Hora da Recomendação, leiam Fagulha das Estrelas. O autor, P.R.R Assunção, tem me ajudado com algumas coisas, então deem uma força a ele ^^ (comentem também lá, comentários ajudam muito)
Talvez passe a usar mais esse espaço para recomendar outras obras (novels ou outras coisas que eu achar interessante ^^)
Capítulo 170: Abalo
Demorou um bom tempo até que Vanna desviasse o olhar da janela do carro.
Seu principal objetivo naquele dia era investigar a pequena capela, mas, desde que adentrou o Sexto Distrito, ela percebeu que havia algo estranho na atmosfera de toda a região. Isso a fazia suspeitar… talvez cada centímetro deste distrito precisasse ser inspecionado com atenção.
Após ponderar por um momento, ela estendeu a mão e pegou um grosso maço de documentos que repousava no assento ao lado.
Eram os arquivos que ela requisitou junto à prefeitura antes da operação — com sua autoridade de Inquisidora e baseando-se nos dispositivos do ‘Regulamento Especial de Execução para Incidentes Anômalos’, ela obteve todos os registros municipais relacionados ao Sexto Distrito nos últimos anos. Já havia lido parte desses documentos no caminho até ali.
Os papéis da prefeitura não eram arquivos sigilosos nem tratavam de nenhum grande caso ou evento extraordinário. Muito pelo contrário — Vanna solicitou justamente os registros mais simples e básicos:
Leituras de gás, pagamento de contas de energia, impostos comerciais, fornecimento de água, aquecimento, coleta de lixo, patrulhamento de segurança…
As páginas se viravam com agilidade, e o olhar de Vanna percorria os documentos rapidamente.
Se havia algo que seus anos como Inquisidora lhe haviam ensinado em termos de ‘experiência investigativa’, era uma lição absolutamente fundamental —
É no cotidiano mais banal das ruas que costumam se esconder os primeiros vestígios de fenômenos extraordinários.
Cercado pelo Mar Infinito, o mundo está repleto de anomalias e aberrações. Diante dessas ameaças que espreitam a humanidade, o ‘cotidiano pacífico’ das cidades-estado é o maior tesouro que existe neste mundo. Para os cidadãos comuns de Pland, a vida pacata já se tornara algo rotineiro — mas para os combatentes que lutam há anos contra tais anomalias e fenômenos, a verdade é clara:
Um raio de sol pela manhã, uma refeição quente sobre a mesa, o pregão de um vendedor na rua, e um simples ‘boa noite’ antes de dormir — tudo isso são milagres contínuos.
Paisagens sublimes que a humanidade levou dez mil anos para construir sobre um mundo à beira do colapso.
Qualquer invasão de um fenômeno extraordinário deixará cicatrizes visíveis sobre essa paisagem.
“Notou algo estranho?” A voz do Guardião que dirigia soou do banco da frente. O jovem guerreiro da Igreja percebeu o leve franzir de cenho de Vanna. “Faltam arquivos da prefeitura?”
“Muito pelo contrário. Todos os registros municipais estão completos.” Vanna balançou a cabeça suavemente. “Água, energia, gás, aquecimento, esgoto — tudo está documentado, e os valores estão incrivelmente equilibrados. Razoáveis até demais.”
“Mas… seu semblante diz o contrário…”
“Não há nenhum caso de segurança pública registrado.” Vanna ergueu levemente as pálpebras. “As ocorrências policiais estão completamente em branco. Além disso, os registros de recém-nascidos também estão vazios. E não há nenhum registro de falecimentos entre os residentes.”
O Guardião que dirigia arregalou levemente os olhos; através do retrovisor, Vanna pôde ver a expressão de incredulidade estampada no rosto do jovem.
