Índice de Capítulo

    Tinhão, um homem magricela e nervoso, escondia-se atrás de um arbusto espesso na beira da estrada. O sol forte do meio-dia filtrado pela copa das árvores criava padrões movediços no chão de terra batida, e o ar úmido da mata carregava o cheiro doce de folhas apodrecendo e o perfume distante de flores silvestres. De sua tocaia, ele observava, com olhos ansiosos, o fluxo constante de carruagens que subiam e desciam a estrada poeirenta. O som dos cascos dos cavalos e das rodas rangindo era quase ininterrupto.

    “Merda”, pensou ele, a mão suada apertando o galho que usava para se apoiar. “Os boatos diziam que aqui estava cheio de comerciante ricos que seriam alvos fáceis, mas quase todo dia o pessoal da igreja passa por aqui! Aqueles soldados divinos sempre estão armados até os dentes! Quem disse que aqui seria um alvo fácil mentiu descaradamente para nós! E como se não bastasse, tem tanta carroça andando por aí que facilmente deve ter vários adeptos no meio, e eles não são nada fáceis de se roubar!”

    Ele resmungava baixo, sua frustração crescendo a cada grupo de guardas bem armados que passava. Finalmente, após um comboio particularmente imponente da igreja, a estrada pareceu esvaziar. Um silêncio relativo desceu, quebrado apenas pelo canto dos pássaros e pelo zumbido de insetos. Então, uma carroça solitária, puxada por um cavalo cansado, apareceu na curva.

    O coração de Tinhão acelerou. Ele se virou e sussurrou para o matagal atrás de si.

    — Afonso! Afonso, parece que finalmente a igreja parou de mandar guardas a todo momento. Olha só, só tem uma carroça sozinha!

    Do interior da folhagem, emergiu um homem grande e alto, com ombros largos e um rosto marcado por cicatrizes. Ele moveu-se com uma calma que contrastava com a agitação do companheiro. Sem dizer uma palavra, pegou a luneta que Tinhão lhe estendia e levantou-a para o olho, examinando a carruagem que se aproximava.

    Ele estudou a carga primeiro: a carroça estava cheia de sacos, que balançavam a cada solavanco. Um mau presságio. Isso significava que o condutor estava indo vender no quilombo, não voltando de lá com os lucros. Em seguida, seu olhar examinou os ocupantes. O cocheiro era um velho, com um chapéu de palha gasto e ombros curvados pela idade. Ao lado dele, porém, estava uma figura mais interessante: um jovem de pele negra, envolto em um manto surrado. Só dava para ver uma das mãos, magricela e totalmente enfaixada, pousada no colo.

    Afonso baixou a luneta, um grunhido baixo escapando de sua garganta.

    — Hunf. Ele não deve ter muito dinheiro vivo, é verdade. Mas desde que viemos para cá, não conseguimos nada. Estamos ficando com a bolsa vazia e a paciência curta. Vamos aproveitar essa chance.

    Seu olhar pesado percorreu o resto do bando, que se agachava na vegetação. Um aceno de cabeça quase imperceptível, e os homens começaram a se preparar em silêncio, ajustando gripes em lanças e verificando as gemas em seus colares e cajados. O ar, antes preenchido pelos sons da floresta, agora parecia carregado de uma tensão elétrica.

    ***

    Dentro da carruagem, o clima era pesado, mas por outros motivos. Seu Bastos guiava os cavalos com as rédeas frouxas nas mãos calejadas, seu corpo balançando no ritmo monótono das rodas. O cheiro do sal dos sacos atrás se misturava ao suor do cavalo e ao pó da estrada.

    Cof! Cof!

    A tosse rouca e úmida do jovem ao seu lado quebrou o silêncio. O velho lançou um olhar de relance para o passageiro, uma mistura de pena e uma leve irritação por ter sua paz interrompida.

    O jovem, recuperando o fôlego, falou com uma voz fraca.

    — Senhor, muito obrigado, de novo, por me levar na carroça até o quilombo.

    Bastos suspirou, olhando para a estrada à frente.

    — Rapaz, você já me agradeceu tantas vezes que perdi as contas. Pode parar com isso. Além do mais, você me pagou. Negócio é negócio.

    O jovem, sem conseguir olhá-lo nos olhos, começou a coçar uma ferida recente em seu braço, visível por um rasgão em sua túnica. A pele ao redor ainda estava vermelha e irritada.

    — Mas o senhor está me levando de graça agora… a carona, quero dizer. O pagamento foi só pelas roupas e pela comida.

    — E como eu já disse antes — replicou Bastos, com um fio de impaciência —, você está muito mal. Parece que um vento mais forte te derruba. E eu já estava indo para o quilombo mesmo, tenho que vender este sal todo lá. — Ele fez uma pausa, e sua voz baixou um tom. — Ainda não sou um velho sem coração para abandonar uma pessoa morrendo no meio do nada.

