Capítulo 97 - Proposta de Paz
O ar dentro do barracão na Serra da Vitória estava pesado, carregado não apenas com o calor úmido que se infiltrava pelas frestas das madeiras, mas com a tensão palpável da reunião mais importante de suas vidas. Todos os chefes dos mocambos estavam ali, sentados em bancos rústicos ao redor de uma mesa comprida de madeira mal aplainada. O cheiro de suor, terra e um incenso leve que a Papisa queimara para purificar o ambiente misturava-se no ar abafado. Ganga Zumba, imponente em sua cadeira à cabeceira, observava todos com um olhar grave.
No centro da atenção, a Papisa Paula, vestindo suas vestes brancas imaculadas que pareciam brilhar na penumbra do barracão, ergueu o pergaminho oficial. O silêncio foi instantâneo, quebrado apenas pelo farfalhar do papel.
— PROPOSTA DE CONCORDÂNCIA E AJUSTE ENTRE O GOVERNO DE SUA MAJESTADE E O POVO DO QUILOMBO DE JABUTICABA — sua voz, clara e melodiosa, preencheu o espaço.
— Artigo Primeiro – DA CONCESSÃO DE LIBERDADE: Concede-se perdão geral e liberdade irrevogável a todos os habitantes atualmente estabelecidos em Jabuticaba…
Um suspiro coletivo percorreu a sala. Vários chefes trocaram olhares de esperança. “Finalmente”, pensou o Chefe Jabari, seus olhos marejando. “O reconhecimento que tanto lutamos para conseguir.”
— Artigo Segundo – DA MUDANÇA DE HABITAÇÃO: Em contrapartida, obrigam-se os ditos habitantes a desocupar completamente suas fortificações na Serra da Vitória, transferindo-se para o Vale da Palmeira…
Os rostos antes esperançosos se contraíram. “O Vale da Palmeira?” pensou o Espectro, seus dedos se apertando sobre a mesa. “Um campo aberto, sem defesa natural. É como trocar uma fortaleza por um curral.”
— Artigo Terceiro – DO ABANDONO DE ARMAS: …todas as armas de fogo, mágicas, encantadas ou de qualquer natureza… serão imediatamente entregues aos representantes da Coroa Portuguesa. Incluindo-se… os métodos, feitiços, fórmulas e quaisquer meios utilizados para sua aquisição, fabrico ou operação…
Carlos sentiu um frio na espinha. “Não só querem nossas armas, mas querem destruir nossa capacidade de produzir mais. É como pedir para um leão arrancar seus próprios dentes e garras.”
— Artigo Quarto – DO RECONHECIMENTO DA AUTORIDADE: …reconhecerão expressamente a autoridade de Sua Majestade o Rei de Portugal, submetendo-se às leis gerais do Reino…
Ganga Zumba assentiu lentamente, quase para si mesmo. “Um preço necessário”, ponderou. “A submissão formal em troca da liberdade prática.” Mas outros murmuravam, inquietos. “Leis feitas por eles, para nos controlar”, sussurrou uma chefe mais jovem.
— Artigo Quinto – DA RESTITUIÇÃO DE FUTUROS FUGITIVOS: …obrigados a capturar e restituir a seus legítimos senhores quaisquer escravos que… busquem refúgio entre eles…
O ar pareceu sair da sala. Vários líderes recuaram em seus assentos, como se tivessem sido golpeados. Maria levou a mão à boca, horrorizada. “Entregar nossos irmãos? Tornar-nos capitães-do-mato? Isto é uma afronta à nossa própria alma… Mas se for pela paz…”
— Artigo Sexto – DO SERVIÇO MILITAR: Os homens em estado de pegar em armas ficam obrigados a servir como milícia auxiliar para defesa do território…
Mohammed soltou um grunhido de desprezo. “Servir ao mesmo exército que nos caçou? Lutaremos e morreremos para proteger os interesses de quem nos escravizou?”
— Artigo Sétimo – DA RUPTURA DO ACORDO: O descumprimento de qualquer destes artigos por qualquer das partes dará por rompido o presente ajuste, retornando-se ao estado de guerra anterior.