“Uma anomalia evidente, não é?” murmurou Vanna. “Um distrito, durante todos esses anos, sem crescimento nem queda populacional, sem nenhum incidente de segurança registrado, nem sequer uma briga de rua… Nem os lugares mais seguros do Distrito Superior conseguem alcançar esse nível. E, ainda assim, todos os registros de água, energia, gás e aquecimento estão devidamente preenchidos, tudo em perfeito equilíbrio. Dá a sensação de que…”
Ela fez uma pausa, lançando um olhar pela janela: “Como se todos os moradores daqui fossem apenas um bando de fantasmas dóceis… Vivendo em silêncio dentro dessa área isolada, sem aumentar nem diminuir em número, sem conflitos internos, sem qualquer contato com o mundo externo — apenas consumindo recursos normalmente e enviando periodicamente à prefeitura um sinal de que ‘tudo está normal por aqui’. E, apesar de tudo isso ser tão absurdamente estranho… ninguém prestou atenção por todos esses anos.”
O carro mergulhou num silêncio pesado, quebrado apenas pelo som abafado do núcleo a vapor em funcionamento. Depois de um tempo indefinido, Vanna sentiu uma leve sacudida no veículo.
“Chegamos àquela capela.”
Vanna ergueu os olhos — do outro lado da janela estava a capela comunitária, que em algum momento havia desaparecido do ‘campo de visão’ da catedral principal.
Por fora, parecia um prédio abandonado há mais de uma década.
Era esse o local que o terrível Capitão Fantasma havia indicado a ela.
As chamas espectrais voltaram a tomar forma em sua memória — e com elas, aquela figura sombria e imponente, eternamente fixa no centro de seu campo de visão. No instante seguinte, Vanna inspirou fundo, sussurrou suavemente o nome sagrado da Deusa da Tempestade, Gomona, pegou sua arma e desceu do carro.
Uma rajada de vento frio soprou da extremidade da rua, levantando folhas secas ao longo da calçada. Vestidos de preto, os Guardiões acompanharam a Inquisidora com cautela, aproximando-se da capela abandonada.
As folhas mortas estalaram sob seus pés, emitindo um som tênue e quebradiço — como se pequenas chamas estalassem ao consumir madeira podre.
De repente, um bater de asas veio do alto. Em meio às folhas que ainda dançavam no ar, Vanna ergueu os olhos e viu uma pomba branca pousar no pináculo da capela com um suave bater de asas.
A pomba inclinou a cabeça, observando com curiosidade os guardiões que se espalhavam ao redor do templo.
‘Uma pomba branca… símbolo de calmaria e bons presságios?’ um pensamento estranho cruzou a mente de Vanna sem motivo aparente. Em seguida, ela ignorou o pássaro repentino e se aproximou da porta entreaberta da capela, empurrando-a com delicadeza.
Uma luz quente e acolhedora banhou seu rosto — e diante dela surgiu uma freira, com um sorriso gentil nos lábios.
“Seja bem-vinda, irmã. Há muito tempo ninguém visita esta capela…”
A voz suave da freira ecoou nos ouvidos dos guerreiros da Igreja.
Lâmpadas a gás iluminavam as fileiras entre as estantes de livros, espalhadas com precisão. A luz forte dissipava as sombras entre os antigos arquivos, enquanto passos pesados e lentos ecoavam pelo ambiente, acompanhados pelo murmúrio grave do velho sacerdote:
“Fila sete, coluna seis… fila sete, coluna seis… registros de 1885, devem estar por aqui… devem estar por aqui…”
O velho sacerdote parou diante da estante.
Ergueu o olhar — aquela estante colossal, quase como um gigante, parecia observá-lo em silêncio. Os registros que preservavam a memória histórica da cidade-estado estavam dispostos de forma ordenada, como se fizessem parte dos ossos e da carne daquela criatura gigantesca.
Seus olhos pousaram sobre alguns dos volumes e, lentamente, estendeu a mão.
Ouviu-se um ruído metálico — o som do leve atrito das engrenagens de seu braço mecânico de latão, com um leve tom de ferrugem.
“Finalmente encontrei!” Os olhos do velho sacerdote brilharam repentinamente, e sua voz transbordava entusiasmo contido. “Estavam escondidos aqui o tempo todo… E pensar que eu e a Inquisidora Vanna procuramos por tanto tempo!”
Seus dedos tocaram os documentos.
