Capítulo 96 - O Mapa e a Carta
O primeiro raio de sol mal havia começado a colorir o céu quando Quixotina abriu os olhos. A cama de algodão macia ainda a convidava a ficar mais alguns minutos, mas o hábito falou mais alto. Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro, onde a água corrente jorrou da torneira de metal com um som suave. Molhou o rosto, sentindo a frescura da água acordar seus sentidos.
“Como é bom não ter que ir buscar água no poço todas as manhãs”, pensou, enxugando o rosto com uma toalha de linho. “Minha vida pode ter se tornado monótona, mas não posso negar que esses luxos me agradam. Alguns até superam os confortos que tinha na nobreza.”
Vestiu-se rapidamente e desceu até a padaria da rua principal. O cheiro irresistível de pão fresco já impregnava o ar, misturando-se ao aroma do café recém-passado que alguns vizinhos levavam em suas canecas. Formava-se uma fila, mas o atendimento era ágil. Duas mulheres a reconheceram e cumprimentaram com respeito.
— Boa mana, professora! — disse a mais velha, com um sorriso que mostrava dentes desgastados pelo tempo. — A aula de ontem à noite foi muito boa, consegui juntar mais algumas letras!
Quixotina retribuiu o sorriso, sentindo uma ponta de orgulho.
— Que bom, dona Marta! Continuemos assim que logo a senhora estará lendo livros.
Com sua cesta contendo pães ainda quentes e pães de queijo douradinhos, voltou para o apartamento. “Nunca imaginei que voltaria a comer pão de trigo quando vim para este quilombo”, refletiu, organizando a mesa. “E, embora me custe admitir, devo isso à Tassi.”
Preparou a mesa com cuidado, colocando os pães em uma cesta de vime, potinhos de geléia de morango e um pequeno jarro de mel. Então foi ao quarto de Dulcinéia. A menina dormia profundamente, seus cabelos escuros espalhados sobre o travesseiro de palha, um fio de saliva escorrendo do canto da boca.
Quixotina sentou-se na beira da cama e acariciou suavemente o rosto da filha.
— Dulcinéia, amor, é hora de acordar — sussurrou, com uma doçura que só usava com a pequena.
A menina mexeu-se, abrindo os olhos pesados de sono. A primeira coisa que viu foi o colar de ouro com a gema vermelha que sua mãe sempre usava, que balançava suavemente sobre ela.
— Bom dia, mãe… — murmurou, com voz ainda grossa de sono.
— Vamos levantar, meu amor. Temos que comer e você precisa ir para a escola — disse Quixotina, a menina de forma relutante desceu da cama enquanto sua mãe já começava a arrumar a cama.
Dulcinéia bocejou largamente, esfregando os olhos. E indo à cozinha, seguida por sua mãe.
Enquanto a menina se sentava à mesa e pegava um pão com geléia de morango, Quixotina preparou o seu, adoçando-o com mel. O cheiro doce do melado misturava-se ao aroma do pão fresco, criando uma atmosfera caseira e aconchegante.
Depois do café, as duas se dirigiram-se ao banheiro.
— Mãe… — começou Dulcinéia, com um tom de queixa. — Eu tenho mesmo que escovar os dentes? Nenhuma das outras crianças faz isso…
— Tem sim — respondeu Quixotina, com firmeza suave. — O tio Carlos explicou que isso ajuda a manter os dentes brancos e evita que fiquem cheios de cáries. E você não quer dentes cheios de buracos, não é?
Pegou as duas escovas de dentes — cabos de madeira bem lixados com cerdas de pelo animal limpas e organizadas. Entregou uma à filha e pegou dois potinhos de argila que continham a pasta de dentes.
— Agora coloque a pasta. Fiz questão de pedir uma com mel, para ficar mais doce para você — disse, abrindo o pote que exalava um leve aroma de menta e mel.
Dulcinéia passou a escova na pasta cremosa antes de suspirar, derrotada.
— Tá bom, mãe…
Enquanto escovavam os dentes, Quixotina observava a filha no espelho, garantindo que ela fizesse o movimento correto. O som das escovas contra os dentes ecoava no banheiro silencioso.
Depois de se trocarem, saíram para a escola. O dia de aulas passou sem incidentes, e Quixotina sentiu uma pontada de felicidade ao ver sua filha brincando com a filha da Ministra do Trabalho. “Pelo menos ela está fazendo boas amizades”, pensou.
Após as aulas, almoçaram em um restaurante simples mas limpo, onde o cheiro de feijão cozido e carne assada enchia o ambiente. À tarde, Dulcinéia ficou livre para brincar, enquanto Quixotina se dirigia à prefeitura para lidar com a papelada de seu trabalho como Ministra da Educação.
Em meio a pilhas de documentos, ouviu uma batida na porta.
— Entre! — chamou, sem levantar os olhos dos papéis.
Carlos abriu a porta, com uma expressão um tanto constrangida.
— Boa tarde, Quixotina. Desculpe interromper seu trabalho, mas preciso de uma ajuda.
Ela largou a pena com que escrevia e suspirou profundamente.
— Eu é que preciso de ajuda, Carlos. Cada vez mais pessoas do quilombo querem ter aulas. Se fossem só as crianças, já seria difícil, mas agora temos adultos também… — fez uma pausa dramática. — E sabia que há pessoas de outros mocambos querendo vir aqui para aprender a ler e escrever?