“Uma corda pronta para ser puxada”, pensou Carlos, amargamente. “Qualquer desculpa, qualquer falso movimento, e a ‘paz’ se desfaz. Estaremos mais vulneráveis do que nunca.”
A Papisa enrolou o pergaminho.
— Esses são os termos. Agora darei licença para que discutam.
Ela se dirigiu à porta, mas a voz de Ganga Zumba a deteve.
— Não precisa sair. Eu aceito os termos do acordo.
O choque foi visível. A Papisa congelou, olhando de Ganga para Carlos.
Carlos ergueu-se, sua voz contida mas firme.
— Com todo respeito, Ganga, mas de que adianta sermos livres se devemos recusar outros que buscam a mesma liberdade? Isto corrompe tudo o que construímos!
Ganga bateu na mesa.
— E desde quando nossa missão é salvar todos os negros do Brasil? Minha mãe veio para se salvar, só isso!
O Espectro entrou na discussão, sua voz um contraste gelado.
— Isto não garante nossa segurança. Conheço o Vale da Palmeira, eu era um escravo da reigão. É plano, desprotegido. Seremos presas fáceis.
Maria, para surpresa de Carlos, falou ao lado de Ganga, seus olhos cheios de dor.
— E aqui? Teremos futuro? Quantos mais teremos que perder?
A discussão explodiu. A Papisa, vendo a fúria se alastrar, tentou sair novamente, mas Ganga a impediu.
— Fique! E lembrem-se — ele olhou para todos —, temos a Igreja como intermediária! Será que ousariam quebrar um acordo tão sagrado?
Carlos não pôde conter-se.
— A história do meu mundo está cheia de acordos quebrados, intermediários ou não! Basta usarem senhores de engenho “rebeldes” como bodes expiatórios!
Mohammed complementou, erguendo a voz.
— Com as novas armas de Carlos, temos uma chance real de vencer!
O Chefe Tau, seu rosto marcado pela dor, interveio.
— Mas quantos mais têm que morrer? Meu mocambo foi o que mais perdeu nos ataques com a gema Mboae. Às vezes, uma paz manchada é melhor que um rio de sangue.
A discussão se arrastou por horas intermináveis. Os argumentos se chocavam, as vozes se exaltavam e baixavam, mas nenhum consenso surgia. A fratura entre as duas visões era profunda, aparentemente irreconciliável. Em um momento de distração geral, quando a discussão atingia seu auge, a Papisa finalmente conseguiu se esgueirar para fora do barracão, buscando um refúgio bem-vindo no ar menos pesado do mocambo de Carlos.
Ela seguiu para o centro do assentamento, onde várias pessoas a reconheceram e cumprimentaram com respeito. Desta vez, seu interesse estava nas novidades que Carlos mencionara. Adquiriu várias escovas de dente com cabos de madeira entalhados e potinhos de argila contendo a pasta dental, maravilhando-se com a ingenuidade.
“Como é bom ser reconhecida e respeitada até aqui”, pensou ela, sentindo um calor de gratidão enquanto as pessoas se aproximavam para abençoá-la ou pedir suas orações. “Em meio a tanta discórdia, ainda há espaço para a fé e o progresso.”
O sol já começava a se pôr, pintando o céu com tons de laranja, roxo e vermelho, quando um guarda foi enviado para buscá-la. Ao vê-lo se aproximar com passos rápidos, a Papisa não pôde conter a pergunta que queimava em sua mente.
— Então? — ela perguntou, seus olhos cheios de esperança cautelosa. — Chegaram a um acordo?
O guarda, um homem jovem com o rosto marcado pela seriedade do momento, simplesmente balançou a cabeça, seu olhar era sombrio e preocupado.
— Não, Vossa Santidade — ele disse, sua voz quase um sussurro. — Não haverá acordo unânime. Haverá… uma partição no quilombo.
— Partição? — a voz da Papisa subiu involuntariamente, carregada de preocupação genuína. — Como assim, partição?