    O jovem encolheu os ombros, puxando o manto em volta do corpo como se buscasse proteção.

    — O senhor é muito bondoso. Lá em Gemas Gerais, o povo branco… não é assim. Quando pedi ajuda, a maioria apenas tentou me roubar o pouco que eu tinha.

    A conversa ficou suspensa no ar por um momento. Bastos sentiu um nó de culpa no estômago. Era verdade. Anos atrás, ele jamais teria aceitado um negro moribundo, um estranho completo, em sua carruagem. Mas fazendo negócios com o quilombo, compartilhando fumo e histórias à beira da fogueira, haviam plantado uma semente de mudança em seu coração endurecido.

    Ele cuspiu para o lado da carroça, tentando parecer indiferente.

    — Não esquenta a cabeça com isso, garoto. Sabe, no fim das contas, dinheiro não tem cor, não é? — Ele deu um leve puxão nas rédeas, desviando de uma pedra no caminho. — E, ironia do destino, quem atualmente está me dando mais lucro são justamente os negros do quilombo.

    Ao ouvir a palavra “quilombo”, os olhos do jovem se iluminaram com um vislumbre de esperança, ofuscando temporariamente a dor e o cansaço.

    — Tomará… tomará que o pessoal do Quilombo da Jabuticaba seja tão bom quanto dizem as histórias que correm por aí…

    Bastos, ao ouvir isso, deu uma risada curta e seca.

    — Agora é República do Brasil, pelo menos é o que eles gritam aos quatro ventos. Quilombo, coroa, reino, república… — Ele fez um gesto de desdém com a mão. — Para mim, parece tudo a mesma coisa. São apenas um bando de vagabundos que pegam nossos impostos para festejar e dar ordens. — Ele então mirou o cuspe em um alvo invisível na estrada. — Apesar de que… falam que o Carlos, o cara que lidera o lugar, é diferente. Talvez você consiga, de fato, ter uma vida boa por lá.

    — República? — o jovem perguntou, confuso, sua mente tentando decifrar o novo termo.

    A pergunta, porém, ficou pairando no ar, não respondida. De repente, um rangido agudo e violento estremeceu a carruagem. Videiras grossas e verdes, pulsando com uma energia estranha, brotaram do chão como serpentes, enrolaram-se nas rodas de madeira e as travaram com força brutal. O cavalo relinchou alto, assustado, e a carroça parou de repente, quase arremessando seus ocupantes para a frente.

    — MERDA! BANDIDOS! — gritou Seu Bastos, seu rosto pálindo instantaneamente enquanto via meia dúzia de homens pulando da mata para o meio da estrada, bloqueando completamente a passagem.

    Eles eram um bando heterogêneo: alguns com lanças enferrujadas, outro, mais magro, empunhando um cajado de madeira entalhado de onde as videiras se originaram. E na frente, um homem grande e alto — o mesmo que observara pela luneta — usava um colar de couro com uma gema âmbar incrustada, que brilhava suavemente. Ele segurava uma lança imponente e deu um passo à frente, seu rosto impassível.

    — Boa tarde, senhor — disse o líder, sua voz um rosnado baixo e controlado. — Sabe, eu não sou um homem que gosta de derramar sangue inocente tão perto dos domínios da cidade sagrada. Por isso, vamos facilitar: você apenas entrega todo o dinheiro que tem, e seguimos nossos caminhos em paz.

    — Seus vermes! — cuspiu Seu Bastos, a indignação superando temporariamente o medo.

    O bandido alto se moveu com uma rapidez assustadora. Em um instante, a ponta fria da lança estava pressionada contra o pescoço enrugado do velho, fazendo com que ele recuasse e encostasse na madeira da carruagem.

    — Como é?! — o bandido rosnou, seu hálito quente e azedo atingindo o rosto de Bastos. — Repete. Estou curioso.

    O velho tremeu, e toda a bravata se esvaiu. Sua voz saiu como um fio, trêmula e quebrada.

    — Me… me desculpe. Eu vou pegar o dinheiro. Ele fica… aqui numa caixa, atrás de mim…

    Enquanto Bastos se virava com dificuldade, seu corpo tremendo, o jovem ao seu lado não baixou os olhos. Ele encarou o bandido alto com uma intensidade silenciosa, seus olhos escuros faiscando em um rosto marcado por dezenas de cicatrizes antigas.

    O bandido notou o olhar fixo.

    — O que é que você tá olhando, pivete? — Ele então percebeu a rede de cicatrizes que cobriam o rosto e os braços visíveis do jovem. Seus lábios se curvaram em um sorriso cruel. — Mas você é um filhote de cruz-credo mesmo, hein? Só fica na sua aí, quietinho. Ou nem precisa se preocupar, é tão magro que é perigoso o vento te levar embora.

