Hora da Recomendação, leiam Fagulha das Estrelas. O autor, P.R.R Assunção, tem me ajudado com algumas coisas, então deem uma força a ele ^^ (comentem também lá, comentários ajudam muito)
Talvez passe a usar mais esse espaço para recomendar outras obras (novels ou outras coisas que eu achar interessante ^^)
Capítulo 155: Dúvidas
O olhar de Vanna permaneceu sobre aquele registro por alguns segundos. A perspicácia de uma Inquisidora permitia-lhe perceber, mesmo nessas palavras sucintas, indícios que mereciam atenção.
Um ato herético de sacrifício surgindo repentinamente entre cidadãos comuns, com um alvo que não possuía validade, um ritual sem os requisitos necessários que, ainda assim, atraiu o interesse de uma força sobrenatural… um surto de loucura localizado, sem qualquer investigação posterior…
De repente, Vanna se lembrou de algo. Largou o arquivo que segurava e rapidamente abriu outro registro que havia consultado momentos antes.
No mesmo ano, 1889, um pouco mais cedo, houve um incidente em um estabelecimento comercial na Cidade Baixa: um ataque com arma branca. Normalmente, esse seria um caso tratado exclusivamente pelo Departamento de Segurança Pública, sem qualquer motivo para estar nos arquivos da Igreja. No entanto, a investigação subsequente revelou que o agressor era um cliente que, de forma abrupta, sofreu um distúrbio mental dentro da loja. O suspeito alegou ter visto uma sombra profana refletida na vitrine do estabelecimento e, tomado pelo desespero, pegou uma faca para ‘se defender’ da ‘perseguição de algo invisível’.
Durante a investigação, a Igreja descobriu vestígios de culto herético no porão da loja. No entanto, os símbolos do ritual estavam desordenados e ilegíveis, sem conexão com qualquer entidade reconhecida. Após interrogatório, constatou-se que o dono da loja, responsável pelos atos de sacrifício, sequer compreendia a natureza dos ritos. Ele havia sido guiado por uma ‘orientação desconhecida’.
Mais uma vez, um sacrifício realizado sem qualquer fundamento ritualístico, que teoricamente não deveria surtir efeito, provocando surtos de loucura localizados. Mais uma vez, sem qualquer conclusão investigativa adicional.
Vanna franziu levemente as sobrancelhas. Esses dois eventos aparentemente não tinham relação com o vazamento da fábrica de onze anos atrás, tampouco com o incêndio apagado da história. Não havia qualquer correspondência temporal entre eles. Contudo, encontrar dois casos de culto herético semelhantes em registros tão próximos… isso atiçava seus instintos de Inquisidora.
Após um breve momento de reflexão, ela deixou os arquivos de lado e voltou a vasculhar as prateleiras, buscando registros subsequentes. Dessa vez, ela se permitiu prestar mais atenção, ativamente procurando por incidentes que pudessem estar ligados ao culto herético.
Não sabia quanto tempo havia se passado quando, de repente, ela parou.
Um terceiro registro.
Ainda antes do chamado ‘vazamento da fábrica’, ocorreu outro incidente nos arredores do Distrito Superior. Uma empregada que trabalhava em uma casa de nobres sofreu um surto repentino de violência. Após ferir gravemente três criados e o próprio senhor da residência, trancou-se dentro de um depósito. Quando os Guardiões da Igreja e os oficiais da lei chegaram e arrombaram a porta, a mulher já havia tirado a própria vida.
No depósito, foram encontrados símbolos de sacrifício entalhados às pressas com um punhal. Em seu quarto, descobriram vestígios de um culto herético—mais uma vez, a oferenda era dedicada a uma entidade sem qualquer validade reconhecida, e o ritual não seguia qualquer protocolo adequado. No entanto, ao contrário dos casos anteriores, esse sacrifício não enlouqueceu os presentes, mas sim a própria sacrificante.
Já era o terceiro caso…
Se, ao ler os dois primeiros registros, Vanna apenas havia ficado ligeiramente atenta, ao encontrar o terceiro, sua expressão tornou-se completamente séria.
Sua mente trabalhava rapidamente, organizando as informações dos registros e analisando-os de acordo com o tempo e o local onde ocorreram.
Os eventos estavam dispersos, sem relação temporal direta e ocorrendo em locais distintos. Não havia, teoricamente, nenhuma conexão entre os envolvidos.
Além disso, nenhum dos incidentes parecia estar ligado à fábrica onde ocorreu o vazamento há onze anos. As investigações subsequentes também não encontraram qualquer envolvimento da Prole do Sol.
Vanna respirou fundo e continuou sua busca nos arquivos. Não demorou muito até que encontrasse os documentos sobre o vazamento da fábrica.
Aquele fora um evento de grande magnitude, com impactos amplos e que resultara na maior captura de hereges em quase três décadas. A gravidade do caso exigira um dossiê exclusivo, um volumoso arquivo repleto de imagens e relatórios de interrogatório.
No entanto, Vanna demorou pouco para revisá-lo.
Ela já conhecia aquele conteúdo de cor. Ao longo dos anos, consultara aqueles documentos incontáveis vezes.
Pelo visto, nem mesmo nos arquivos ocultos nas profundezas da catedral havia informações adicionais sobre o vazamento da fábrica de onze anos atrás.
Vanna devolveu o arquivo à prateleira e continuou folheando os registros. Então, de repente, percebeu algo.
Após o incidente do ‘vazamento da fábrica’, não havia mais registros de eventos semelhantes aos três casos de culto herético que encontrara.
O vazamento ocorreu no meio do ano. Havia ainda seis meses inteiros de registros, e, no entanto, nenhum outro caso parecido havia sido documentado.
