Índice de Capítulo

    O calor que emanava do Boitatá cego era como o de uma fornalha. Suas escamas crepitavam, e o ar ao seu redor tremeluzia, distorcido pelo intenso calor. Ele se contorcia, direcionando o corpo incandescente para Carlos, que recuava, sem ter para onde correr. A intenção da fera era clara: carbonizá-lo ali mesmo, sem cerimônia.

    Mas, no exato momento em que o Boitatá se preparava para liberar uma onda de fogo concentrada, uma figura esguia e vestida de cinzas materializou-se ao seu lado. Era Espectro, movendo-se como uma fumaça. Com um movimento preciso, ele arremessou uma granada de ferro, redonda e pesada, diretamente dentro da garganta aberta do monstro, que ainda bramava de dor e fúria.

    A granada rolou pela goela abaixo do Boitatá antes de detonar com um BAANG! ensurdecedor e úmido. Estilhaços de escamas, carne e osso voaram para todos os lados, e a cabeça da criata simplesmente desintegrou-se. O corpo, ainda incandescente, debateu-se por alguns instantes antes de cair pesadamente no concreto, antes voltar a sua forma original de um homem.

    Enquanto isso, Sombra, aproveitando o momento de distração de Nyran, que assistia horrorizada à morte de seu aliado, emergiu de uma sombra próxima a seus pés. Lançando uma lança de escuridão sólida que perfurou a perna da mulher.

    Ela gritou, caindo de um joelho. Na mesma fração de segundo, Carlos, mesmo com as mãos doloridas, encontrou uma fagulha de determinação. Ele levantou o revólver com dificuldade, mirou e puxou o gatilho. O tiro acertou o outro braço de Nyran, que já segurava o ferimento da perna. O impacto a jogou para trás, e sua cabeça bateu no concreto com um baque seco, deixando-a inconsciente.

    Um silêncio pesado pareceu cair sobre a estrada, quebrado apenas pelo crepitar do fogo do Boitatá moribundo.

    — Acho que… acabou? — ofegou Carlos, deixando o revólver escorregar de seus dedos queimados.

    — Não tão rápido — alertou Sombra, sua voz novamente grave.

    Um novo som ecoou na noite: o galope pesado e fantasmagórico de cascos no concreto. Da escuridão da rua lateral, uma figura aterrorizante surgiu. Era uma Mula Sem Cabeça, seu pescoço terminando em um cotoco flamejante, e sobre seu lombo, uma Iara com cabelos tão verdes quanto algas e olhos que brilhavam como luares. Antes que qualquer um pudesse reagir, a Iara abriu a boca e começou a cantar.

    A melodia era hipnótica, doce e penetrante, entrando nas mentes dos homens presentes como um veneno delicioso. Os olhos de Amadi, que ainda segurava seu coto sangrando, vidraram. Os de outros guerreiros do quilombo que haviam chegado também perderam o foco, suas armas baixando enquanto eram puxados para um transe perigoso.

    — Não ouçam o canto! — gritou Sombra, tapando os próprios ouvidos, mas a magia não era totalmente bloqueável.

    De longe, em cima dos apartamentos, Sussurro observava a cena através da mira de um rifle de precisão — uma “sniper”, como Carlos a ensinara a chamar. A arma era fria e pesada em suas mãos, um instrumento de morte que ela ainda estava aprendendo a dominar. Ela respirava fundo, controlando a pulsação, como Carlos a instruíra.

    “Um tiro, uma vida. Acabe com a ameaça maior primeiro”, ela lembrou das palavras dele.

    Ela mirou com cuidado, o coração batendo forte contra as costelas. O cruzamento na mira alinhou-se com o tronco da Mula Sem Cabeça. Ela prendeu a respiração e apertou suavemente o gatilho.

    O CRÁÁC! do disparo ecoou na fachada do prédio. A bala de alto calibre perfurou o ar e atingiu o monstro no ombro, fazendo-o estroncar e cair de lado com um ruído de animal ferido. A Iara foi arremessada do seu lombo, seu canto cortado abruptamente. O encanto que pesava sobre os homens se quebrou instantaneamente. Eles piscaram, olhando em volta confusos, como quem acorda de um pesadelo.

    — Agora, Espectro! — ordenou Sombra.

    Espectro, já em movimento, arremessou outra granada com um arco perfeito. O engenho caiu precisamente entre os dois monstros caídos. A explosão subsequente foi curta e devastadora, silenciando para sempre a Iara e a Mula.

    Sussurro, aliviada, com o olho ainda na mira. Seus ouvidos zuniam com o estampido. Ela olhou pela lente da sniper, varrendo o céu noturno em busca de outras ameaças. Foi então que ela o viu: um falcão, voando alto demais, com um brilho dourado em seu interior.

    “Então é você”, pensou ela, um frio percorrendo sua espinha. “É você que está guiando os reforços até aqui, mostrando a eles o caminho… Lamento, mas vou acabar com isso.”

