto, surpreso, mas seu treinamento falou mais alto. Ele acenou com a cabeça, firmando a pegada em seu escudo.
— Pelo quilombo! — respondeu o guarda, sua voz firme.
Sombra colocou uma mão firme no ombro de Amadi. A gema da escuridão em seu tornozelo, uma pequena pedra negra presa a uma corrente fina, cintilou com uma luz profunda. As formas de ambos se dissolveram na penumbra. O mundo se tornou um turbilhão de tons de cinza e silêncio pressionante por um instante, até que eles emergiram de outra sombra, já bem mais perto do Mocambo do Tatu. Sombra repetiu o processo, saltando de sombra em sombra, cada salto um pequeno baque existencial, até que os primeiros sons de luta chegaram aos seus ouvidos: estampidos, gritos e o rugido distante de fogo.
Eles surgiram da sombra de uma cabana. A visão era caótica. E então Sombra viu: Carlos, de costas para eles, protegendo o corpo inerte de Tassi no chão. Sombra apareceu diretamente na sombra projetada por Carlos.
— Amadi, agora! — gritou Sombra, liberando o guarda.
Amadi, já entendendo a situação, não hesitou. Ele avançou, erguendo seu escudo. Uma luz branco-leitosa irrompeu da gema central do escudo, formando uma barreira translúcida e brilhante entre Carlos e os inimigos.
— Carlos, fique atrás de Amadi! — ordenou Sombra, sua voz ecoando da escuridão. — Você deve ser o alvo deles!
Carlos, com o rosto sujo de fuligem e os olhos arregalados pela adrenalina, recuou alguns passos, puxando o corpo de Tassi para mais perto da proteção.
— Isso eu já descobri da pior maneira! — respondeu ele, a voz rouca.
Do outro lado da clareira, Nyran observou a chegada dos reforços. Um suspiro frustrado escapou de seus lábios. A luta, que parecia quase ganha, agora se tornaria muito mais dura. Mas era tarde para recuar.
— Cuidado com a arma que Carlos tem na mão! — ela alertou seus companheiros, sua voz carregando um tom de respeito amargo. — Eles derrotaram o exército do governador graças a esses engenhos mortíferos!
O Boitatá ao seu lado, uma serpente de fogo e escamas que, embora não fosse tão colossal quanto a lenda, ainda assim era maior que qualquer jiboia, sibilou em concordância, seu corpo irradiando um calor que distorcia o ar. Do outro lado, o lobisomem, uma massa de músculos e pelo escuro, apenas grunhiu baixo, suas garras cravando-se na terra.
Num instante, as duas bestas partiram em direção a Carlos. Nyran ficou para trás, os olhos analisando o campo de batalha, buscando uma abertura.
Sombra reagiu primeiro. Ele mergulhou na sombra alongada de Carlos e desapareceu, só para reaparecer meio corpo da própria sombra do lobisomem. Com um movimento rápido, ele lançou uma lança de escuridão pura que atingiu o braço do monstro. O lobisomem rugiu de dor e fúria, desferindo um golpe cego contra a própria sombra, mas Sombra já havia se dissipado, deixando para trás apenas o vazio.
O Boitatá, percebendo a tática, intensificou suas chamas. Seu corpo tornou-se uma fornalha ambulante, o calor tornando o ar ao seu redor tremeluzente e inóspito, tornando suas sombras uma armadilha mortal para qualquer um que tentasse usá-las. A criatura serpenteou rapidamente em direção a Carlos, mas Amadi manteve sua posição, o escudo leitoso absorvendo a onda de calor com um silvo contínuo. Com a outra mão, Amadi brandiu uma lança, reuniu suas forças e a arremessou contra o rosto do Boitatá. A lança acertou em cheio, mas ricocheteou nas escamas endurecidas pelo fogo.
Um sorriso sinistro pareceu se desenhar na face escamosa da criatura. Mas o sorriso se transformou em um alerta agudo quando a voz de Nyran ecoou:
— CUIDADO! Ele recarregou!
Carlos, que havia acabado de inserir as balas no tambor do revólver, surpreendeu-se com o aviso, mas sua reação foi treinada. Ele mirou com firmeza no monstro de fogo e puxou o gatilho. No entanto, no exato momento do disparo, o Boitatá se contraiu e se transformou em um tatu de armadura ossuda e fumaça saindo de suas juntas. A bala passou zunindo por cima dele. Sem perder tempo, o tatu escavou um buraco no chão com velocidade impressionante e desapareceu da vista.
Carlos não desanimou. Girando rapidamente, ele mirou no lobisomem, que ainda tentava em vão atingir Sombra. Ele atirou; um dos tiros acertou o outro braço da besta, enquanto os outros erraram, marcando a terra ao redor. Ele começou a recarregar febrilmente, mantendo os olhos no monstro. Mas onde antes estava a fera, agora havia apenas uma criança. Uma menina pequena, com orelhas negras de lobo caídas e um rabinho preto com a ponta branca, chorando baixinho, seus braços e pernas sangrando profusamente. Naquele momento decisivo, a mão de Carlos hesitou. A ponta do revólver baixou um centímetro.
