Capítulo 216: A Hospitalidade a Bordo do Banido
A superfície do mar estava calma, a brisa era agradável, as ondas suaves e lentas, e o sol não era muito forte. Se não fosse pelo conhecimento dos horrores que se escondiam sob aquelas águas profundas, a cena poderia até ser considerada uma bela paisagem.
Era como se o pesadelo aterrorizante de pouco tempo atrás — em que toda a cidade-estado fora arrastada ao apocalipse e ardia em chamas — jamais tivesse acontecido.
No alto do convés de popa do Banido, o pesado leme negro girava lentamente por conta própria, ajustando seu ângulo sem que ninguém o comandasse, enquanto as velas próximas também se reposicionavam aos poucos.
Nina estava sentada na borda do convés elevado, com o tronco apoiado sobre a amurada e as pernas balançando para fora do navio. Duncan, por sua vez, sentava-se em um grande barril ao lado dela.
“…É uma sensação muito estranha. Eu sei que você é o meu tio Duncan, sei que é alguém em quem posso confiar e depender, mas ao mesmo tempo, outro ‘fato’ também é muito claro…”
Ela falava quase consigo mesma, em voz baixa e pausada.
“Eu tinha um tio. Ele era uma pessoa comum. Era um homem bom, honesto, trabalhador… Mas, depois, ele mudou. Ficou doente, começou a beber, a jogar, ficava irritado com facilidade… A situação só piorava a cada dia. Naquela época, eu até tinha medo de voltar para casa…
“Mas então, de repente, ele melhorou. Como num sonho. A saúde dele voltou, o temperamento também melhorou, e o ambiente em casa ficou como era antes… na verdade, ficou até melhor do que antes. E desde então… eu pensava com frequência que, se você pudesse ser o meu tio para sempre, seria tão bom.”
Duncan franziu levemente a testa.
“Você já havia percebido naquela época?”
“Mais ou menos… mas eu não tinha certeza. E tinha algo que eu nunca entendi direito”, Nina virou o rosto, olhando para cima, “se era mesmo aquele tipo de ‘espírito maligno’ dos livros que tomou conta da minha casa, por que ele era tão bom para mim?”
Duncan olhou nos olhos de Nina. Após alguns segundos, ele de repente sorriu.
“Eu sou muito mais forte do que um espírito maligno.”
“Isso dá pra perceber agora — e você também é muito mais gentil que um espírito maligno”, Nina sorriu também, recostando a cabeça na amurada com uma expressão preguiçosa. “Você é o tio Duncan, certo?”
“Sou. E posso ser isso para sempre.”
“Isso é ótimo… Me sinto bem mais tranquila assim”, Nina suspirou suavemente. Depois de um tempo em silêncio, falou com hesitação: “E o meu outro tio… ele se foi em paz?”
Duncan se recordou da noite em que, pela primeira vez, pisou verdadeiramente na cidade-estado de Pland.
Um cultista fanático sem salvação, que deu seu último suspiro nos túneis frios e úmidos dos esgotos. Seus companheiros sombrios já planejavam lançar o corpo nas profundezas da escuridão, e em sua mente entorpecida, restavam apenas ódio venenoso e uma devoção distorcida ao Sol Negro.
Mas ainda havia ali um fiapo de humanidade… uma lembrança de uma sobrinha com quem partilhava a vida.
Que seja por essa fagulha de humanidade.
“Ele partiu em paz. E agora, imagino que finalmente tenha alcançado o descanso”, disse Duncan em voz baixa. “No fim, havia poucas coisas que o preocupavam… e você era uma delas.”
“Então está tudo bem”, Nina suspirou suavemente, como se finalmente tivesse deixado para trás o último peso em seu coração. Ela se espreguiçou com força e se deixou cair de costas sobre o convés, de onde as velas espirituais e semitranslúcidas do Banido se refletiam em seus olhos. “Aconteceu tanta coisa ultimamente… principalmente hoje… Você pode me contar? Aquelas coisas que ainda não me disse — sobre este navio, sobre você… e sobre mim.”