    Era um tiro quase impossível, mas ela tinha que tentar. Encheu os pulmões, mirou naquele ponto de luz dourada no céu escuro e apertou o gatilho.

    O disparo ecoou, mas o pássaro, como se sentisse o perigo, desviou bruscamente. A bala apenas arrancou um punhado de penas. No entanto, o susto foi suficiente. O falcão, percebendo que havia sido descoberto, mergulhou em direção ao chão como um míssil, voando em direção à menina lobo que ainda estava inconsciente perto dos outros guerreiros que já chegaram perto dela pra ver o que fariam.

    Todos os guerreiros do quilombo se prepararam, armas em punho, para receber a nova ameaça. Mas o que aconteceu em seguida os deixou paralisados.

    Ao pousar suavemente ao lado da menina, o falcão começou a se transformar. Suas penas se retraíram, suas asas encolheram, e em segundos, onde antes havia uma ave majestosa, agora havia um menino. Um menino magro, de não mais que dez anos, com olhos dourados cheios de lágrimas.

    Ele se ajoelhou, protegendo o corpo da irmã com o seu próprio.

    — Por favor! — ele gritou, sua voz infantil carregada de um desespero que cortava o coração. — Por favor, não machuquem mais minha irmã! A gente se rende! Não vamos mais atacar, eu juro! Podem fazer o que quiserem comigo, mas… mas por favor, não machuquem ela!

    A cena era de partir o coração. Os guerreiros mais endurecidos trocaram olhares hesitantes, suas armas baixando ligeiramente.

    Foi então que Espectro, movendo-se sem fazer um único ruído, apareceu atrás do menino. Sem cerimônia, mas também sem brutalidade excessiva, ele desferiu um golpe preciso com o cabo de sua adaga na nuca do garoto. Os olhos do menino se arregalaram por um instante antes de fecharem, e ele desmaiou, caindo suavemente ao lado da irmã.

    — Melhor assim — murmurou Espectro, olhando para os corpos inertes das crianças. — Dormir é melhor do que ver o que vem a seguir.

    ***

    Uma luz branca e suave. Esse foi o primeiro estímulo. A seguir, veio o cheiro antisséptico e limpo de álcool e sabão. O menino abriu os olhos, pesados e arenosos, e olhou para um teto branco, liso e imaculado, feito de um material que ele nunca tinha visto.

    Onde ele estava? A memória voltou como um golpe: a batalha, a fuga, a transformação, a súplica, e depois… escuridão.

    — SILVANA! — ele gritou, sentando-se de repente na cama, um surto de pânico absoluto tomando conta de seu pequeno corpo.

    Ele olhou freneticamente para os lados. O quarto era grande, com várias camas. E então, ele a viu. Do outro lado, em uma cama igual à sua, ele reconheceu as orelhinhas pretas de lobo, agora limpas e tranquilas, saindo de uma cabeça repousada no travesseiro.

    Aliviado, ele tentou pular da cama para correr até ela, mas uma enfermeira robusta, com um avental branco impecável, interpôs-se em seu caminho.

    — Ei, ei, calma, jovem! — disse ela, com uma voz firme, mas não desagradável. — Sem correrias e sem gritos, isso aqui é um hospital. Sua irmã está bem, mas está dormindo. E o sono é o melhor remédio. Você também precisa descansar.

    O menino, ofegante, fitou-a com olhos assustados.

    — Ela… ela só está dormindo? — perguntou ele, sua voz trêmula. — Você jura?

    A enfermeira cruzou os braços, fazendo uma cara mais séria.

    — Posso garantir, o doutor mesmo a tratou com a gema da cura. Agora, volte para a sua cama. Você usou muita mana, seu corpo precisa se recuperar. Vamos, deite-se.

    Ao ouvir aquilo, um suspiro longo e profundo escapou de seus pulmões, como se ele estivesse segurando a respiração desde que acordou. A tensão em seus ombros diminuiu um pouco.

    — Tá bom, moça — ele murmurou, obedecendo e deitando-se novamente.

    Ele ficou em silêncio por um minuto, olhando para o teto, antes de falar novamente, sua voz pequena e hesitante.

    — E… e vocês não vão matar a gente?

    A enfermeira parou o que estava fazendo e olhou para ele. Seu rosto perdeu um pouco da rigidez.

    — Isso aí eu não sei, criança. Quem decide é o Chefe Carlos. — ela disse, baixando a voz. — Mas, entre nós, ele ficou bem bravo com o Espectro por ter batido em você. O Carlos tem um ponto fraco por criança, sempre fala que trabalho perigoso é coisa de adulto. Mas… — ela acrescentou, um aviso em seus olhos, — isso vai depender muito se vocês não mataram ninguém do nosso povo…

    Ela não deu mais explicações. Deu um tapinha suave no pé dele através do lençol e saiu do quarto, deixando-o com seus pensamentos e o som suave da respiração de sua irmã.

    — Que bom para você, Silvestre.