O guarda apenas balançou a cabeça novamente, evitando seu olhar.
— Não sei dos detalhes, Vossa Santidade. Apenas me chamaram para vir buscá-la e levá-la de volta ao barracão.
Após a subida silenciosa de volta à Serra da Vitória, a Papisa, agora com o coração pesado de apreensão, entrou novamente no barracão, seguida de perto por seus guardas. O ambiente dentro estava ainda mais tenso do que quando ela saíra.
Ganga Zumba ergueu-se, seu rosto uma máscara de resignação e determinação.
— Vossa Santidade — começou ele, sua voz grave ecoando na sala silenciosa —, como eu disse antes, eu vou assinar o acordo de paz. Porém, infelizmente, nem todo mundo no quilombo concorda com esta decisão. — Seu olhar pesado pousou sobre Carlos, Espectro e seus aliados, num gesto de acusação silenciosa. — Por isso, eu e os Chefes Maria, Tau, Kaion e Fernando sairemos do quilombo, junto com o povo dos nossos mocambos que busca a paz verdadeira!
Carlos bateu com a palma da mão na mesa, erguendo-se com ímpeto.
— Não! — sua voz era firme e desafiadora. — Quem sairão são vocês, os que desejam aceitar estes termos! Mas todo o povo, cada homem, cada mulher, deve ter o direito de escolher por si mesmo se querem sair com vocês ou se preferem ficar e lutar pelo quilombo que construímos juntos!
Ganga, seu rosto congestionado pela raiva, bateu novamente na mesa com força, fazendo todos pularem.
— Como ousa dizer que construiu junto esse quilombo! Foi eu e minha mãe que construímos esse quilombo! — ele gritou, seus olhos faiscando de fúria. — Mas tudo bem, as pessoas decidem seu próprio destino, porém as pessoas dos seus mocambos também podem escolher se irão ou não continuar neste caminho de conflito! — Ganga Zumba levantou-se completamente, seu olhar desafiador percorreu cada rosto — Espectro, Carlos, Jabari, Mohammed, Malik — antes de passar pela papisa com passos firmes e entregar o acordo, agora assinado por ele, em suas mãos trêmulas.
O documento, outrora um símbolo de esperança, agora parecia pesar como chumbo em suas mãos, um testemunho mudo da divisão que acabara de rasgar o quilombo ao meio.
O pesado silêncio que se instalou após a saída de Ganga Zumba e seus seguidores parecia mais alto que qualquer discussão. A porta de madeira do barracão fechou-se com um baque surdo e final, ecoando no espaço agora mais vazio. O som marcava não apenas o fim da reunião, mas o rompimento de uma comunidade.
Por um longo momento, ninguém se moveu. O ar ainda carregava o cheiro do incenso da Papisa, mas agora misturado ao aroma amargo da divisão e à poeira levantada pelos que haviam partido.
Então, o Espectro quebrou o silêncio. Ele se ergueu, sua figura imponente projetando uma sombra longa no chão de terra batida. Sem uma palavra, virou-se para Carlos e, com um movimento solene e deliberado, bateu o punho fechado sobre o coração – um gesto antigo de lealdade, usado pelos guerreiros mais experientes do quilombo.
Um a um, os chefes restantes – Jabari, Mohammed, Malik e os outros que haviam escolhido ficar – seguiram o exemplo. O som surdo de mãos batendo contra peitos encheu o barracão, um ritmo grave e uníssono que parecia selar um novo pacto. Não havia necessidade de palavras. Naquele gesto coletivo, no silêncio carregado de significado, estava decidido: Carlos era agora o novo líder do quilombo unificado.
O peso da responsabilidade assentou-se sobre os ombros de Carlos enquanto ele contemplava os rostos sérios que agora olhavam para ele. Eles não estavam apenas aceitando sua liderança – estavam entregando a ele o futuro de seu povo, suas esperanças e seus medos. O quilombo estava dividido, mas entre aquelas paredes, uma nova nação acabava de nascer.

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