Duncan se levantou do barril e deitou-se ao lado de Nina, lentamente.
“Isso vai levar um bom tempo… Seu tio aqui tem muitas histórias pra contar…”
“Resumindo, o Capitão Duncan é simplesmente incrível…”
No vasto convés do Banido, Alice estava empolgada descrevendo aos ‘visitantes’ as proezas do capitão. Já falava sem parar havia um bom tempo, e ao menos dois terços dessas façanhas ela ouvira do Cabeça de Bode. Histórias que, inicialmente, já vinham cheias de exageros, e que agora passavam por mais uma filtragem caótica da Srta. Boneca — a ponto de estarem tão distorcidas que nem humanos normais conseguiriam entendê-las direito.
Nem o próprio Duncan acreditaria em metade daquilo caso ouvisse — e nem a própria Alice conseguiria repeti-las da mesma forma se tentasse outra vez.
Mas, ainda assim, Shirley e Morris escutavam com atenção extraordinária. Até mesmo o Cão ao lado havia largado o jornal e agora ouvia de orelhas bem erguidas.
Nenhum deles achava que as histórias mirabolantes de Alice eram absurdas — mesmo quando ela insistia que o Banido, na verdade, possuía duas pernas gigantescas sob o casco e corria sobre o leito do oceano como um monstro tresloucado, o que explicaria sua velocidade absurda.
Afinal, tratava-se do comandante de uma força do Subespaço. Tratava-se do Banido. O maior cataclismo dos mares infinitos. Se não fosse completamente absurdo, não seria convincente. Quanto mais inverossímil, mais fazia sentido.
Na frente deles estava a ‘Srta. Alice’, alguém com status estabelecido a bordo do Banido, seguidora direta do Senhor Duncan — e, pasmem, alguém que se atrevia a apertar as bochechas do capitão dentro da Loja de Antiguidades. Tudo o que ela dissesse… tinha que ser verdade.
“Não é à toa que é o Banido mesmo…” Morris bateu palmas em admiração. Passara a vida inteira mergulhado nos estudos e só agora, diante de Alice, percebia o quão limitada era sua compreensão. “Já li muitos artigos sobre este navio, autores que, sem sair do quarto, conseguiam escrever livros inteiros só com a imaginação… mas agora vejo que mais de noventa por cento do que escreveram é completamente absurdo…”
Mal as palavras do velho haviam terminado, uma voz imponente interrompeu de repente, vinda da lateral:
“Eu recomendaria fortemente que vocês não levassem muito a sério o que a Alice diz — o nível de absurdo dela supera, e muito, esses livros inventados.”
No instante em que ouviu a voz, o Cão saltou direto para trás de Shirley, enquanto Morris se levantava apressado, olhando para a figura alta que descia com passos firmes os degraus da escada próxima:
“Ah, Duncan… Capitão, o senhor terminou seus afazeres?”
Duncan assentiu com a cabeça e desceu os degraus. Logo atrás dele, uma figura pequena e delicada também surgiu no alto da escada.
“Nina!” Assim que viu a garota, Shirley se levantou de um salto e correu em sua direção, radiante. “Você está bem! Você voltou!”
No mesmo instante em que se lançou para recebê-la, as correntes negras presas ao braço de Shirley se esticaram bruscamente — o Cão, que até então mantinha a cabeça baixa fingindo que não existia, foi puxado pela corrente, rolando e tropeçando todo atrapalhado enquanto gritava: “Ei, devagar, devagar… porra, você ainda tá me arrastando… ai, minha nossa…”
“Shirley.” Nina exibia um sorriso iluminado no rosto. Ela agarrou o braço da amiga com entusiasmo e a sacudiu levemente duas vezes, antes de se curvar para encarar o Cão — que acabara de bater a cabeça nos degraus da escada — e dar alguns tapinhas em seu crânio ósseo e anguloso: “E o senhor Cão, também — voltei.”