Isso deu a Vanna uma sensação estranha—como se aqueles cultos heréticos, que não deveriam ter funcionado, mas misteriosamente funcionaram, tivessem surgido em massa antes do incidente da fábrica… e, então, o próprio acidente se tornou um marco, um ponto de ruptura, depois do qual todos os cultos desapareceram abruptamente.
Claro, isso também podia ser explicado de maneira lógica: após o vazamento na fábrica, a Igreja e as autoridades realizaram uma captura em massa, prendendo milhares de cultistas. Esse grande expurgo enfraqueceu severamente as forças heréticas dentro da cidade-estado, então era natural que nos seis meses seguintes não houvesse mais registros de cultos hereges.
Mas, por algum motivo, Vanna sentia que os eventos aparentemente desconexos não podiam ser explicados de forma tão simplista.
Ela parou diante da grande estante e, após um longo momento de reflexão, voltou ao ponto de partida. Pegou novamente o primeiro arquivo sobre os ‘cultos heréticos’ e começou a folheá-lo, mergulhada em pensamentos.
Os eventos eram dispersos, perdidos em meio a uma infinidade de registros de desastres e incidentes aleatórios. Se não fosse por sua insistência em revisar tudo com minúcia e pela sensação incômoda que já carregava desde o início, provavelmente nem ela teria notado que havia algo estranho.
Mas estranho era estranho. E uma vez que a suspeita surgisse, a sensação de desconforto crescia como uma semente plantada em seu coração, impossível de ignorar.
Enquanto Vanna examinava os documentos com seriedade, passos ritmados e calmos ecoaram nas proximidades. Um cheiro peculiar de óleo de máquina, misturado com incenso, veio junto com o som.
Ela levantou a cabeça e viu o velho sacerdote responsável pelo arquivo se aproximando.
Ele mancava levemente ao caminhar—claramente, não era apenas a mão direita que sofrera um ferimento, mas também suas pernas.
“Essa hora o arquivo está praticamente vazio, então resolvi dar uma olhada”, o velho sacerdote sorriu. “Encontrou o que procurava?”
Vanna soltou um leve suspiro e recolocou o arquivo no lugar. “Encontrei alguns registros, mas não as respostas que queria.”
“Respostas?” O sacerdote arqueou a sobrancelha com curiosidade. “Que tipo de respostas procura?”
Vanna não respondeu de imediato. Em vez disso, fez uma pergunta aparentemente irrelevante:
“Há quanto tempo você trabalha aqui?”
“Ah, isso já faz bastante tempo… deixe-me pensar… cerca de vinte anos”, disse o sacerdote, rindo. “Desde que aqueles hereges lunáticos explodiram uma bomba caseira e me fizeram perder uma mão e uma perna, tenho ficado por aqui.”
Vanna refletiu por um instante e, movida pela curiosidade, perguntou:
“Este lugar é sempre tão silencioso? Outras pessoas costumam vir aqui consultar esses arquivos, como eu fiz hoje?”
“O arquivo costuma ser bem silencioso na maior parte do tempo—há quem venha consultar registros, mas nunca são muitos”, disse o velho sacerdote com um sorriso. “Os livros são a memória da humanidade, e esta biblioteca de arquivos é o local onde as lembranças mais profundas repousam. O que é guardado aqui são ‘casos encerrados’ ou ‘documentos sigilosos’ considerados inadequados para divulgação. Uma vez arquivados, esses registros são enterrados junto com o passado, selados pelo tempo.
“A cidade-estado está sempre repleta de eventos diários incontáveis. Todos estão ocupados caminhando rumo ao amanhã—quem teria tempo para voltar e remexer nesses arquivos lacrados? Além disso…”
O sacerdote interrompeu-se por um instante. Ele ergueu a cabeça e olhou para as prateleiras repletas de volumes empilhados até quase tocarem a abóbada do teto. Ficou assim por um longo momento, antes de continuar em tom mais baixo:
“Além disso… às vezes, os arquivos armazenam mais do que meros registros do passado. Às vezes, é a própria ‘história’ que está selada dentro dessas páginas. Nosso mundo—seu passado, presente e futuro—está sustentado sobre bases instáveis. Mexer demais nesses registros pode não ser muito saudável para a mente… ou para o corpo.”
“… Isso soa como um alerta dos Portadores da Chama.”
“Sim, eles costumam advertir sobre esse tipo de coisa”, o velho sacerdote assentiu levemente. “Eles guardam a história e estão sempre preocupados com algo antigo ressurgindo das eras passadas e corrompendo as fundações do nosso mundo. Na verdade, são tão sensíveis a isso que algumas pessoas acreditam que aqueles Pregadores do Fim, que espalham a doutrina da ‘poluição apocalíptica’, são Portadores da Chama que caíram em heresia.”
Ele balançou a cabeça e sorriu, como se risse da própria lembrança. “Quando era jovem, tive bastante contato com alguns membros da seita dos Portadores da Chama. Ouvi muito sobre suas teorias—embora sejam diferentes dos ensinamentos da Deusa da Tempestade, ainda assim pertencem ao círculo dos Deuses Verdadeiros. Há certas coisas em suas crenças que realmente valem a reflexão.”
Por alguma razão, enquanto ouvia o velho sacerdote falar, Vanna sentiu sua mente se acalmar pouco a pouco. Respeitava aquele homem que dedicou a maior parte de sua vida à Igreja e, por isso, não se importou em continuar a conversa. Com um tom mais leve, perguntou casualmente:
“O senhor ainda mantém contato com esses amigos?”
“Não mais”, o velho respondeu lentamente, balançando a cabeça. “Certa manhã, percebi que nunca soube seus verdadeiros nomes… Então, provavelmente já morreram como mártires.”
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