Os passos pesados e lentos continuaram ecoando entre as estantes, acompanhados pelos murmúrios graves do velho sacerdote:
“Fila sete, coluna seis… fila sete, coluna seis…”
“Finalmente encontrei!” repetiu com brilho nos olhos, estendendo a mão em direção aos arquivos. O braço mecânico de latão chiou ao se mover, com um ruído de ferrugem. “Estavam escondidos aqui mesmo… e pensar que procuramos tanto, eu e a Inquisidora!”
Seus dedos estavam prestes a tocar os volumes.
Os passos pesados e arrastados reverberavam pelo arquivo.
O velho sacerdote parou abruptamente.
Levantou a cabeça, o pescoço movendo-se com rigidez, como se estivesse enferrujado. Fitava em silêncio as estantes gigantescas, alinhadas com precisão diante dele, e via uma a uma as lâmpadas a gás queimando entre os corredores. As colunas adornadas com padrões de ondas do mar permaneciam imóveis entre as estantes.
Então, um suave som de ondas invadiu sua mente, e por um breve instante, a lucidez retornou à sua mente antes enevoada.
Os protocolos de segurança do Arquivo foram ativados? Quem os ativou? Por quê? Fui eu? Quando foi que os ativei? O que estou fazendo aqui…?
Um calafrio percorreu seu corpo. Instintivamente, sua mão buscou o revólver de grosso calibre preso à cintura — mas, no instante seguinte, ele percebeu algo estranho.
Seu braço, antes ágil, agora estava incrivelmente rígido e pesado. O som metálico que saía das articulações era agudo e desagradável — como se um monte de sucata abandonada há décadas estivesse sendo esmagada.
Ele olhou, surpreso, para o braço mecânico de latão — mas o que viu foi um membro enferrujado, coberto de zinabre1 , com um líquido escuro e espesso vazando pelas juntas metálicas.
Ao baixar o olhar, viu suas roupas em frangalhos… e sua perna esquerda, também mecânica, vazando óleo negro sem parar.
Era como se tivesse passado anos perambulando dentro daquele arquivo.
O velho sacerdote fitava, atônito, os sinais de degradação espalhados por seu corpo. As memórias seladas em sua mente finalmente começaram a se afrouxar. De súbito, muitas coisas voltaram à tona — lembranças distantes, como se viessem de uma vida passada: a visita da Inquisidora, a investigação dos documentos, registros estranhos de cultos heréticos, um ano inteiro que havia desaparecido…
Então, a Inquisidora deixou o Arquivo.
E ele… ficou. Continuou sozinho, buscando os registros desaparecidos do ano de 1885…
O som suave das ondas voltou a ecoar — desta vez, mais forte que antes, embora ainda parecesse abafado por uma espessa cortina, como se viesse de outro tempo e espaço.
Mas mesmo esse som tão longínquo foi o suficiente para clarear ainda mais sua mente. À medida que as lembranças se soltavam, sua lucidez e discernimento também retornavam com força. No instante seguinte, ele compreendeu, enfim, o que poderia estar acontecendo.
Um imenso fenômeno — Não um simples caso de anomalia… Não uma entidade maligna extraordinária… Não uma conspiração… Nem mesmo um evento sobrenatural isolado… Era algo muito maior — Um fenômeno colossal!
A cidade-estado de Pland estava no epicentro de um imenso fenômeno!
“Estamos perdidos!”
O velho sacerdote gritou, alarmado, e girou o corpo com esforço, arrastando sua carcaça agora pesada e rígida em direção ao seu posto de trabalho.
No instante seguinte, parou abruptamente.
Uma sombra negra e estranha havia aparecido, sabe-se lá quando, no interior do Arquivo.
Mesmo em ambiente fechado, aquela figura bizarra segurava um guarda-chuva preto — um objeto grotesco, como se estivesse tentando se proteger de uma luz solar que sequer existia naquele lugar.
- Azinhavre, zinabre, azebre, cardenilho ou verdete é a camada de cor verde resultante da oxidação do cobre ou ligas que contêm cobre, como o latão.[↩]
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