Carlos sentou-se à sua frente, acomodando-se na cadeira de madeira.
— Isso não é um problema, é ótimo! No fim, vamos precisar de mais e mais gente para trabalhar aqui na prefeitura e para dar aulas também. — Inclinou-se para frente, com um brilho nos olhos. — Por falar nisso, soube que vários adultos se destacaram nos estudos. Vamos fazer o seguinte: daremos todo o material para quem quiser estudar, e daqui a um mês faremos uma prova. Quem passar poderá vir trabalhar na prefeitura, com um bom salário, em um trabalho mais fácil e menos estressante… ou virar professor.
Quixotina pensou por um momento, os dedos tamborilando na mesa.
— Pode ser uma boa ideia, mas não diria que esse trabalho é menos estressante — retrucou, com um sorriso irônico. — Só olhe a montanha de trabalho que tenho, e ainda tenho mais aulas para dar à noite. É bom que me pague bem por essas aulas extras, viu? Nesse ritmo, vou conseguir pagar meu apartamento rapidinho… — Seu olhar tornou-se distante. — Ah, como sinto falta de sair pela mata, descobrir o que há na região, enfrentar monstros…
— É justamente sobre isso que preciso da sua ajuda — Carlos interrompeu, aproveitando a abertura. — Você está dando aulas para os gêmeos, não está? Pois bem, dei uma missão ao menino para sobrevoar a região e criar um mapa, mas… — fez uma careta. — O primeiro mapa que ele fez mal era legível. Como você é professora dele, pensei que poderia ajudá-lo nisso.
— Nossa, Carlos! — exclamou Quixotina, com uma risada misturada a um gemido. — Como eu queria te odiar por me dar mais trabalho agora! Mas… — seu olhar tornou-se pensativo.
— Isso parece interessante. Eu explorei bem a região e posso ajudar nisso! Pelo menos vai ser uma desculpa para me tirar dessa papelada toda. Conheço bem a área, podemos até explorar alguns lugares. Talvez eu possa colocar a irmã dele para ajudar… — sua voz baixou. — As crianças acabaram ficando com medo dela, algumas até a chamam de cachorro… Posso fazer todas as crianças ajudar no projeto do mapa. — Olhou para Carlos, antecipando sua preocupação. — Ah, não se preocupe, não farei elas fazerem nada perigoso. Apenas as colocarei para desenharem algumas partes, e isso vai motivá-las a aprender a escrever.
Carlos sorriu, aliviado.
— Que bom ouvir isso! Ah, isso me lembra… Já perguntei a todos no quilombo se conhecem alguma gema que produza raios, mas ninguém sabe de nada. Como você veio da Europa, talvez saiba de algo.
Quixotina inclinou a cabeça, curiosa.
— Gema do Raio? Para que você precisa dela?
Carlos tirou o celular do bolso, colocando-o sobre a mesa com cuidado.
— Queria tentar carregar a bateria do meu celular. Com ele, poderíamos tirar fotos aéreas da região, o que tornaria muito mais fácil fazer um mapa.
Quixotina olhou para o aparelho com fascínio.
— Que aparelho interessante… Você já comentou sobre essas fotos, são como desenhos hiper realistas, não são? — Sua expressão tornou-se perplexa. — Mas como o Silvestre poderia levar isso na forma de um pássaro e conseguir tirar essas tais fotos?
Nesse momento, Carlos ficou encarando o celular em silêncio por vários segundos, sua expressão mudando gradualmente de esperança para constatação.
— Realmente… não tem como um pombo ou uma águia tirar uma foto.
Quixotina não conseguiu conter-se. Começou com uma risada contida, que rapidamente evoluiu para uma gargalhada franca e contagiente. Ela riu até as lágrimas surgirem em seus olhos, enquanto Carlos permanecia sentado com uma expressão perplexa.
Quando finalmente conseguiu controlar a risada, limpou os olhos com as costas da mão.
— Bom — disse, ainda ofegante —, não conheço ninguém que use a Gema do Raio, mas meu tio conheceu um mercenário que supostamente tinha uma. — Olhou para Carlos com curiosidade renovada. — Mas agora você não precisa mais, não é?
Carlos pensou por um momento, seu olhar sério.
— Na verdade, a eletricidade pode ser usada para muitas outras coisas, então eu precisaria sim. E agora que temos dinheiro, poderia pagar um mercenário… — fitou Quixotina com esperança. — Você consegue falar com seu tio?
Ela balançou a cabeça lentamente.
— Nunca tentei, não desde que vim para cá… — seu olhar tornou-se triste. — Afinal, como eu poderia mandar uma carta? E com que dinheiro?
Carlos inclinou-se para frente, sua voz baixa e conspiratória.
— Escreva a carta que eu a entrego à Papisa. Ela pode nos fazer esse favor.
Quixotina ficou com os olhos marejados de lágrimas, que agora não eram de riso, mas de emoção genuína.
— Falar com meu tio depois de tantos anos… — sussurrou, sua voz embargada. — Isso seria maravilhoso! Vou escrever uma carta agora mesmo!
Imediatamente, ela pegou uma folha de papel e começou a escrever, suas mãos tremendo ligeiramente de empolgação. O som da pena arranhando o papel preencheu o escritório, enquanto Carlos observava com um sorriso satisfeito.

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