Capítulo 168: O Presságio se Espalha

O Bispo Valentine, ainda com os olhos semicerrados de sono, foi surpreendido pela chegada apressada de Vanna à catedral no meio da noite. Mas no instante em que ouviu a primeira frase que ela disse, despertou completamente.

“O Capitão Duncan entrou no seu sonho?!”  O velho bispo arregalou os olhos para Vanna, tão atônito que chegou a duvidar se realmente havia acordado. “Aquele capitão fantasma procurou você por conta própria… só para te contar sobre um lugar e pedir que investigasse?”

“É verdade — embora eu saiba o quanto isso soa inacreditável”, Vanna assentiu com firmeza. Já havia previsto, no caminho até ali, que essa seria exatamente a reação do velho bispo. Mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso — afinal, ela própria ainda estava tão perplexa quanto ele. “A capela do Sexto Distrito… foi a informação mais importante que o capitão fantasma revelou durante a breve conversa que tivemos.”

O velho bispo silenciou por um instante. Virou-se de costas e ergueu o olhar para a estátua da Deusa da Tempestade no fundo do santuário. Não se sabe quanto tempo se passou até que ele quebrasse o silêncio, com um tom carregado de preocupação:

“Vanna, você ainda se lembra da contaminação que sofreu no local do ritual herético nos esgotos? Na época, realizamos uma purificação corretiva… mas agora, ao que tudo indica…”

“Eu entendo o que o senhor quer dizer.” Vanna respirou fundo, mantendo o semblante sereno. “Pelo visto, a purificação jamais teve sucesso. O Banido ainda me persegue, e aquele capitão fantasma… já conseguiu estender seu poder até os meus sonhos.”

“E você ainda está em estado de plena lucidez?” Valentine se virou, olhando diretamente nos olhos dela.

“Sim. Testei isso no caminho até aqui. Consigo recitar, sem erro, meu próprio nome e o nome da Deusa, além de trechos do Cânone da Tempestade.” Vanna assentiu. “Pelo que parece, a contaminação ainda está em estágio superficial. Até agora, só os sonhos foram afetados. Ela ainda não se espalhou para meu corpo ou conduta no mundo real.”

“Contaminação superficial, mas impossível de erradicar… como um tipo de contagem regressiva inevitável…”
A voz de Valentine soava grave, e seus olhos transbordavam preocupação. “E justamente você é a Inquisidora de Pland. No momento, ninguém pode ocupar seu lugar…”

Vanna sabia exatamente o que o velho bispo queria dizer.

Ela havia sido contaminada por uma força sobrenatural de alto nível. Como Inquisidora da Igreja, isso fazia dela uma espécie de ‘fortaleza’ — uma que já começava a ruir por dentro. E uma fortaleza prestes a cair não é confiável. Ninguém sabe até que ponto essa contaminação pode avançar, ninguém sabe se, ao acordar no dia seguinte, ela ainda será a mesma Vanna. Hoje, ela ainda é leal à Deusa da Tempestade. Mas no momento seguinte… ninguém sabe a quem, de fato, sua lealdade pertencerá.

Se fosse um Guardião comum ou um sacerdote de baixo escalão que tivesse sofrido esse tipo de contaminação, a situação seria muito mais fácil de resolver — bastaria um período de reclusão e alguns rituais de exorcismo, algo simples de administrar. Ou, caso a cidade-estado estivesse em tempos de paz, ela poderia simplesmente transferir suas responsabilidades a um assistente e se isolar nos níveis mais profundos do templo, para receber o mais alto grau de ‘isolamento seguro’ e ‘purificação pela graça divina’. Mas…

Agora, ela era a Inquisidora. E sua posição era insubstituível — mesmo que a Igreja da Tempestade fosse acionada diretamente, a sede não teria como resolver o problema a tempo.

