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    Carlos permaneceu na fábrica, observando as primeiras máquinas a vapor que agora ocupavam o espaço com sua presença imponente. O ar ainda carregava o cheiro do óleo de rícino queimado e do metal quente, enquanto o característico chuff-chuff-chuff preenchia o ambiente como uma respiração mecânica.

    Ele se aproximou de Nia, que já examinava uma das máquinas com olhos críticos, seus dedos percorrendo as superfícies metálicas como um ourives avaliando uma joia rara.

    — Nia, agora que temos nossa fábrica de máquinas a vapor funcionando — começou Carlos, falando um pouco mais alto para superar o ruído ambiente —, quero que você use essas primeiras unidades para produzir armas de repetição e munições.

    Nia limpou o suor que escorria em seu rosto moreno com as costas da mão, deixando um leve traço de graxa na testa. Seus olhos brilharam com entusiasmo profissional.

    — Finalmente! — exclamou, com um sorriso genuíno. — Estou ansiosa para colocar essas máquinas para trabalhar em algo realmente desafiador.

    Carlos pegou uma pasta de esquemas técnicos que trouxera consigo e estendeu para ela.

    — Aqui estão todos os projetos que você vai precisar. Desde os mecanismos de alimentação até as esteiras de montagem.

    Nia pegou os papéis com cuidado quase reverencial, como se recebesse um tesouro. Sua atenção já estava completamente absorvida pelos diagramas complexos. Sem dizer uma palavra, ela se virou e foi até uma das máquinas a vapor que acabara de ser finalizada, começando a fazer ajustes e medições enquanto murmurava para si mesma.

    Carlos observou por um momento, sorrindo diante da dedicação absoluta da ferreira, que agora mais poderia ser chamada de engenheira. Sabendo que não receberia mais atenção, ele deixou a fábrica e seguiu para a prefeitura.

    No caminho, Carlos decidiu percorrer uma rota que passava pelas áreas mais movimentadas do quilombo. O ar pesado e metálico da zona industrial deu lugar ao cheiro mais suave dos ipês plantados na calçada que apesar de estarem longe da época de florescerem já conseguiam limpar o ar. Enquanto passava por uma rua de concreto, seu olhar foi atraído por um grupo de crianças que brincava com um carrinho de rolimã improvisado. O que o surpreendeu foram as rodas – não eram simples discos de madeira, mas sim rodas com eixos de metal que giravam suavemente sobre rolamentos também metálicos. Ele sorriu, reconhecendo que suas inovações tecnológicas já estavam se espalhando de formas criativas pela comunidade.

    Mais adiante, um homem mais velho, de rosto curtido pelo sol e mãos calejadas, o reconheceu e se aproximou com um acen

    — Chefe Carlos! — chamou o homem, que Carlos reconheceu como seu Arlindo, um dos agricultores mais experientes do quilombo. — Só queria agradecer por esses novos arados de aço. A terra corta como manteiga, nunca vi nada igual!

    — Fico feliz em ouvir isso, seu Arlindo — respondeu Carlos, parando para conversar. — E como estão rendendo as novas sementes?

    — Bem, muito bem! Tassi faz um trabalho incrível, nunca imaginei que trigo cresceria aqui! — o homem animou-se. — Mas, chefe, com todo respeito… esses cavalos novos são fortes, mas são muito caros, mesmo pagando parcelados, creio que ficarei a vida inteira pagando por eles…

    Carlos assentiu, compreensivo.

    — Veja bem, com o dinheiro que você vai fazer plantando e transportando com os cavalos, logo logo eles vão se pagar. Saiba que tem mais pessoas dos outros mocambos vindo morar aqui, e eles vão gastar mais dinheiro com comida, não só isso como comerciantes que vem compras os produtos do quilombo estão começando a comprar os alimentos que são mais baratos aqui.

    — Ah, que bom! — o homem sorriu, mostrando alguns dentes faltando. — Graças a Deus e ao senhor vai dar tudo certo!

    Carlos seguiu caminho, agora mais consciente das preocupações cotidianas que seu progresso trazia consigo.

    “Se esse senhor soubesse quanto pagamos em cada cavalo… Forma 400 mil réis por cavalo! Os comerciantes nos metem a facada sem dó, e nós vendemos pela metade do preço para os agricultores e eles ainda reclama do preço!”

