Capítulo 486: O “Amigo” de Ray Nora

O fato de a chave de latão deixada por Ray Nora ser, na verdade, um presente de um amigo foi algo que pegou Duncan totalmente de surpresa.

E isso despertou ainda mais sua curiosidade.

Afinal, que tipo de pessoa, e com que propósito, teria criado aquela chave? Qual era a sua verdadeira natureza? E o que significava a visão que teve ao tocá-la, da “nave espacial caindo e se desintegrando na explosão”?

Ele estava ansioso por respostas e, felizmente, a Rainha de Geada não escondeu o que sabia, contando-lhe abertamente:

“Foi um amigo que conheci pouco depois de deixar a Catedral. Naquela época, eu estava planejando assumir o poder e frequentemente me encontrava com todo tipo de gente, ou participava de eventos públicos. E foi em uma dessas reuniões de arrecadação de fundos que aquele velho senhor apareceu…

“Ele não estava na lista de convidados, mas contornou toda a segurança e vigilância com uma facilidade impressionante. Pensei que ele fosse um professor da universidade, pois usava o manto de um acadêmico e possuía um ar de elegância e cultura. Eu não sabia que ele havia se infiltrado e até comecei a conversar com ele. Seu vasto conhecimento era surpreendente, até que… os seguranças do evento finalmente perceberam e o expulsaram.

“Mas, depois disso, o velho senhor começou a aparecer com frequência em meu campo de visão. Às vezes em reuniões da alta sociedade, outras em jantares privados organizados por amigos. Ele surgia quando o olhar de todos se desviava, conversava comigo com toda a naturalidade, discutindo história, matemática e assuntos do campo do misticismo, e depois partia discretamente antes que alguém pudesse nos interromper. Exceto pelo nosso primeiro encontro, quando foi descoberto pelos seguranças, ele sempre conseguia se manter oculto de todos.

“Não é incrível? Um amigo que só eu conhecia, um conselheiro erudito, um… amigo invisível.

“Eu nunca revelei sua existência a ninguém. No início, era por medo de preocupar a Igreja; os bispos suspeitariam que meu talento como psíquica nata estivesse fora de controle e me trancariam de volta na cripta. Eu sabia que meu poder não estava descontrolado e não temia o confinamento, mas sentia que meu tempo era precioso demais para ser desperdiçado em uma jaula. E mais tarde… quando comecei a consolidar meu poder na cidade-estado, tornava-se ainda mais imperativo não expor a existência desse ‘conselheiro secreto’.

“Essa situação durou cerca de três anos, e eu e o misterioso velho nos tornamos amigos, apesar da diferença de idade. Mas, justo quando eu pensava que ele continuaria como meu ‘assessor especial’ até minha coroação, ele apareceu subitamente antes do amanhecer de um certo dia para se despedir.

“Ele disse o seguinte: ‘A janela de contato se fechou. Este é nosso último encontro.’

“Então, ele colocou uma chave de latão em minha mão e me disse que a chave era um conglomerado de distorção, a peça fundamental para estabelecer uma conexão no espaço-tempo. Disse também que ela podia carregar conhecimento e memória e que, um dia no futuro, certamente teria sua utilidade…

“Depois de falar muitas coisas relacionadas à chave, meu ‘amigo invisível’ simplesmente se virou e caminhou em direção ao primeiro brilho do sol nascente. No instante em que o sol cruzou o horizonte, ele desapareceu. Foi a última vez que o vi.”

Duncan ouvia o relato de Ray Nora, atônito, enquanto inúmeras associações surgiam em sua mente, todas apontando rapidamente para um único termo. Assim que a Rainha de Geada terminou de falar, ele imediatamente disse: “Espere, a pessoa que você descreve soa exatamente como um…”

“Sim, um Pregador do Fim, Capitão Duncan”, Ray Nora sorriu. “Eu já suspeitava disso após nossos primeiros encontros. Durante meus anos de treinamento na Catedral, tive contato com incontáveis livros, então é claro que eu sei o que é um Pregador do Fim.”

“Você se tornou amiga de um Pregador do Fim, e ele ainda por cima…”, Duncan começou, franzindo a testa, mas parou no meio da frase ao perceber a incongruência. “Espere, não, isso não parece um Pregador do Fim normal…”

“Exato, como o senhor disse. Embora a ‘natureza’ seja muito semelhante, o estado daquele velho era completamente diferente do daqueles cultistas fanáticos. Seu pensamento era aguçado, sua mente clara e sua atitude, gentil e amigável. A única semelhança com os Pregadores do Fim era o fato de sua ‘intervenção e desaparecimento não lineares’.”

“…Pregadores do Fim normais não conseguem pensar ou se comunicar com calma, pois o rompimento da linha do tempo já perturbou sua cognição, e a adoração ao subespaço destruiu sua sanidade”, Duncan reagiu rapidamente. “Mas o que você conheceu era o oposto…”

Ele parou de repente.

Naquele instante, outra lembrança veio à mente, algo relacionado a “si mesmo”!

Tyrian havia mencionado uma vez, em uma conversa com Vanna e Valentine, que um século atrás, na véspera da última grande viagem de Duncan Abnomar, o Banido recebeu alguns visitantes misteriosos. Eles usavam mantos como os de monges ascetas, surgiram subitamente no navio e conversaram com o “Capitão Duncan” da época durante toda a noite, apenas para desaparecerem misteriosamente ao nascer do sol no dia seguinte…

Tyrian sempre acreditou que a visita daqueles misteriosos estranhos foi a causa direta pela qual o Banido navegou em direção à “fronteira” em sua última viagem.