Morris também se aproximou para cumprimentar sua aluna. Em seguida, virou-se para Alice, curioso:
“Senhorita Alice, aquilo tudo que você estava dizendo… era invenção sua?”
“Não era, não! Foi o Senhor Cabeça de Bode quem me contou!” Alice logo arregalou os olhos em indignação. “Ele disse que serve no Banido há um século! Ninguém entende mais deste navio do que ele!”
Morris ficou confuso: “Cabeça de Bode?”
“Meu imediato — vocês provavelmente não gostariam de lidar com ele”, disse Duncan, num tom despreocupado. Em seguida, ele lançou um olhar abrangente para os presentes à sua frente.
Morris, Shirley, o Cão — passageiros que embarcaram fora dos planos, visitantes há muito tempo ausentes a bordo do Banido.
Na época, a situação na cidade-estado de Pland era extremamente grave. Embora Duncan já tivesse um plano em mente para utilizar as propriedades especiais do Banido e eliminar a contaminação histórica, ele ainda optou por transferir de forma emergencial os ‘hóspedes’ que estavam abrigados na Loja de Antiguidades diretamente para o navio — por precaução. Agora que a situação na cidade estava resolvida, era hora de considerar os próximos passos.
Pelo menos no caso do velho Morris — que ainda tinha parentes em Pland —, ele certamente não gostaria de passar o resto da vida a bordo de um navio fantasma.
Após uma breve reflexão, Duncan desviou o olhar e começou a falar:
“Acredito que vocês já saibam onde estão e quem eu sou. Como podem ver, este é o Banido, e eu sou seu capitão. Nos últimos cem anos, ao menos metade das lendas aterrorizantes que circulam pelo Mar Infinito… estão relacionadas a mim.
“Não vou comentar sobre a veracidade ou exageros dessas lendas, mas há algo nelas que é de fato verdadeiro: depois que alguém sobe a bordo do Banido, é difícil cortar os laços com este navio. De certo modo, ao passarem pela transmissão feita por Ai e pela ‘espiritualização’ do Banido, vocês já se tornaram parte da tripulação.
“Infelizmente, esse processo é tanto irreversível quanto inevitável.”
Duncan foi direto ao ponto — este era um fato que ele havia concluído com base em suas experiências recentes envolvendo o Banido e seus próprios poderes.
Aqueles que cruzam com o Banido, que são tocados pelas chamas espectrais, inevitavelmente estabelecem um vínculo com Duncan, mesmo que ele próprio não perceba. O primeiro exemplo foi o Carvalho Branco; o mais recente, Vanna.
Morris e Shirley, no entanto, reagiram com mais serenidade do que Duncan imaginava. Apenas o Cão murmurou algo incompreensível com a cabeça baixa.
Pelo jeito, eles já esperavam por isso e estavam minimamente preparados.
Duncan fez uma pausa intencional de dois ou três segundos antes de, de repente, sorrir e balançar a cabeça.
“Mas há um detalhe que difere do que dizem as lendas”, ele disse, agora em tom mais leve. “Este navio não tem só passagem de ida. E este capitão aqui, como vocês podem ver, não é o cataclismo insano e incontrolável de que tanto falam.
“A vinda de vocês foi causada por uma emergência. Eu não pretendo restringir sua liberdade.”
Dessa vez, Shirley e Morris abriram levemente os olhos, surpresos — especialmente Morris. Um instante antes, ele ainda estava tentando descobrir como poderia retornar à cidade, como barganhar com uma sombra do Subespaço por uma chance de voltar ao mundo dos vivos. E agora… era simples assim?
“Quer dizer então que… podemos voltar?” ele perguntou, espantado.
“Claro que sim”, respondeu Duncan com um sorriso. “A crise em Pland já acabou. Vocês são livres para ir e vir. Mas…”
Morris imediatamente ficou tenso de novo.
“Mas almocem antes de ir”, completou Duncan, despreocupadamente. “É assim que recebo meus convidados. A comida aqui no Banido é simples, mas tem seus encantos — especialmente os frutos do mar. São coisas que vocês jamais encontrariam na cidade…”
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