    A voz veio da cama ao lado. O menino deu um salto e virou a cabeça. Ele não tinha notado Nyran deitada lá, seus braços e pernas enfaixados, o rosto pálido, mas os olhos alertas.

    — Tia! — ele exclamou, em um misto de alívio e surpresa. — Você tá viva! Eu pensei que tinham te matado!

    Nyran fez uma leve careta. O título “tia” claramente não era de seu agrado.

    — Estou viva… — ela respondeu, secamente. — Mas não sei por quanto tempo. Fui fraca. Escolhi o lado perdedor.

    O menino fez um biquinho, seus olhos começando a lacrimejar novamente.

    — Não chore por mim — disse Nyran, sua voz um pouco mais suave. — Você deveria é se preocupar com sua irmã. Me conta uma coisa… por acaso, ela matou alguém do quilombo?

    O menino enxugou as lágrimas teimosas com as costas da mão e balançou a cabeça com veemência.

    — Não! Nunca! — ele sussurrou, urgente. — Ela só assustava as pessoas que se aproximavam demais, e lutava contra os guerreiros quando era atacada. Ela machucou alguns, sim, ela fez isso, mas nunca, eu juro por Ogum que nunca matou ninguém!

    Um sorriso leve e amargo surgiu nos lábios de Nyran, tanto para acalmar o garoto quanto para tentar acalmar a própria consciência.

    — Que bom. Ouvi falar que esse Carlos é um chefe justo. Ele não deve fazer mal a vocês… pelo menos era isso que minha amiga Tassi sempre falava dele. — ela disse. — Apenas diga a verdade. Diga que não tiveram escolha a não ser trabalhar para o Caetano.

    Silvestre, já mais calmo, falou com um fogo repentino:

    — Tia, eles têm que deixar você viver também! Você é uma boa pessoa! Foi você quem nos salvou daquela senhora do engenho, a cruel! Ela tinha matado nosso irmão mais velho… e você nos resgatou!

    Nyran balançou a cabeça, negando.

    — Não. Não fui eu quem salvou vocês. Foram vocês que se salvaram. — ela corrigiu, seu olhar perdendo o foco, como se revendo a cena. — Mesmo sendo crianças, conseguiram fugir sozinhas da casa daquela megera. Eu apenas os encontrei no meio da floresta. E vi… potencial.

    — A gente só teve sorte! — insistiu o menino. — A gente tentou matar a dona do engenho, sabe? Colocamos um travesseiro no rosto dela enquanto ela dormia, mas ela acordou e começou a gritar. Aí a gente correu. Corremos tanto, sem sapatos, no meio do mato, com os cachorros nos perseguindo… — sua voz ficou rouca com a memória. — A gente se escondeu numa caverna e ficou com tanto medo de sair que quase morremos de fome. Mas aí você chegou. Você nos deu comida… e um trabalho.

    Nyran novamente balançou a cabeça.

    — Eu só vi a força que vocês tinham, além disso vocês mesmo estavam sobrevivendo da caça, apenas não comiam como antes. Vi a  coragem de vocês. — ela disse, e então seu rosto ficou sombrio. — Mas não os libertei. Apenas mudei o dono de vocês… para o Caetano.

    Ela olhou para as orelhas peludas da menina adormecida.

    — E depois, foram forçados a serem cobaias daquela gema da transformação… — ela murmurou, com um fundo de culpa. — E como ela foi a primeira… se tornou essa coisa meio fera, meio humana.

    — Não! — o menino balançou a cabeça veementemente. — Foi aquele velho nojento, o alquimista do Caetano, que fez isso! Você não sabia! Você é inocente!

    Nyran suspirou profundamente, como se carregasse o peso do mundo.

    — Tudo bem. Mas chega de falar. Você também usou mana demais. Descanse.

    — Mas eu não tô com sono! — ele reclamou, bocejando no mesmo instante.

    Apesar do protesto, em poucos minutos, a exaustão física e emocional o venceu, e um ronco suave e regular encheu o quarto.

    Assim que o som do sono do garoto se estabeleceu, Nyran falou para o aparente vazio, sua voz baixa e cansada.

    — Pode aparecer, Sombra. Agora você já sabe a história toda. Essas crianças são inocentes. Elas não merecem ser punidas pelos crimes do Caetano… nem pelos meus.

    Da sombra profunda sob sua cama, Sombra se materializou silenciosamente, como se fosse feito da própria escuridão.

    — Realmente — ele comentou, seu tom de voz inexpressivo. — Você é bem mais sensível com relação a sentir auras do que aparenta. Até mais que a Tassi, eu diria.

    Nyran ignorou o comentário, mantendo o olhar fixo no rosto tranquilo da menina lobo.

    — Então… quando será minha execução? — ela perguntou, com uma calma resignada. — Ah, é claro. Me curaram para que eu pudesse falar tudo o que sei sobre o Caetano, não foi? Tudo bem. Não tenho mais razões para protegê-lo. Posso falar sem problemas.

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