Índice de Capítulo

    A vida, como existia naquela época, estava muito distante dos contos fantasiosos das histórias de fadas. A distinção clara entre a realidade e a ficção se fazia evidente na necessidade prática de lidar com muitos detalhes mundanos, porém muito reais, que os contos de fadas tipicamente ignoravam.

    Considere o seguinte: uma boneca amaldiçoada, mas viva, precisava de manutenção regular em suas articulações? E se a rotina de desmontagem de Alice resultasse em ela se desmanchar inesperadamente durante um passeio? E quanto à durabilidade da carne salgada e do queijo seco armazenados no navio fantasma?

    Mesmo super-heróis, que emocionavam o público durante o dia e combatiam forças do mal à noite, quando encontravam tempo para descansar? Será que a entidade maligna derrotada, após uma batalha com esses heróis, precisava realizar tarefas mundanas como fazer compras?

    Os contos folclóricos e as lendas raramente abordavam esses detalhes triviais. Nesses relatos, os personagens permaneciam tão imaculados quanto neve recém-caída e tão efêmeros quanto uma brisa passageira. A boneca amaldiçoada só precisava surgir de um canto sombrio para assustar as pessoas, e o capitão do navio espectral nunca se preocupava em gerenciar carne salgada e queijo envelhecidos por séculos.

    Em nítido contraste, a realidade apresentava um cenário completamente diferente. Após ser submersa em água salgada, a boneca amaldiçoada começou a sentir uma coceira incessante por todo o corpo, chegando a ponderar como lavar os grãos de sal presos entre suas articulações.

    No convés do navio, Duncan suspirou profundamente, percebendo com crescente clareza que apenas determinação não era suficiente para garantir a sobrevivência a longo prazo naquele navio.

    Ele se deparava com inúmeras questões práticas, especialmente com o aumento da tripulação do navio.

    Duncan percebeu que o navio fantasma não estava equipado com recursos suficientes para sustento.

    De fato, o navio possuía um fornecimento infinito de água fresca. No entanto, fora isso, os estoques de comida não se reabasteciam magicamente após serem consumidos. Os únicos alimentos disponíveis eram carne salgada e queijo duro. Embora as propriedades únicas do navio evitassem que se estragassem, Duncan não podia deixar de imaginar que haviam sido armazenados por pelo menos cem anos.

    Além disso, o navio não tinha roupas que servissem em Alice (embora a boneca amaldiçoada nunca demonstrasse necessidade delas), nem dispunha de formas de recreação — nem mesmo um tabuleiro de xadrez ou um baralho de cartas.

    Perdido na vasta imensidão do mar infinito, o navio apropriadamente chamado de “Banido” enfrentava dificuldades para adquirir suprimentos reais. Não possuía um “porto-base” confiável para descanso e reparos, nem canais de comunicação com as sofisticadas cidades-estado em terra firme.

    A figura de cabeça de bode parecia completamente indiferente a esse dilema, mas Duncan começava a considerar seriamente a situação. Ele precisava elaborar um plano para lidar com a atual escassez de suprimentos a bordo do Banido.

    Além disso, Duncan começou a contemplar a possibilidade de estabelecer conexões com as “cidades-estado” em terra.

    Ele percebeu que vagar perpetuamente no mar aberto era um método extraordinariamente ineficiente de exploração. Após sua incursão no reino espiritual, concluiu que, para compreender verdadeiramente aquele mundo, precisava reunir informações em terra firme.

    Pelo bem de seu próprio bem-estar mental e físico, ele reconheceu a necessidade de interagir mais com as cidades-estado em terra e de se envolver com suas sociedades estruturadas. Caso contrário, temia que pudesse eventualmente se tornar um capitão de navio fantasma melancólico, anti social e distorcido após um longo período de deriva sem rumo.

    Com esses pensamentos em mente, Duncan virou levemente a cabeça para olhar para a pomba chamada Ai, que estava ocupada ajeitando suas penas enquanto descansava confortavelmente em seu ombro.

    Seu foco estava principalmente na bússola de latão pendurada no peito de Ai. A pomba inclinou a cabeça, examinando Duncan antes de, de repente, dizer: “Estabeleça uma base! Espalhe o tapete de cogumelos! Você tem alguma ideia de como operar alguma coisa?”

    Duncan ficou momentaneamente perplexo, franzindo as sobrancelhas em contemplação. Embora a pomba geralmente parecesse desmiolada, ocasionalmente fazia comentários surpreendentemente pertinentes. Essas observações faziam Duncan suspeitar que havia uma sabedoria mais profunda por trás da aparente tolice da ave.

    Navegar pelo reino espiritual agora parecia ser a única maneira viável de alcançar as cidades-estado terrestres. Apesar da natureza imprevisível desse reino e da presença enigmática da pomba durante sua jornada anterior, Duncan sabia que logo precisaria embarcar em outro percurso espiritual. Ele precisava reunir informações sobre a terra firme e rapidamente verificar e aprimorar uma possível nova habilidade.

    Igualmente intrigante foi a estranha habilidade de Ai de recuperar uma adaga cerimonial de uma terra distante. Se a pomba podia trazer de volta uma adaga, o que mais ela poderia trazer? Quais eram as regras e limites que governavam a capacidade de carga dessa ave? Esse processo poderia ser controlado?

    Após um momento de reflexão profunda, Duncan decidiu perguntar diretamente à pomba: “Você entende como conseguiu trazer aquela adaga de volta?”

