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    Aquela figura no espelho realmente havia partido — sem fazer nada além do que dissera no início: apenas ‘veio ver como as coisas estavam’.

    Vanna observou o espelho com extrema cautela por um bom tempo até enfim confirmar isso — e só então conseguiu relaxar de verdade.

    Logo em seguida, mergulhou em um breve momento de autorreflexão e desconfiança.

    A desconfiança era um reflexo direto de seu ofício como Inquisidora: era difícil confiar plenamente em alguém como o Capitão Duncan, uma figura envolta por um século de lendas assustadoras e conexões com o Subespaço — mesmo que ele parecesse racional, amigável, e de fato tivesse protegido a Cidade-estado de Pland. Já a autorreflexão tinha uma origem ainda mais simples:

    Ela havia percebido que sua vigilância havia diminuído durante a conversa com Duncan.

    Esse tipo de fraqueza não deveria ocorrer — e nunca imaginou que poderia acontecer com ela.

    No fim das contas, tudo se resumia ao fato de que estava abalada e em dúvida, havia perdido a pureza de sua fé, e isso deixara uma brecha em seu coração.

    Vanna refletiu longamente sobre si mesma e, ao final, soltou um leve suspiro.

    De qualquer forma, a cidade havia sobrevivido em segurança. Ela contaria ao Bispo Valentine tudo o que aconteceu naquela noite — incluindo… sua hesitação.

    O suspiro da jovem Inquisidora sumiu na escuridão, junto com a luz da lamparina que se apagava.


    No segundo andar da Loja de Antiguidades no Distrito Inferior, Duncan desviou o olhar da direção da Catedral de Pland. Observando as luzes que se espalhavam por toda a cidade, sua expressão assumiu um ar pensativo.

    Ele não sabia ao certo o que havia acontecido com Vanna, mas algo era evidente: a jovem Inquisidora havia sofrido uma oscilação perigosa — ainda que breve — em seu estado mental. E essa perturbação havia sido intensa o bastante para tocar sua percepção de modo tão forte que o obrigou a projetar-se diretamente no mundo real para investigar o que estava havendo.

    Relembrando agora, a presença que sentira ao redor de Vanna naquele instante lhe parecia estranhamente familiar — algo escondido bem fundo em sua consciência, envolvendo-a como uma névoa sutil. Se prestasse bastante atenção, aquela sensação lembrava…

    Lembrava quando, sob o Banido, através daquelas fendas, se observava a luz caótica do lado de fora do casco.

    Era o Subespaço.

    E, com base na pergunta final que Vanna lhe fez, era bem provável que seu problema estivesse de fato relacionado ao Subespaço.

    Duncan tamborilava os dedos contra o parapeito da janela, refletindo sobre o que realmente poderia estar acontecendo.

    Antes de ir embora, ele havia reforçado o selo que deixara nela — aquela marca deveria protegê-la contra uma eventual contaminação. Mas o ponto mais intrigante era: por que uma Inquisidora de tão alto escalão apresentaria repentinamente traços do Subespaço?

    Seus pensamentos se expandiram. De repente, lembrou-se de algumas outras pistas — ou melhor, fragmentos de conhecimento: Em certas circunstâncias, os seguidores dos Quatro Deuses são mais suscetíveis à contaminação do Subespaço do que os mortais comuns. E quando seus espíritos são corrompidos, muitas vezes surge uma fenda direta entre o mundo real e o Subespaço. Foi assim que tudo começou naquela capela no Sexto Distrito — com a sombra espiritual da freira.

    Será que algo assim poderia acontecer com Vanna? E, se sim, qual seria a verdadeira razão por trás desse fenômeno tão contraintuitivo?

    Após pensar por alguns instantes, Duncan soltou um longo suspiro e afastou-se da janela.

    De todo modo, ele sabia que deveria manter mais atenção sobre Vanna — esse ponto de conexão tão peculiar. Agora, ela ainda não confiava nele, no ‘Capitão Fantasma’, e era evidente que não lhe revelaria todos os seus segredos por vontade própria. Isso significava que cabia a ele dedicar mais esforço nessa relação.

    No caminho de volta para o quarto, Duncan ouviu o som de duas vozes alegres vindo do cômodo ao lado — eram Nina e Shirley, rindo e conversando.

    Apesar de já terem voltado do Banido para a cidade-estado, elas ainda pareciam animadas — especialmente Nina.

    A garota não demonstrava o menor sinal de trauma por ter estado em um navio fantasmagórico e sinistro, tampouco parecia preocupada com o que o futuro poderia reservar. Pelo contrário, continuava tão radiante quanto sempre — ou talvez até mais do que antes.

    Seria isso influência do Fragmento do Sol? Ou ela possuía uma capacidade natural impressionante de aceitar o extraordinário?

    Duncan refletiu. Começava a suspeitar que talvez tivesse descoberto em Nina um tipo de ‘talento’ inesperado.


    A noite já caíra. A fria e pálida luz da Criação do Mundo banhava o vasto convés do Banido.

    Passos leves romperam o silêncio da embarcação espectral. Uma figura de cabelos prateados e vestido elegante aproximou-se da área de comando na popa do navio.

    Alice ergueu o rosto, observando o capitão que manobrava pessoalmente o timão. Os olhos lilás refletiam o brilho etéreo da noite.

    “Capitão! E agora, pra onde a gente vai?”

    “Ainda sem destino definido. Por ora, vamos sair das rotas movimentadas entre as cidades-estado.” Duncan lançou um olhar para a boneca. “Você parece animada.”

