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    Um século atrás, tanto o Brilho Estelar quanto o Névoa do Mar eram embarcações de escolta do Banido.

    No entanto, poucos sabem o que aconteceu com esses dois lendários navios depois de romperem com o Banido, ou como ambos se transformaram em suas formas atuais.

    O Névoa do Mar, agora comandado pelo Vice-almirante de Ferro, Tyrian Abnomar, passou por múltiplas reviravoltas antes de se tornar o principal navio de guerra da cidade-estado de Geada. Durante esse tempo, a embarcação recebeu os apelidos de ‘O Navio Insubmergível’ e ‘A Carcaça Que Respira’.

    Foi atingida repetidamente em combate, cada vez sofrendo danos quase fatais, mas algo parecia impedir seu naufrágio. Era como se um espírito imortal comandasse a embarcação, permitindo que ela escapasse, vez após vez, de destinos que pareciam selados.

    E a cada reparo—muitas vezes violando os princípios convencionais da engenharia naval—o Névoa do Mar se transformava ainda mais, até se tornar a colossal máquina de aço que agora navegava pelos mares.

    Dizem que o navio se alimenta diretamente de minério e ferro extraídos do fundo do oceano. E que, durante viagens noturnas sem testemunhas, ele gradualmente cresce por conta própria, desenvolvendo novas torres de canhão e placas de blindagem.

    Já o Brilho Estelar, legado da Bruxa dos Mares, Lucretia, permanece ainda mais envolto em mistério.

    Por raramente se aproximar do mundo civilizado, poucos tiveram a chance de vê-lo com os próprios olhos. Além de um seleto grupo da Associação de Exploradores e das frotas eclesiásticas que patrulham a fronteira, os capitães comuns do Mar Infinito jamais avistaram a embarcação.

    Os poucos que a viram descrevem-na assim:

    〖Aquele navio claramente já não pertence completamente ao nosso mundo. Ele certamente já naufragou pelo menos uma vez, perdendo metade de sua estrutura no Mar Infinito.

    Parte dele se tornou um espectro, preservando a aparência que tinha há um século. A outra metade, porém, foi distorcida pelo poder da bruxa, assumindo uma forma grotesca e estranha. Seu castelo de proa está coberto de artefatos amaldiçoados das profundezas do oceano, repleto de mecanismos zumbindo e encantamentos místicos.

    Nenhum humano caminha mais por seu convés. Tripulantes comuns foram substituídos por Autômatos de Cordas e bonecos amaldiçoados, que correm de um lado para o outro, operando a embarcação.

    Sem dúvida, esse navio é um cadáver flutuante—ou, melhor dizendo, meio cadáver, arrastando metade de sua alma.〗

    Lucretia lançou um olhar pelo convés de sua embarcação e assentiu, satisfeita.

    O Brilho Estelar estava em boas condições. Sua tripulação também estava animada.

    Ela sabia exatamente como o mundo enxergava seu navio—e também como enxergavam o Névoa do Mar de seu irmão. Muitos capitães os temiam, quase tanto quanto temiam seu pai, que havia retornado do Subespaço.

    Mas isso pouco lhe importava.

    No dia a dia, interagia com pouquíssimos humanos. E aqueles com quem escolhia lidar eram indivíduos de grande coragem, vasto conhecimento ou que já haviam experimentado verdadeiras aventuras.

    Afinal, apenas esses poucos conseguiam manter um diálogo racional e sensato com ela. E isso era o suficiente.

    Ela e seu irmão ainda eram considerados parte do mundo real, vistos como aqueles que ‘permaneceram ao lado da humanidade’. Mesmo que muitos acreditassem que o Névoa do Mar e o Brilho Estelar fossem amaldiçoados, essa percepção nunca mudava.

    No fim das contas, havia simplesmente coisas demais amaldiçoadas neste mundo.

    Quase todas as cidades-estado conviviam diariamente com um número incontável de anomalias e fenômenos. Havia até aqueles que descreviam a própria civilização humana moderna como algo ‘amaldiçoado’.