E foi nesse instante de dúvida que Nyran atacou. Ela pareceu cair do céu, as gemas do vento em suas botas impulsionando-a em um mergulho veloz. Ela passou pela barreira de Amadi, que estava distraído com o tatu, e soprou um jato concentrado de chamas diretamente nas mãos de Carlos. Ele gritou de dor, a pele cheirando a carne queimada, e o revólver pesado caiu no chão com um baque metálico.
Amadi, percebendo a brecha, virou seu escudo para o céu para bloquear um possível novo ataque de Nyran, mas do chão, exatamente à sua frente, o Boitatá emergiu em sua forma total. A boca enorme e cheia de dentes flamejantes fechou-se com um estalo seco ao redor do braço de Amadi. Um estalido ossudo ecoou, seguido por um grito de agonia do guarda.
Sombra tentou de todas as formas atacar o monstro, lançando lanças de escuridão, mas as escamas incandescentes do Boitatá dissipavam a magia sombria. O calor que a criatura irradiava era simplesmente intenso demais para que ele se aproximasse.
O Boitatá, com um movimento poderoso do pescoço, arremessou Amadi para longe. O guarda rolou no chão, segurando o coto do braço que agora terminava em um ferimento carbonizado. O caminho para Carlos estava livre. A serpente de fogo serpenteou em direção ao inventor, que, com as mãos horrendas e inúteis, tentava se arrastar para trás.
Nyran pulou para bloquear o caminho de fuga de Carlos, mas foi interceptada por um ataque de Sombra que surgiu de uma sombra próxima. Ela conseguiu desviar com um salto para a esquerda, mas perdeu o equilíbrio.
O Boitatá, vendo Carlos indefeso, ajustou sua trajetória. No entanto, Sombra apareceu diretamente em frente ao rosto do monstro, suportando o calor insuportável por uma fração de segundo. Ele lançou uma lança escura que encontrou seu alvo: o olho do Boitatá. A criatura emitiu um guincho alto e dolorido, recuando momentaneamente.
Naquele instante de fúria e dor cega, o Boitatá reavaliou a situação. Carlos era um alvo difícil e protegido. Mas havia outro, mais fácil, indefeso no chão: Tassi, ainda inconsciente. Ele nem precisava mordê-la; apenas passar por cima de seu corpo frágil com seu peso e calor seria suficiente para esmagá-la e carbonizá-la.
A criatura serpenteou em direção a ela, mas Nyran, recuperando-se, pulou mais uma vez em sua frente, os braços abertos.
— NÃO! — ela gritou, sua voz um misto de ordem e desespero. — FOQUE EM CARLOS! O ALVO É ELE!
Carlos, vendo a cena, sentiu uma onda de vergonha e raiva de si mesmo. Ele a havia deixado ali, pensando que a poupariam, que o interesse era só nele. Como foi tolo.
— Seu monstro! — ele gritou, ignorando a dor lancinante em suas mãos.
Ele deu uma cambalhota desajeitada, rolando no chão até onde o revólver havia caído. Com os pulsos, ele conseguiu empurrar a arma para uma posição onde pudesse agarrá-la com os dedos menos queimados.
— Idiota! Não volte para eles! — a voz de Sombra ecoou, cheia de alarme.
Mas Carlos ignorou. Ele tentou firmar a arma, mas as mãos eram um amontoado de dor. Nyran, vendo sua tentativa, pulou em sua direção, os lábios se separando para outro sopro de chamas.
Sombra, vendo-a distraída, emergiu de sua própria sombra e acertou seu ombro com uma adaga de escuridão. Nyran gritou e caiu de joelhos, o ataque de fogo se dissipando antes de alcançar Carlos.
O Boitatá, no entanto, estava a centímetros de Tassi. Ele abriu a boca, o calor intenso já fazendo as roupas dela começarem a fumegar.
— NÃO! — rugiu Carlos.
Com um esforço sobre-humano, ele ergueu o revólver. O primeiro tiro acertou o outro olho do Boitatá, cegando-o completamente. A besta guinchou, um som de pura agonia, e se virou cegamente em direção a Carlos, que atirou novamente, mas as balas apenas lascavam escamas incandescentes, sem causar dano real. As lanças de luz que Carlos tentou conjurar com suas mãos feridas eram fracas e se dissipavam contra o corpo da fera.
Cego, mas guiado pelo calor do ódio e por sua língua bifurcada que sentia as vibrações do ar, o Boitatá serpenteou em direção a Carlos, imparável. A fera estava cega, mas sua fúria a guiava diretamente em direção ao chefe de mocambo, que agora não tinha para onde correr.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.