“…Não posso abandonar meu posto.” Após refletir por um breve instante, Vanna balançou a cabeça. Sabia que estava colocando o velho bispo numa encruzilhada, mas precisava continuar cumprindo seu dever. “Tenho um pressentimento muito ruim. Estamos prestes a encarar uma verdadeira e gigantesca crise. E essa crise talvez nem tenha relação direta com o Banido ou com o Fragmento do Sol. Há uma sombra ainda maior espreitando nas profundezas desta cidade-estado. Num momento como esse, não posso entregar a função de Inquisidora a ninguém — nem mesmo ao meu assistente de maior confiança.”

Valentine percebeu, pela mudança sutil no tom da voz dela, que algo era ainda mais sério do que aparentava. Franziu levemente o cenho.

“Uma crise além do Banido e do Fragmento do Sol? Você descobriu alguma coisa?”

“…Estava investigando alguns registros no Arquivo”, respondeu Vanna, assentindo com um ar ainda mais sério. “A princípio, eu planejava lhe relatar isso pela manhã, mas agora vejo que a situação é mais grave do que imaginava, e precisa ser tratada com mais urgência. Comecei a desconfiar da coincidência temporal entre a aparição do Fragmento do Sol e certos eventos em Pland, então pesquisei registros de 1889 e anos anteriores. Descobri uma quantidade incomum e densa de anotações sobre cultos heréticos — registros classificados como de baixa prioridade, mas numerosos e estranhamente concentrados…”

Enquanto Vanna narrava os detalhes, os olhos do Bispo Valentine iam se arregalando pouco a pouco.

“Esses registros estavam lá o tempo todo, esquecidos em nosso próprio Arquivo?” Quando Vanna terminou de falar, Valentine mal conseguia conter a surpresa. “Ninguém percebeu isso até hoje? Nem mesmo sobre aquele sumiço dos documentos de 1885…?”

“Ninguém viu. É como se uma parte da nossa cidade-estado tivesse sido ‘roubada’. Certas verdades óbvias simplesmente desapareceram da consciência coletiva”, respondeu Vanna em tom grave. “E esse tipo de ‘desaparecimento’… não parece algo causado por um Fragmento do Sol.”

Valentine apertou o cajado com força. As articulações dos dedos ficaram esbranquiçadas de tensão.

“Você acredita que isso tenha relação com a informação passada pelo ‘Capitão Duncan’ no sonho?”

“Não tenho certeza. Mas, para começar, ‘roubar realidades de uma cidade-estado’ não é algo dentro das capacidades do Banido. E se fosse obra daquele capitão fantasma… não faria sentido ele me contaminar apenas para depois me entregar a pista mais importante. Isso não condiz com o comportamento descrito nos registros, onde ele aparece sempre como uma força caótica e violenta”, analisou Vanna com frieza. “A menos que… ele tenha mudado completamente de personalidade, virando um demônio debochado que brinca com o mundo… ou então…”

“Ou então?”

“Ou então virou um cidadão preocupado com a segurança da cidade, e resolveu me reportar o perigo”, Vanna abriu as mãos.

“Cof, cof! Isso é praticamente uma piada de nível subespacial!” Valentine engasgou com a resposta e lançou um olhar severo para Vanna. “Já estamos cientes de que você foi marcada por uma entidade de ordem superior. Não brinque comigo com esse tipo de absurdo. Isso me faz duvidar do seu estado mental.”

Enquanto falava, o velho bispo bateu levemente no próprio peito, tentando regular a respiração. Só então voltou a encarar Vanna com seriedade: “Além de você, mais alguém tem conhecimento das anomalias encontradas no Arquivo?”

Vanna pensou por um instante e balançou a cabeça: “Só eu. Fui investigar por conta própria…”

Ela interrompeu-se de repente, como se sua mente tivesse travado por um segundo, mas logo voltou a afirmar, sacudindo a cabeça: “Fui eu mesma que consultei os registros.”

“Então menos mal… Se há de fato uma força consciente por trás de tudo isso, é provável que ainda não tenha percebido que sua trama foi descoberta.” Valentine soltou um longo suspiro e, com pesar, teve de concordar com o que Vanna dissera antes. “Você realmente não pode abandonar sua função agora… Imagino que já tenha um plano de investigação montado com base nesses registros?”