    Deixando esses pensamentos de lado, seguiu em direção a prefeitura e ao entrar no prédio, o aroma reconfortante do chá o recebeu. Ele serviu-se de uma caneca e estava tomando o primeiro gole quando Aqua surgiu na porta, seu cabelo branco formando uma auréola contra a luz do corredor.

    — Como foi lá na fábrica? — perguntou ela com sua voz baixa e suave que sempre trazia uma sensação de calma.

    Carlos se acomodou em sua cadeira, girando lentamente a caneca entre as mãos antes de responder.

    — Foi bom, muito bom. Com isso, logo teremos mais máquinas a vapor para ajudar em diversas indústrias do quilombo. Vai diminuir muito o trabalho braçal e otimizar várias funções.

    Aqua sentou-se na cadeira em frente à sua mesa, ajustando cuidadosamente sua saia antes de falar.

    — Você sempre fala em diminuir trabalho, mas no fim acaba criando mais — observou com um sorriso. — Pense nos cavalos e animais que compramos… Gastamos uma pequena fortuna, e o resultado? Mais trabalho, porque agora os materiais são transportados mais rápido. Cimento, tijolos, madeira… Tudo chega com tanta velocidade que precisamos de mais funcionários só para dar conta de descarregar e organizar.

    Ela fez uma pausa, olhando pela janela onde se via o movimento constante do quilombo.

    — E essa fábrica de máquinas a vapor já está exigindo mais pessoas. Todos os funcionários que foram trabalhar lá eram nossos melhores ferreiros. Agora precisamos contratar e treinar novos ferreiros, que por sua vez vão trabalhar em mais fábricas… É um ciclo sem fim.

    Carlos deu uma leve risada, reconhecendo a verdade nas palavras dela.

    — Você tem razão, como sempre. E já adianto que vamos precisar de ainda mais pessoas — avisou ele. — Em breve teremos fábricas de munição e armas de repetição.

    Aqua suspirou profundamente, passando os dedos pelos cabelos brancos antes de responder.

    — Nesse ritmo, vamos ficar sem trabalhadores no mocambo. Já tivemos que pegar dois mil homens de outros mocambos para trabalhar nas estradas, e agora você quer mais…

    — Você fala como se fosse difícil conseguir trabalhadores — Carlos interrompeu gentilmente. — Mas a verdade é que é bem fácil. Todo mundo quer trabalhar aqui, ganhar um bom salário e comprar nossos produtos. Os outros mocambos estão praticamente nos mandando suas pessoas.

    Aqua concordou com a cabeça, mas seu rosto ainda mostrava preocupação.

    — Tem razão sobre isso. O difícil mesmo é conseguir trabalhadores qualificados aqui na prefeitura… Pessoas que saibam ler, escrever, fazer contas…

    Carlos sorriu, desta vez com genuíno entusiasmo.

    — É para isso que serve a escola! A Quixotina me contou que alguns adultos estão levando livros para casa e estudando por conta própria. O Guaíra Mirim, por exemplo, está se saindo extraordinariamente bem. Logo ele poderá ser o nosso Ministro da Construção Civil, junto com outros alunos que se destacaram. Esse ministério vai cuidar de todos os custos e salários do setor, e você terá muito menos trabalho.

    — Você realmente tem uma resposta para tudo, não é? — disse Aqua, balançando a cabeça com uma expressão entre a admiração e o cansaço. — Mas saiba que nem todo mundo é tão competente quanto a Ministra do Trabalho ou tão apaixonado por seu trabalho quanto a Quixotina.

    Carlos apontou para ela com um sorriso gratificado.

    — E é exatamente por isso que você é meu braço direito aqui na prefeitura. Você precisa identificar quem trabalha bem e quem não trabalha, e me passar essas informações para que eu possa decidir quem fica e quem vai embora.

    Aqua balançou a cabeça novamente, mas desta vez com um sorriso resignado.

    — No fim, sempre sobra para mim… — ela disse, levantando-se. — Você sabe que eu já tenho idade para pegar essa tal aposentadoria que você inventou, né? Imagina se eu decidisse sair… O que você faria sem mim? É melhor aproveitar enquanto estou aqui para tomar seu chazinho em paz.

    Depois de dizer isso, ela saiu do escritório, deixando para trás o leve aroma de shampoo.

    Sozinho, Carlos começou a organizar seus livros e papéis, sua mente já trabalhando nos próximos passos. Ele pegou uma caneta e começou a rabiscar em uma folha de papel.