E aqueles visitantes misteriosos… pela descrição, pareciam ser um grupo de “Pregadores do Fim” lúcidos, gentis e amigáveis!

O corpo que Duncan usava no momento não conseguia expressar emoções complexas, mas seu silêncio súbito e a leve mudança em seu olhar não passaram despercebidos pela observação aguçada da Rainha de Geada. Ray Nora reagiu imediatamente: “O senhor pensou em algo?”

Duncan ergueu a cabeça, mas não falou por um momento, apenas encarando os olhos dela em silêncio.

O “amigo” que Ray Nora conheceu não era um caso isolado. Dentro do grupo dos Pregadores do Fim, geralmente considerados cultistas cruéis e insanos, existia de fato um grupo de indivíduos com sanidade e propósitos desconhecidos. E eles viajavam pelas linhas do tempo, usando uma oportunidade de contato chamada “janela de contato” para interferir constantemente nos assuntos do mundo mortal!

Com a mente tumultuada e inúmeros pensamentos passando rapidamente, Duncan finalmente quebrou o silêncio: “Eles também visitaram o Banido.”

Pela primeira vez, os olhos de Ray Nora se arregalaram.

Parecia que, afinal, ela não havia perdido completamente a capacidade de sentir “surpresa”, como havia afirmado no início.

“O senhor também teve contato com Pregadores do Fim lúcidos?”, perguntou Ray Nora rapidamente. “O que eles lhe disseram? Eles são…”

“Lamento, mas não me lembro”, Duncan interrompeu a pergunta apressada dela. “Essa parte da minha memória se perdeu com a corrosão do subespaço. Só soube por outras fontes que um dia tive contato com eles.”

Uma expressão de inegável desapontamento surgiu no rosto de Ray Nora.

Duncan, por sua vez, rapidamente organizou seus pensamentos e trouxe o assunto de volta ao tópico principal: “Depois de perceber que ele era um Pregador do Fim especial, você não discutiu a verdadeira identidade dele? Não perguntou sobre seus objetivos?”

“É claro que perguntei. Mas o senhor acha que eu obteria uma resposta?”, Ray Nora suspirou, resignada. “Nós nos dávamos bem, ele era um mentor e amigo mais velho para mim, e se dispunha a responder à maioria das minhas perguntas. Mas sempre que eu tentava levar a conversa para a… ‘identidade’ dele, ele sempre se esquivava com a mesma frase:

‘Ainda não é a hora. Não toque nas coisas além da ‘fronteira’ cedo demais.’”

“Não toque nas coisas além da fronteira cedo demais…”, repetiu Duncan em voz baixa, a frase parecendo carregar um significado profundo, e então franziu ligeiramente a testa. “Você conseguir fazer amizade com uma pessoa tão suspeita nessas circunstâncias… é preciso ter um coração bem grande.”

“Eu precisava de ajuda, e a maioria das coisas que podem ser chamadas de ‘poder’ neste mundo são perigosas”, disse Ray Nora com uma expressão calma. “Comparado aos ‘sonhos’ com os quais tive contato desde a infância, um Pregador do Fim era incrivelmente inofensivo.”

Duncan não disse mais nada. Ele apenas se levantou novamente e caminhou lentamente até a escuridão no final do quarto.

“…Uma última coisa. Quais são seus planos… para o seu futuro?”

Ray Nora franziu levemente a testa: “Futuro?”

“Você precisa ficar para sempre neste quarto, conhecido como o ‘Lugar à Deriva’?”, disse Duncan, inclinando o queixo para apontar para o enorme “tentáculo” nas profundezas abissais. “Você precisa ficar aqui para sempre, usando seus sonhos para suprimir a atividade desta ‘cópia defeituosa’?”

“O senhor tem outra solução?”

“Talvez, mas não tenho certeza”, disse Duncan. “Se eu conseguir destruir completamente esta cópia defeituosa, o que acontecerá?”

“…Liberdade”, Ray Nora ficou em silêncio por alguns segundos antes de assentir solene e lentamente. “Eu e Ele seremos libertados.”

“E depois?”

“Eu não sei”, Ray Nora balançou a cabeça. “Isso está além da minha compreensão. Nunca imaginei como seria o fim deste longo pesadelo. Talvez este ‘Lugar à Deriva’ perca seu ponto de conexão e se reconecte a algum outro lugar. Talvez eu perca de vez minha conexão com o mundo real, livre dos pesadelos, e me torne uma alma errante e ociosa, esperando o dia em que este quarto seja aberto novamente.”

“Isso não parece um final muito feliz”, o tom de Duncan tornou-se sério. “Um exílio eterno. Não é muito melhor do que afundar em um pesadelo.”

“Na verdade, é um pouco pior, porque este quarto não está sob meu controle. Em vez de se reconectar a um ‘ponto de conexão’ no mundo real, é mais provável que ele afunde no lado do subespaço durante sua deriva descontrolada.”

Duncan ficou em silêncio, sem dizer uma palavra por um longo tempo.

Foi Ray Nora quem quebrou o silêncio momentos depois: “Mas, mesmo assim, eu ainda sugiro que o senhor o faça. Se realmente puder, ponha um fim a tudo isso. Enquanto ainda tenho tempo.”

Duncan olhou nos olhos da Rainha de Geada: “… Você tem certeza? Mesmo que isso a condene a um exílio eterno?”

“Ficar presa em um pesadelo eterno também é uma forma de exílio eterno”, Ray Nora sorriu. “Ser libertada disso resolverá, pelo menos, a ameaça de longa data que Geada enfrenta. Pelo menos por um bom tempo, minha cidade-estado e meu povo estarão seguros.”