Capítulo 203: Os Dois Lados do Véu
A chuva caía em torrentes. Toda a cidade-estado de Pland estava envolta por uma tempestade sem precedentes.
Era como se o mar estivesse virado de cabeça para baixo — os Abismos Infinitos observavam a terra do alto dos céus, como se o mundo inteiro estivesse despencando no vazio. Nuvens negras como tinta pairavam no alto como placas de ferro, e a chuva incessante varria os antigos campanários, os altos edifícios, os muros de pedra e a costa escarpada de Pland. Ondas agitadas vinham do mar sem parar, como se quisessem formar um cerco, selando a cidade-estado por todos os lados.
Mesmo os mais insensíveis haviam percebido que havia algo de anormal nessa tempestade — uma tensão esquisita no ar. Os cidadãos corriam de volta para suas casas, portas e janelas se fechavam em todos os lares. Até os mendigos se enfiaram nos abrigos ou centros de ajuda mais próximos; os menos afortunados se esconderam nas bocas de esgoto ou nas estações de válvulas e trocas — lugares onde ao menos havia lampiões a gás e o calor do vapor sagrado, capazes de fornecer alguma segurança em meio ao dilúvio.
Foi em meio a esse vendaval que Heidi correu até a praça da grande catedral — talvez ainda sob a proteção da deusa, pois a chuva ao redor da catedral era levemente menos intensa que no restante da cidade. No entanto, essa trégua aparente não a tranquilizou — ao contrário, deixou-a ainda mais preocupada.
Se a chuva era mais branda ao redor da catedral, isso só podia significar que havia forças sobrenaturais envolvidas — e que a tempestade tinha origem anômala.
Os guardas do templo abriram os portões. Heidi saltou do carro e correu em direção às sagradas portas triplas da catedral. Em poucos passos, seu corpo já estava completamente encharcado pela chuva gelada.
Mas ela não teve tempo para se importar com isso. No momento em que pisou dentro da igreja, sentiu a inquietação vibrando no ar ao seu redor — era seu espírito avisando, alertando que uma “conflito invisível” estava se formando, com aquele lugar como epicentro.
Um monge silencioso veio recepcioná-la. Após insistência firme, Heidi foi anunciada ao Bispo Valentine, que estava em oração no santuário principal. Ela esperou, ansiosa e aflita, por três longos minutos — até que o ancião finalmente surgiu diante dela.
Heidi logo notou que o bispo vestia seu traje completo de cerimônia. Uma pesada tríplice coroa estava corretamente colocada sobre sua cabeça; ele segurava um cetro sagrado longo, e à cintura levava o Cânone da Tempestade, ricamente adornado com prata e gemas.
Essa indumentária não era para ocasiões comuns — era usada apenas nos mais importantes rituais. Pesada e imponente, seria o suficiente para exaurir até mesmo um adulto forte após alguns passos. Ainda assim, Valentine caminhava com firmeza e majestade. Em seus olhos parecia haver relâmpagos prestes a cair; sua presença era elevada, carregada de santidade — por um breve instante, ele deixava de ser um homem e se tornava algo simbólico. Foi assim que ele se colocou diante de Heidi, encarando-a com seriedade sob a tempestade, e perguntou:
“Filha, o que aconteceu?”
“Eu… eu preciso de abrigo — do nível mais alto possível!” Heidi respondeu de imediato, recordando-se da advertência severa que o pai fizera antes de partir. Seu rosto estava carregado de solenidade. “Quero que toda a Catedral da Tempestade entre em alerta, para me proteger — proteger a filha do mais notável historiador de Pland!”
“O mais notável historiador de Pland…” murmurou o Bispo Valentine, encarando profundamente os olhos de Heidi. Em seu olhar, parecia saltar um relâmpago constante. Então, ele fechou os olhos por um momento e assentiu levemente.
“Recebi seu pedido, minha filha. A catedral lhe concederá abrigo. Você está segura agora.”
“Muito obrigada”, disse Heidi, respirando fundo. Seu olhar não se desviou do ancião nem por um segundo. Ao vê-lo trajando aquela indumentária completa, ela já havia compreendido que a catedral havia entrado em estado de alerta antes mesmo de sua chegada. “Por favor… o que exatamente está acontecendo?”
“É uma guerra”, respondeu Valentine com serenidade. “Alguém declarou guerra contra Pland — uma tempestade que não recebeu a bênção da deusa recaiu sobre a cidade-estado. Isso é o sinal de que a guerra começou. Mas foi apenas com a sua chegada… que eu soube quem é o inimigo.”
“Guerra?!” Heidi ficou boquiaberta. “Quem é o inimigo? Onde estão?!”
Valentine manteve os olhos fixos nela, em silêncio por alguns instantes, antes de responder suavemente:
“É Pland — …uma Pland que já foi apagada da história.”
Um trovão estrondoso explodiu, sacudindo todo o templo como se algo tivesse desabado sobre ele. Heidi levou um susto enorme. Ergueu os olhos em pânico, observando os vitrais que ainda tilintavam sob o impacto do trovão, e o pesado lustre sobre sua cabeça, balançando perigosamente. No meio daquele tremor e oscilação, ela percebeu outra vibração — algo distinto do trovão.
Era o som do ajuntamento de máquinas a vapor na praça. O estrondo dos tanques blindados da Guarda Sagrada saindo de seus abrigos.
Assustada, Heidi virou-se e encarou o bispo Valentine, que permanecia imóvel diante da estátua da deusa, tão firme quanto um rochedo no mar. Ela disparou: “O inimigo está vindo?!”