    Risadas grossas e nervosas surgiram dos outros bandidos, ecoando na estrada silenciosa. O som era áspero e hostil. Enquanto isso, Seu Bastos, de costas, tentava enfiar a chave, pendurada em um cordão no pescoço, na fechadura de uma pequena caixa de metal presa ao banco.

    O jovem, no entanto, não se mexeu. Seu rosto permaneceu uma máscara de ódio contido. Lentamente, com movimentos deliberados, sua mão enfaixada puxou de dentro do manto uma adaga curta.

    A adaga não era uma arma convencional. Seu cabo era de madeira escura e gasto, entalhado com runas simples que mais pareciam marcas de desgaste do que qualquer encantamento deliberado. Não havia guarda, tornando-a crua e direta em seu propósito. O que a tornava singular era a lâmina.

    Ela não era de metal, mas sim de uma gema negra como ébano, profundamente polida até atingir um brilho opaco e mortal. Ela tinha a forma e a estrutura das antigas adagas de obsidiana astecas — lascada, não forjada, com bordas irregulares que pareciam mais serradas do que afiadas, prometendo um corte que rasgava e despedaçava..

    Sem hesitar, ele pressionou a lâmina contra a palma de sua outra mão, fazendo um corte profundo.

    — Mas que merda voc— O bandido alto começou a dizer, sua expressão mudando de desdém para confusão.

    Ele não terminou a frase. No instante exato em que as palavras saíam de sua boca, sua cabeça simplesmente desapareceu do pescoço. Não houve um golpe visível, nem um ruído além de um sussurro úmido no ar. Tudo que sobrou foi seu corpo desgovernado, que permaneceu ereto por uma fração de segundo antes de desabar pesadamente no chão, jorrando sangue sobre a terra.

    — Mas que porra! — gritou um dos homens com lança, seus olhos arregalados de terror puro.

    Ele também perdeu a cabeça um instante depois, assim que o jovem fez um segundo corte, rápido e profundo, em seu próprio braço.

    Foi quando o homem do cajado de grama entendeu. Seu rosto contraiu-se em um misto de horror e fúria.

    — Seu verme maldito! Você vai ver só! — ele gritou, fincando a ponta do cajado no solo.

    As videiras na carruagem ganharam vida, sibilando pelo ar e se enrolando em torno do corpo do jovem, apertando como constritoras, tentando imobilizá-lo. O jovem, porém, nem sequer pareceu notar o constrangimento. Com um olhar frio e vazio, como se estivesse realizando uma tarefa mundana, ele levou a lâmina ao próprio peito, fazendo um terceiro corte.

    Desta vez, foi como se uma foice invisível e silenciosa varresse a estrada. Pop. Pop. Pop. As cabeças de todos os bandidos restantes, incluindo a do homem do cajado, desapareceram simultaneamente de seus ombros. Seus corpos caíram em um macabro sincronismo, o som de seus impactos abafados sendo o único ruído que restou.

    O silêncio que se seguiu foi mais aterrorizante do que qualquer gritaria. A poeira baixou lentamente.

    Seu Bastos, ainda segurando a pequena caixa de metal, estava paralisado. Seus olhos, muito abertos, fitavam o jovem, que agora se movia com uma calma perturbadora, pegando faixas limpas de dentro de seu manto e começando a enfaixar os novos cortes que havia infligido a si mesmo — na mão, no braço e no peito. O sangue escuro manchava rapidamente os panos brancos.

    O velho engoliu em seco, sua garganta seca como pó. A pergunta que queimava em sua mente finalmente conseguiu sair, em um sussurro rouco e cheio de temor.

    — Quem… quem é você, meu Deus? Que… que gema abominável é essa que você usou?

    O jovem terminou de apertar o nó da faixa no peito e ergueu os olhos para encontrar os de Bastos. Seu rosto estava exausto, mas seus olhos eram de um profundo roxo escuro eram poços profundos de dor.

    — É Nzambi. E quanto a gema que usei,  você quer mesmo saber? — sua voz era suave, mas carregada do peso de um segredo terrível.

    Seu Bastos olhou para os corpos decapitados espalhados pela estrada, depois para o rosto marcado do jovem. Ele balançou a cabeça rapidamente, negando, todo o seu corpo tremendo. A curiosidade havia sido substituída por um medo visceral e primordial.

    Sem dizer mais uma palavra, ele pegou as rédeas com mãos trêmulas, estalou a língua para o cavalo assustado e puxou-o para contornar os corpos. A carruagem, com as rodas agora livres das videiras, seguiu em frente, em direção à República, carregando um silêncio muito mais pesado do que antes.

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