    — Vejamos… — murmurou para si mesmo. — Depois de terminar as fábricas de armas e munições, posso adaptar máquinas a vapor para puxar água dos poços. Os canos poderiam ser de concreto selados com borracha… E nas casas, talvez usar cerâmica revestida com borracha…

    Seus olhos percorreram os rabiscos no papel enquanto novas ideias iam surgindo.

    — Falando nisso — continuou ele, sua caneta movendo-se rapidamente —, posso usar uma máquina a vapor para produzir papel e farinhas, assim como num engenho de açúcar…

    Um sorriso de satisfação surgiu em seu rosto enquanto desenhava e estudava os esquemas.

    — Podemos exportar açúcar a preços abaixo do mercado, graças às máquinas a vapor e aos poderes da Tássi. O mesmo vale para as farinhas e o papel… — sua expressão tornou-se mais séria. — O que significa mais dinheiro, embora o aço já esteja nos dando lucros tão grandes que isso quase não é mais um problema. Temos que guardar boa parte para uso interno, especialmente com a possibilidade de perdermos o fornecimento, afinal Portugal que está nós fornecendo, ainda bem que nesse mundo a informação demora para chegar…

    Ele fez uma pausa, olhando para a pilha de livros em sua mesa.

    — Se tivéssemos uma mina de ferro aqui perto… — suspirou. — Justamente por isso coloquei o Silvestre para mapear a região. Preciso entender exatamente onde estamos. Tenho um livro que fala das riquezas naturais do Brasil, e o mais importante: tem mapas mostrando a localização das minas…

    Sua voz tornou-se mais pensativa.

    — Apesar de que… não existiam minas de gemas mágicas no Brasil do meu mundo, então talvez as minas de minérios comuns também não coincidam. Mas não custa tentar. O futuro do quilombo depende do ferro para a produção de armas, munições e máquinas.

    Ele pegou o livro de mapas, abrindo-o na página que mostrava o Nordeste brasileiro.

    — Por falar em mapas — resmungou, traçando os contornos com o dedo —, tomara que não demorem para me conseguirem um mapa atualizado do Brasil. Um mapa apenas da nossa região não vai adiantar nada se eu não tiver certeza de onde exatamente estamos no país. Sei que devemos estar no Nordeste, mas onde no Nordeste…

    Enquanto estava perdido em seus mapas e esquemas de máquinas, um som hesitante interrompeu o silêncio do escritório. Toc, toc, toc. Batidas tão leves que quase pareciam um arranhão de rato na madeira.

    Carlos ergueu a cabeça, afastando os livros.

    — Pode entrar!

    A porta se abriu lentamente, rangendo um pouco. Lá estava Silvestre, mas não o menino animado que Carlos talvez esperasse ver. O garoto parecia ter encolhido. Seus ombros estavam curvados para frente, e ele mantinha a cabeça baixa, os olhos fixos no chão como se estudasse os veios da madeira. Ele segurava um pedaço de papel com ambas as mãos, mas os dedos estavam brancos de tanto pressionar, e a folha mostrava marcas de suor e sujeira nas bordas. O cheiro de terra e mato que ele trouxe consigo encheu o ar.

    — Chefe Carlos… — sua voz era um fio, rouca e contida. Ele engoliu seco e tentou novamente, forçando um pouco mais de volume. — Eu… cumpri parte da missão. Trouxe o mapa com o resultado do que fiz até agora.

    Ele estendeu o papel não com orgulho, mas com a solenidade tensa de quem entrega uma confissão. Carlos pegou o documento, sentindo a textura áspera e úmida sob seus dedos.

    O que ele segurava era um amontoado de linhas trêmulas e manchas de tinta. Havia formas que lembravam árvores desenhadas com um misto de esforço e falta de habilidade, um rio representado por dois traços paralelos que se encontravam de forma improvável, e os limites do mocambo eram uma cerca desenhada com zigue-zagues infantis.

    “Meu Deus…”, pensou Carlos, seu coração afundando não apenas pela qualidade do mapa, mas pelo que ele representava. “Mas também, eu estava esperando demais de uma criança.”

    Ele forçou um sorriso amável, o mais suave que pôde.

    — Obrigado, Silvestre. Você… se esforçou muito. Dá para ver que você conhece cada cantinho daqui. — Sua voz era deliberadamente calma.

    O menino levantou os olhos pela primeira vez. Eles estavam wide com uma ansiedade profunda.

    — Eu… eu fiz o melhor que pude, chefe. Juro. Fiquei três dias voando por tudo quanto é canto, anotando tudo. Não quis decepcionar o senhor.