“Sim. Inclui ações conjuntas com a prefeitura.”

“Comece amanhã mesmo. Eu te darei todo o apoio necessário”, Valentine assentiu de imediato. “Além disso, relatarei o que aconteceu aqui diretamente à Suma Pontífice. Espero que a Catedral da Tempestade possa nos fornecer algum tipo de auxílio…”

Enquanto dizia isso, o velho bispo parou para refletir por alguns segundos, e então perguntou: “Você ainda consegue orar normalmente à Deusa?”

“Consigo”, Vanna respondeu sem hesitar. “A conexão entre mim e a Deusa não foi afetada por aquele sonho.”

Valentine franziu levemente a testa: “Mas a Deusa não lhe enviou nenhum aviso ou revelação sobre a contaminação mental que sofreu?”

“…Não”, Vanna hesitou por um breve instante, mas acabou assentindo. “A Deusa não me alertou.”

Valentine levou a mão ao queixo, pensativo. Após alguns segundos de silêncio, ergueu o olhar e fitou os olhos de Vanna: “…Durante esse período, você deve obrigatoriamente retornar à catedral para dormir. Nada de pernoitar fora da Igreja. Além disso, deve portar o Cânone da Tempestade com você em toda e qualquer atividade externa. E se, em qualquer situação, sentir cansaço ou sonolência anormal enquanto estiver na rua, deve se dirigir imediatamente à igreja mais próxima. Consegue cumprir isso?”

“Consigo, sim.”

“… Hmph. Espero que não interprete isso como um castigo ou desconfiança”, O velho bispo suspirou, e mesmo após a resposta firme de Vanna, não conseguiu deixar de comentar: “Você não pode ser afastada do seu cargo neste momento — e não há nenhum clérigo em Pland com uma posição mais alta que a sua para supervisioná-la. Essa é uma medida de segurança mínima, pensada para garantir que você ainda possa continuar exercendo suas funções…”

“Fique tranquilo, é claro que eu entendo”, respondeu Vanna com um leve sorriso, tranquilizando o velho bispo diante dela. “Eu compreendo perfeitamente, tanto quanto o senhor, o tipo de perigo com que estamos lidando. Comparados aos predecessores que tombaram por falta de experiência ou base teórica, nós conseguimos continuar lutando sob a proteção das regras — já é uma grande sorte.”

Ela fez uma breve pausa e então prosseguiu: “Sobre a capela do Sexto Distrito…”

“Precisa ser investigada. Independente do motivo pelo qual aquele ‘Capitão Fantasma’ tenha te procurado, temos que verificar o que há naquela capela”, Valentine assentiu lentamente. “Aliás… acabei de tentar me lembrar quem é o responsável por aquela paróquia, e por mais que eu force a memória, não consigo. Isso por si só já indica que há algo muito errado ali.”

“Certo. Amanhã eu mesma lidero a equipe e vou até lá.”

“Ótimo”, Valentine concordou com um aceno, e então lançou um olhar curioso para Vanna: “Além da questão da capela… aquele capitão fantasma disse mais alguma coisa?”

Talvez fosse melhor não ter perguntado, pois no mesmo instante a expressão de Vanna ficou estranha.

Valentine franziu o cenho: “…Que cara é essa?”

“Ele… realmente disse mais uma coisa. Algo extremamente absurdo”, Vanna respondeu, hesitante. “E eu não sei se devemos ou não levar isso a sério…”

“E por que não deveríamos? Quanto mais absurda for a frase, maiores as chances de ela conter a chave de tudo!” Valentine arregalou os olhos. “O que ele disse, afinal?!”

Vanna hesitou por mais dois segundos, respirou fundo, e por fim declarou com toda seriedade:

“‘Vamos fritar umas batatas.’”

Valentine: “……”

Houve um silêncio absoluto por alguns instantes, até que o velho bispo finalmente conseguiu reagir:

“É sério isso?”

“Com a mesma certeza com que creio na Deusa.”

“…É… de fato… isso ultrapassa qualquer escala de absurdo…”