    A pomba refletiu por um momento antes de responder solenemente: “Mineral de cristal insuficiente.”

    Duncan decidiu encerrar temporariamente sua conversa com a pomba, resolvendo tentar entender melhor o pássaro pessoalmente durante sua próxima jornada espiritual.

    Enquanto isso, dentro da cabine, Alice finalmente descobriu como operar os canos de água após considerável tentativa e erro, e aprendeu o básico sobre como tomar banho.

    Dadas as limitações do navio fantasma, ela só conseguiu tomar um banho frio — o que não era problema para uma boneca como ela.

    No entanto, antes que Alice pudesse se imergir na banheira, decidiu se familiarizar com tudo na cabine primeiro.

    Ela acariciou suavemente o grande barril de carvalho, bateu levemente nas vigas de apoio da cabine, deu um empurrãozinho no chão com os dedos dos pés e esticou a mão para brincar com as cordas e ganchos pendurados no teto.

    “Olá, meu nome é Alice”, ela cumprimentou com entusiasmo, dirigindo-se aos objetos frios e inanimados com a mesma energia que usara ao cumprimentar a cabeça de bode. “A partir de agora, morarei neste navio.”

    Nenhuma resposta veio dentro da cabine ao seu caloroso cumprimento, mas Alice não se abalou.

    A cabeça de bode lhe dissera que o navio, chamado “Banido”, estava muito vivo, assim como muitas outras coisas a bordo.

    Embora não parecessem demonstrar qualquer inteligência consciente como a cabeça de cabra, nem tivessem a capacidade de se comunicar, Alice não se desencorajou. Ela tratou todo o “Banido” como um companheiro de viagem, digno de uma saudação cortês.

    O Banido era uma entidade sensiente, assim como ela.

    Sentindo-se segura de que sua saudação fora educada e apropriada, o ânimo de Alice se elevou. Ela então tirou seu vestido esplêndido e subiu desajeitadamente na banheira de carvalho cheia de água.

    O primeiro item em sua agenda de banho era remover cuidadosamente sua cabeça para uma limpeza minuciosa, considerando que as articulações do seu pescoço não eram particularmente robustas.

    A Senhorita Boneca achou sua estratégia de banho bastante lógica.


    Enquanto isso, à medida que o dia movimentado na cidade-estado de Pland chegava ao fim, a próspera “Pérola do Mar” começava a ceder ao quieto descanso da noite sob o fraco brilho noturno1.

    Na serena escuridão, sentinelas sempre estavam de guarda sobre a cidade adormecida.

    Perdida no alto da estrutura mais elevada de Pland, uma mulher de estatura notável observava atentamente da imponente Torre do Relógio, com seus longos cabelos grisalhos ao vento da noite. Ela era alta e robusta, superando o homem médio. Seus traços marcantes eram marcados por uma cicatriz visível sobre seu olho esquerdo — uma visão que poderia evocar tanto admiração quanto medo.

    Ela usava uma armadura leve de prata cinza e uma saia de batalha, seus músculos bem definidos um reflexo de seu treinamento rigoroso. Perto dela, uma espada gigantesca com um leve brilho prateado estava ao alcance. O punho era adornado com símbolos em forma de ondas, e a lâmina parecia cintilar com ondulações de luz, lembrando às de um lago tranquilo.

    Atrás dela, o zumbido rítmico das máquinas preenchia o espaço silencioso — o coração mecanizado da torre, uma maravilha da tecnologia a vapor. Engrenagens e conexões mecânicas, detalhadamente trabalhadas e meticulosamente montadas, se estendiam do chão ao teto, impulsionando continuamente os quatro mostradores do relógio e um planetário mecânico oculto profundamente dentro da estrutura.

    Apesar do zumbido constante, que indicava que a máquina estava em perfeitas condições, uma sensação de inquietação começou a crescer dentro da observadora vigilante. Seu nome era Vanna, a Inquisidora de Pland. Uma premonição incômoda de uma calamidade iminente, um terror que ela talvez não conseguisse impedir, se somava à sua crescente frustração.

    O som dos passos ecoando pela escada atraiu a atenção da inquisidora de cabelos prateados. Um homem vestido com os trajes de um sacerdote da tempestade se aproximou, carregando um incensário de latão de onde a fumaça se enrolava suavemente ao seu redor. Ao chegar no pilar central da maquinaria, ele substituiu o incensário gasto por um novo. Observou atentamente os filetes da fumaça, garantindo que fluíssem livremente entre as engrenagens giratórias e as conexões mecânicas, antes de proferir uma oração à Deusa da Tempestade.

    Virando-se para Vanna, ele ofereceu uma saudação silenciosa. “Boa noite, Inquisidora Vanna. Você está de vigília novamente, vejo?”

    “Estou atormentada por uma sensação de desgraça nos últimos dias, e esta noite ela está ainda mais forte.”

    “Uma sensação de presságio? De que forma?” O sacerdote olhou para ela, seus olhos arregalados com preocupação. “A Deusa lhe enviou algum sinal?”

    “Não é uma mensagem clara”, a jovem inquisidora balançou a cabeça, “é apenas um sentimento vago… como se algo estivesse se aproximando de nossa cidade.”

    1. Em inglês foi usado ‘faint glow of a starlit sky’, com ‘starlit sky’ sendo basicamente ‘céu estrelado’, bom, o céu não tem estrelas e na raw não tem referente a estrelas nesta frase, então mudei um pouco ela para ficar mais fiel.
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