    “Sim, sim!” Alice assentiu com entusiasmo. Apesar da aparência refinada e nobre, sua empolgação ao balançar a cabeça era tamanha que quase a deixava com um ar bobo. “Hoje o navio estava tão animado! Nunca imaginei que só juntar várias pessoas no mesmo lugar já podia ser tão divertido…”

    “Nem sempre juntar pessoas dá em algo ‘divertido’ — mas talvez isso ainda seja meio difícil de entender pra você.” Duncan comentou casualmente. “Aliás, tome cuidado com esses movimentos. Quando sua cabeça caiu hoje, eles ficaram apavorados.”

    “Ahh!” Alice rapidamente segurou a própria cabeça com as duas mãos e, logo em seguida, pareceu preocupada. “Será que… eles não vão mais querer vir por causa disso?”

    “Não precisa se preocupar com isso.”

    Alice soltou mais um “ah” e ficou em silêncio… por não mais que dois segundos. Então, voltou a falar:

    “Então… eu vou poder visitar a cidade de novo no futuro? Dessa vez eu nem consegui ver muita coisa… logo de cara já aconteceu tanta confusão… foi tudo tão bagunçado…”

    O olhar de Duncan percorreu a superfície do mar e voltou-se para Alice:

    “Claro que pode. Amanhã mesmo posso pedir para Ai te levar até a Loja de Antiguidades — ainda preciso da sua ajuda por lá.”

    “Sério?” Os olhos de Alice brilharam. Ela parecia genuinamente surpresa. “Eu achei que… a gente não voltaria mais pra cidade com tanta frequência. Quer dizer… o senhor parece já ter resolvido tudo por lá, né?”

    Duncan não respondeu de imediato. Fez de propósito. Manteve o silêncio por alguns segundos antes de, subitamente, lançar uma pergunta:

    “Você acha que eu presto atenção em Pland porque tenho alguma missão obrigatória por lá?”

    Alice piscou, surpresa. Depois coçou a cabeça, um pouco perdida: “Eu… não sei.”

    Duncan sorriu e balançou a cabeça. Em seguida, soltou o leme com suavidade.

    Um rangido leve percorreu o Banido, as velas espirituais do mastro se recolheram um pouco, e a embarcação entrou no modo de cruzeiro, agora controlada automaticamente pelo Cabeça de Bode na proa.

    “A gente só lidou com os problemas causados por uns cultistas”, disse Duncan enquanto descia da plataforma de comando, caminhando em direção à sala do capitão. “Quanto a Pland… eu diria que aquela cidade e eu temos um certo destino em comum.”

    O capitão se afastou.

    Alice permaneceu no mesmo lugar por um instante, com expressão pensativa, olhando na direção por onde ele havia saído:

    “…Não é à toa que ele é o capitão… fala cada coisa profunda…”

    Duncan parou diante da porta da sala de comando. Levantou o olhar: as palavras Porta dos Exilados estavam gravadas sobre o batente, refletindo a fraca luz da Criação do Mundo.

    Ele respirou fundo, acalmando o espírito, e então colocou a mão na maçaneta.

    Empurrou levemente.

    Uma névoa distorcida e embaçada surgiu diante dele. Duncan deu um passo à frente e, como sempre, sentiu aquela breve sensação de ausência de gravidade e um leve enjoo — como se atravessasse o tempo e o espaço em um instante e, ao mesmo tempo, chegasse diretamente ao destino.

    A sensação passou. E o silêncio tomou conta.

    O som das ondas e do rangido do Banido haviam desaparecido. O cheiro de maresia também sumira. O ar agora trazia o aroma familiar do quarto onde viveu por tantos anos.

    Zhou Ming abriu os olhos, contemplando a paisagem imutável de seu apartamento de solteiro.

    Como sempre, assim que retornava, a primeira coisa que fazia era verificar as condições gerais do quarto: se algo havia mudado durante sua ausência, se a névoa do lado de fora da janela havia se dissipado, se os fios e papéis sobre a moldura da janela haviam sido movidos.

    Mesmo sabendo que aquilo não fazia a menor diferença, ele executava essa rotina como se fosse uma tarefa essencial.

    Após terminar as verificações, dirigiu-se diretamente à sua escrivaninha.

    Zhou Ming abaixou-se, observando com calma o que havia sobre ela.

    Ali, repousava uma maquete da Cidade-estado de Pland — minuciosa, perfeita, incrivelmente fiel. Cada pequeno detalhe parecia ter sido reproduzido com exatidão, talvez até o chão de cada rua ou cada poste de luz estivesse lá, exatamente como no original.

    Ou talvez fosse mais preciso dizer que aquilo era Pland — uma manifestação da cidade em forma de ‘projeção’, apresentada dentro de seu apartamento.

    Ela estava ali, exatamente como o esperado.

    As pequenas chamas verdes que dançaram sobre a escrivaninha no passado haviam esculpido essa peça até o fim. Agora, a obra-prima estava diante de seu verdadeiro dono.

    Zhou Ming soltou o ar lentamente, sentando-se à mesa e observando atentamente aquela maquete impecável.

    Comparada à maquete do Banido, aquela cidade era muito maior — mas, claramente, não era uma escala proporcional. Seu tamanho parecia ideal para caber em uma seção específica da estante, como se tivesse sido feita sob medida para aquele espaço.

    Mas não havia nenhum sinal dos habitantes da cidade.

    Parecia que… os ‘seres humanos’ que viviam nela não eram projetados junto com a cidade?

    Zhou Ming refletiu, observando Pland com atenção por um longo tempo. Por fim, suspirou levemente, pegou a maquete com as duas mãos e a colocou cuidadosamente sobre a estante, em seu nicho reservado.

    Deu alguns passos para trás e contemplou, em silêncio, sua nova peça de coleção.

    O Banido já havia se afastado da Cidade-estado de Pland. Mas o Capitão… jamais se afastou de sua fiel cidade.

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