    Diante de um mundo onde tudo carregava alguma forma de maldição, não fazia mal reservar um espaço para duas embarcações peculiares.

    Lucretia desceu lentamente de seu palco mecânico, caminhando em direção ao convés de proa.

    Dois Autômatos de Cordas, usando máscaras cômicas, passaram por ela, emitindo ruídos metálicos ritmados. Logo depois, uma grande boneca de pano, feita de veludo, seda e fitas, correu até sua frente, agitando-se e falando em um tom agudo:

    “Senhora! Senhora! Bom dia! Bom dia!”

    “Já está quase na hora do almoço”, Lucretia respondeu distraidamente, desviando-se da boneca e avançando até a proa do navio, de onde pôde contemplar o horizonte.

    Diante dela, erguia-se uma imensa muralha cinzenta de neblina, tão colossal que parecia tocar tanto o céu quanto o mar. Como um véu colossal nos limites do mundo, sua presença emanava uma imponência e um peso indescritíveis.

    A Fronteira.

    Aquela grandiosa muralha de névoa possuía muitos nomes—Limite do Mundo, Grande Névoa, Barreira de Neblina—mas seu título mais formal era Cortina Eterna.

    Lucretia, porém, preferia chamá-la simplesmente de Fronteira.

    Era assim que seu pai a chamava.

    Normalmente, a Cortina Eterna existia como uma barreira circular, cercando todas as águas conhecidas e mantendo-se relativamente estável, com leves flutuações em seu alcance. Ela não se expandia, nem recuava, comportando-se como um fenômeno fixo da natureza.

    Porém, em raros momentos, partes da barreira surgiam repentinamente dentro dos territórios civilizados e começavam a desmoronar por dentro.

    Esse colapso desencadeava catástrofes inimagináveis.

    Quando isso acontecia, a neblina puxava consigo toda a matéria física ao seu redor, arrastando-a para as profundezas do mundo—às vezes, abrindo até mesmo portais diretos para o Subespaço.

    Esses eventos eram conhecidos como Colapsos da Fronteira.

    Para os marinheiros experientes do Mar Infinito, um Colapso da Fronteira era uma ameaça muito mais terrível do que tempestades, redemoinhos ou até mesmo surtos de loucura coletiva.

    A única boa notícia era que esse tipo de colapso acontecia raramente.

    Lucretia passava a maior parte de seu tempo nas regiões limítrofes, observando e estudando a Fronteira. Tentara, inúmeras vezes, analisar os padrões da neblina e compreender por que ela, ocasionalmente, colapsava por dentro.

    Cem anos atrás, seu pai também tentara fazer o mesmo.

    Mas, até hoje, ninguém conseguiu desvendar os segredos da Cortina Eterna.

    O que exatamente seu pai descobriu naquela época? Ou talvez… o que foi que ele ouviu dentro da neblina, que o levou a decidir atravessar aquela barreira em busca da Anomalia 000?

    Lucretia desviou o olhar da Fronteira.

    Não era sensato encarar a Cortina Eterna por muito tempo.

    Não havia nenhuma evidência concreta de que aquela neblina devorava mentes ou afetava pensamentos, mas… em alto-mar, especialmente longe das cidades civilizadas, olhar fixamente para qualquer coisa podia ser perigoso.

    Afinal, quem sabia que tipo de entidade poderia viajar através de um olhar?

    Foi então que um longo apito de navio rompeu o silêncio da fronteira.

    Lucretia virou-se para o som e viu sombras emergindo da neblina. Pequenas silhuetas começaram a tomar forma, e, conforme se aproximavam, o formato de embarcações tornou-se visível.

    Eram três navios—as mais modernas embarcações de aço, movidas por poderosos núcleos a vapor. Estavam se aproximando do Brilho Estelar, mas essa era apenas uma coincidência.

    A outra frota foi a primeira a soar o apito, um gesto de saudação.

    Na Fronteira, qualquer um que não fosse um Deus Antigo do Subespaço já era um bom encontro.