    A voz trêmula do garoto era um golpe no peito de Carlos. Ele se abaixou, ficando na altura do menino.

    — Você não me decepcionou, Silvestre. A missão era difícil, eu sei.

    O alívio no rosto do menino foi momentâneo, seguido por um novo surto de preocupação. Ele mordeu o lábio inferior.

    — É que… é que a minha irmã, a Silvana… ela tá com tosse. E o chá bom pra isso é caro… e eu pensei que, se eu fizesse um bom trabalho… — Ele não terminou a frase, seus olhos implorando por compreensão.

    A ficha caiu para Carlos. Aquele não era apenas o medo de um funcionário de falhar com seu chefe. Era o pavor de um provedor, por mínimo que fosse, de não conseguir cuidar da única família que lhe restava. O peso da responsabilidade que ele mesmo colocara sobre aqueles ombros frágeis pareceu de repente insuportável.

    — Silvestre — Carlos disse, sua voz mais grave e séria. — A Lúcia vai receber o chá que precisar. Isso eu garanto. Você não precisa se preocupar com isso. Apenas avise a moça do orfanato, além disso se ela piorar pode ir para o hospital receber tratamento de graça.

    O garoto pareceu querer acreditar, mas uma desconfiança born da experiência antiga ainda pairava em seu olhar.

    Carlos decidiu mudar de tática. Ele pegou o mapa e apontou para uma das manchas.

    — Olha aqui. Esta linha é o rio, não é? Você marcou onde a água é mais funda?

    Silvestre assentiu, um pouco mais confiante.

    — É, chefe. É perto da pedra grande. Eu marquei, mas… a tinta correu.

    — Entendo. Para o nosso trabalho, preciso de coisas que não dá para colocar bem num papel. — Carlos baixou a voz para um tom conspiratório. — Preciso que você seja meus olhos lá fora. Preste atenção em quanto tempo leva para ir de um lugar a outro. Se o chão é firme ou mole. E o mais importante… — ele fez uma pausa dramática, — se você encontrar pedras que pareçam diferentes das outras, de cores estranhas ou mais pesadas, me traga um pedacinho. Essas pedras são mais valiosas para o mocambo do que um mapa perfeito. Elas podem nos dar o ferro para proteger todo mundo. Para proteger a Silvana.

    Os olhos do menino se incendiaram com um novo propósito. A missão abstrata e intimidante de “fazer um mapa” se transformara em algo tangível, importante e, acima de tudo, ligado ao seu maior motivador: a irmã.

    — Pedras diferentes… — ele repetiu, assimilando a informação. — Para proteger a Silvana. Sim, chefe. Eu vou encontrar. Eu vou trazer as melhores! Eu juro!

    Desta vez, não havia medo em sua voz, apenas uma determinação feroz. Ele deu um passo para trás, fez um aceno de cabeça rápido e saiu do escritório com uma energia contida, muito diferente da hesitação com que entrara.

    Carlos ficou olhando para a porta fechada, o coração pesado. Guardou o mapa na gaveta não como um fracasso, mas como um lembrete. Um lembrete de que por trás de cada par de mãos que trabalhava para o quilombo, havia uma história, um medo, uma razão para lutar. E ele havia acabado de lembrar a um menino assustado qual era a razão dele.

    Então seu olhar vagueou pela mesa até pousar, quase por acaso, no celular que mantinha em uma gaveta especial. O aparelho estava morto, sua tela escura refletindo o vazio de suas opções atuais. Um sorriso amargo lhe surgiu nos lábios.

    “Seria tão fácil se eu pudesse simplesmente tirar fotos aéreas… Uma pena que desde que cheguei a este mundo, essa coisa não passa de um peso de papel sofisticado.” Ele pegou o aparelho, sentindo seu peso familiar na palma da mão. Ainda sentia um alívio por têlo recuperado entre os pertences do Velho do Engenho, mas de que adiantava?

    No entanto, um novo pensamento começou a germinar em sua mente, uma ideia que misturava a lógica de seu mundo com as possibilidades deste. “Espera aí… Se neste mundo existe magia que controla o vento, o fogo, até o ferro…”, seus dedos tamborilaram na mesa, “será que não poderia existir uma Gema do Raio? Ou… uma Gema da Eletricidade?” O simples conceito fez seus olhos se iluminarem com uma centelha de esperança renovada. Era um tiro no escuro, mas era uma possibilidade. E atualmente, era a única que ele tinha.

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