“O inimigo já chegou”, respondeu Valentine calmamente. E mesmo em meio ao barulho incessante dos trovões, suas palavras soaram cristalinas aos ouvidos de Heidi. “Eles chegaram… muitos anos atrás.”
A espada colossal desceu com um estrondo, varrendo os escombros que bloqueavam o caminho como se fossem poeira. Vanna, empunhando sua lâmina, avançou por um trecho da estrada em ruínas. À frente, os edifícios desabavam como estátuas de cera em meio ao fogo. Cinzas espessas e quentes cobriam as ruas como neve, e fagulhas dançavam entre os escombros, voando e se apagando no ar. Criaturas humanoides rastejavam lentamente por entre as cinzas, horrendas demais para se encarar — sua aparência era grotesca, lamentável.
Vanna se esforçou para não prestar atenção àquelas formas humanas contorcidas no chão.
Ela sabia muito bem o que eram — cidadãos de Pland, todos aqueles que ela conhecia, protegia e amava. Haviam perecido no incêndio que consumira a cidade-estado inteira, sem deixar sobreviventes.
Eles morreram naquela linha do tempo corrompida e, agora, as chamas imortais moldavam essas sombras macabras e trágicas, perturbando seus sentimentos e distorcendo seu julgamento.
A jovem inquisidora umedeceu os lábios secos e pálidos. Sentia a garganta sendo irritada pouco a pouco pela poeira quente que impregnava o ar. Sentia sua força física se esvaindo. Mais uma vez, repetiu para si mesma:
Isso tudo não aconteceu. E não vai acontecer.
Ela ergueu os olhos e olhou para o fim da rua.
Entre as cinzas que se contorciam e as faíscas dançantes, podia-se ver de vez em quando um lampejo de chama verde-espectral, fugaz e fantasmal — a marca deixada por um certo capitão espectral nesse fragmento de história corrompida. A posição daquele Capitão Fantasma nesse evento permanecia estranhamente ambígua. Vanna não conseguia discernir suas intenções — apenas sabia que seu poder havia, em algum momento, se infiltrado por trás do Véu e agora se espalhava por essa Pland destruída. E mais: parecia que essa força estava lutando contra o poder que distorcia a história.
E no fim do caminho à sua frente, estava o destino de sua jornada — um dos “alvos” que ela havia estabelecido para si nesta Pland devastada.
Uma pequena capela ainda erguia sua estrutura principal intacta em meio ao incêndio — silencioso, na extremidade da rua.
Ela havia cruzado a cidade-estado a pé até ali, até a capela do Sexto Distrito.
Para ser mais precisa: ela abrira caminho na força da espada por metade da cidade-estado.
Vanna avançava com sua espada em punho, superando todos os obstáculos. A porta da capela estava caída. O salão iluminado pelas brasas revelava-se de forma obscura à sua frente.
Já não havia luzes cálidas no corredor. Nem altar limpo, nem freiras jovens em oração.
Vanna atravessou os escombros direto até os fundos do salão principal e encontrou a escada inclinada que levava ao subsolo.
Ao fim da escada, uma porta de madeira escura permanecia fechada e imóvel.
Ela soltou o ar devagar, aliviando a dor e o cansaço nos ossos e articulações, e começou a descer.
A metralhadora giratória que desmontara de um andador já havia quebrado e fora descartada no caminho. Agora, restava-lhe apenas sua velha espada gigante, fiel companheira de longos anos.
Aproximou-se da porta com a arma em mãos e empurrou-a levemente.
Estava trancada — apenas por um fecho simples. Do outro lado, ninguém a prendia com força.
Vanna podia sentir levemente a presença do outro lado. Algo se movia. Um som sutil escapava.
Ela forçou a mão — o cadeado se rompeu com um estalo metálico, e a porta do santuário subterrâneo se escancarou.
Uma voz jovem, surpresa e tensa, soou imediatamente do outro lado:
“Não abra essa porta!!”
Ao mesmo tempo, parecia haver um ruído sutil embutido naquele aviso.
“Sou uma das suas —”, disse Vanna ao empurrar a porta. Sua espada arranhava o chão, soltando faíscas. Adentrou o santuário enquanto o lampião pendurado à sua cintura continuava iluminando a escuridão,
“— sua irmã de combate.”
A penumbra do santuário recuou diante da luz.
Uma freira empunhando uma espada longa estava sob os pés da estátua da deusa. Ela observava Vanna com total vigilância — era jovem, trajava o velho hábito cerimonial de 1885.
No ano em que morreu… ela tinha praticamente a mesma idade de Vanna.
Vanna a encarou, suspirando levemente.
Como previra: apenas dentro deste Véu distorcido, ela conseguiria entrar no santuário subterrâneo antes da morte da freira. Aquele breve momento antes do sacrifício fazia parte da contaminação da história.
A pequena capela do Sexto Distrito era o primeiro ponto de distorção.
A jovem inquisidora finalmente havia obtido a informação mais importante — Mas… como, afinal, ela poderia reportar tudo isso?
“Irmã…?” A freira de espada em punho começava a se acostumar com a súbita iluminação. Parecia só agora perceber que o santuário subterrâneo estava completamente às escuras, e que, em algum momento, havia se posto de pé no meio da escuridão total. Abaixo de seus pés, na treva, algo parecia se agitar.
Ela ergueu o rosto e observou a figura alta diante da luz fraca — e finalmente notou o símbolo da Igreja da Tempestade no peitoral da armadura e na espada da recém-chegada:
“Você veio da catedral? Saia daqui depressa! A contaminação aqui já está fora de controle. Enquanto eu ainda…”
Vanna balançou a cabeça e avançou, com voz firme:
“Vim ajudá-la.”
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