    “Senhora”, Luni aproximou-se, sua voz mecânica ecoando suavemente.

    “São inspetores do clero, uma patrulha da Igreja… Identificação visual confirma que pertencem à Igreja dos Portadores da Chama.”

    “… Apenas os Portadores da Chama e os devotos da Tempestade seriam imprudentes o suficiente para patrulhar tão perto da Cortina Eterna.”

    Lucretia suspirou levemente.

    “Todos uns malucos suicidas.”

    “Devemos responder?” Luni perguntou.

    “… Toquem a buzina em saudação”, Lucretia respondeu suavemente.

    “Pela civilização que ainda persiste.”


    Naquele dia, a loja de antiguidades estava tranquila, com poucos clientes.

    Fora um conjunto de enfeites sem valor vendido pela manhã, ninguém mais havia entrado.

    Nina estava sentada ao lado do balcão, segurando um livro de engenharia mecânica. Ela examinava atentamente os intricados diagramas, rabiscando anotações em seu caderno de rascunhos de tempos em tempos.

    Duncan, sentado atrás do balcão, folheava um livro de história, ocasionalmente fazendo anotações em seu caderno.

    Somente Shirley não tinha nada para fazer.

    Ela queria voltar para casa, mas não tinha coragem de sair.

    Ela também queria conversar com Nina, mas não entendia nada daquilo que a amiga estava estudando.

    Depois de vagar pela loja por um tempo, circulando repetidamente entre os estantes, ela finalmente resmungou:

    “Estudar é realmente tão divertido assim?”

    “Claro que sim!” Nina respondeu sem tirar os olhos do livro. “E eu tenho provas finais chegando. Preciso estudar o máximo possível.”

    Duncan ergueu os olhos e olhou para Shirley.

    “Se está tão entediada, pode ler um livro também… Eu tenho aqui um da História das Cidades-Estado, quer dar uma olhada?”

    Shirley lançou um olhar para os livros na mesa de Duncan.

    Ela abriu a boca para responder, mas hesitou por um momento antes de admitir, visivelmente constrangida:

    “Eu… eu não sei ler…”

    Duncan parou imediatamente de ler.

    Até Nina ergueu a cabeça, surpresa.

    “O que foi essa reação?” Shirley arregalou os olhos, parecendo magoada. “Eu já falei que me infiltrei na escola. Nunca fui alfabetizada, então é tão estranho assim eu não saber ler? Fui criada por um cachorro!”

    Duncan realmente não esperava por essa revelação.

    Mas, vendo a expressão dela, seu sentimento não era surpresa—e sim empatia.

    “Então você conseguiu se infiltrar na escola sem saber ler?” Ele comentou, pensativo. “Não sei dizer se isso foi muita autoconfiança ou confiança demais na habilidade de interferência cognitiva do Cão.”

    “A interferência cognitiva do Cão é muito confiável!” Shirley retrucou imediatamente. “Ele só… só…”

    O rosto dela ficou levemente corado, e as palavras pareciam travar na garganta.

    Duncan, no entanto, já sabia o que ela queria dizer.

    Ele sorriu levemente.

    “Você já consegue argumentar comigo sem medo—viu só? Não é tão assustador, não é?”

    “Isso, isso!” Nina, completamente alheia ao significado mais profundo da conversa, resolveu entrar na discussão. “Meu tio é super gentil! Ele até teve uma fase meio irritada, mas agora já melhorou!”

    “Eu…” Shirley abriu a boca, mas, de repente, não sabia como responder a essa dupla.

    Ela ficou parada por um momento, tentando encontrar palavras, mas não conseguiu dizer mais nada.

    Duncan apenas sorriu e balançou a cabeça.

    Mas, antes que pudesse falar de novo, uma presença familiar surgiu repentinamente em sua percepção.

    Duncan imediatamente ficou atento.

    No instante seguinte, ele identificou de onde vinha essa energia—

    Vanna.

    A jovem Inquisidora estava se aproximando rapidamente da loja de antiguidades.

    E com muita urgência.

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