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    Imagine a seguinte cena: você está a bordo de um navio fantasma rangente, abre uma porta de madeira no fundo de um corredor escuro, onde lâmpadas a óleo tremulam suavemente. No reflexo vacilante da luz, uma boneca sem cabeça, vestindo um longo vestido gótico, está sentada diante de uma penteadeira, segurando a própria cabeça no colo. A cabeça lentamente se vira para você e exibe um sorriso rígido…

    Se Duncan não estivesse há tanto tempo nesse navio, e se já não conhecesse Alice tão bem, ele provavelmente teria sacado sua arma e atirado sem pensar duas vezes.

    Por outro lado, Alice não fazia ideia de que acabara de criar uma cena digna de um pesadelo. Obediente, ela encaixou a cabeça de volta no pescoço com um sonoro ‘plop’ e, instantaneamente, recuperou sua mobilidade. Seu sorriso se abriu de maneira brilhante enquanto cumprimentava Duncan:

    “Boa noite, Capitão! O senhor veio me procurar?”

    Duncan precisou de um instante para se recompor. Ele lançou um olhar desconfiado para a boneca, observando-a de cima a baixo por um tempo antes de perguntar:

    “O que exatamente você está fazendo aqui? Por que o Cabeça de Bode disse que você estava no quarto contando fios de cabelo?”

    Alice mexeu o pescoço para os lados algumas vezes, depois alisou os fios ligeiramente bagunçados com os dedos. Seu rosto exibia uma expressão ligeiramente embaraçada.

    “Bem… eu só estava conferindo quantos fios de cabelo ainda tenho.”

    Duncan a encarou como se estivesse diante da criatura mais insana que já viu. Foi então que algo na borda da penteadeira chamou sua atenção.

    Era um carretel de linha, que Alice, sabe-se lá como, encontrou em algum lugar. Enroladas nele, havia algumas mechas prateadas — e, evidentemente, ele sabia de onde vinham aqueles fios…

    Duncan ficou em silêncio absoluto.

    Alice, percebendo o olhar do capitão, pegou imediatamente o carretel e começou a explicar com seriedade:

    “Veja, esta aqui se chama Miffy, esta é Polly, esta é Phimia e esta última aqui se chama—”

    Duncan finalmente explodiu de espanto:

    “Você deu nome para cada fio de cabelo que caiu?!”

    “É para guardar de lembrança”, Alice respondeu com um tom solene, que logo se misturou a um leve pesar. “O senhor disse que eu sou uma boneca, e bonecas não podem fazer o cabelo crescer de novo… Então, se algum dia eu perder tudo, pelo menos terei essa lista para lembrar dos bons momentos que passei com eles…”

    Duncan ficou tão atordoado que por um momento esqueceu completamente por que estava ali. Ele a encarou por um longo tempo, em um misto de perplexidade e descrença, antes de finalmente conseguir dizer:

    “Eu só falei isso da boca para fora… Você realmente não precisava levar tão a sério! Agora faz sentido por que você anda trancada na cabine esses dias—você passa o tempo todo contando fios de cabelo e dando nomes a eles?!”

    Alice acenou com a cabeça com a maior naturalidade do mundo.

    “Sim!”

    Duncan manteve a expressão fechada por alguns instantes antes de soltar um longo suspiro.

    “Certo… Assim que chegarmos a alguma cidade-estado, vou procurar um artesão especializado e ver se alguém pode te ajudar com isso.”

    Alice arregalou os olhos, chocada.

    “O senhor pretende sequestrar alguém e trazer para o navio?!”

    Duncan lançou um olhar afiado para ela.

    “… Eu vou comprar algumas perucas para você! Desde quando uma calamidade marítima viva atravessa oceanos para sequestrar um fabricante de bonecas?! Isso faz sentido para você?!”

    “Bem, uma calamidade marítima entrando furtivamente em uma cidade-estado para comprar perucas também não parece muito apropriado…” Alice murmurou instintivamente, mas, no meio da frase, apressou-se em engolir as palavras. “Ah, esquece, não falei nada, hehe…”

    “Pare de rir feito boba”, Duncan suspirou, sentindo-se subitamente exausto. Ele acenou com a mão, como se estivesse afastando a conversa fiada, e finalmente lembrou-se do motivo real pelo qual viera ali. “De qualquer forma, você me distraiu e acabei esquecendo do que realmente importa. Alice, sente-se. Preciso falar algo sério com você.”

    Alice percebeu imediatamente a seriedade no tom do capitão. Seu sorriso habitual desapareceu, e ela prontamente guardou o carretel de linha antes de se sentar apressadamente sobre o caixão ao lado da cama. Sua postura tornou-se impecavelmente reta, as mãos entrelaçadas sobre o colo—um retrato perfeito de graça e elegância.

    Duncan soltou outro suspiro. Por algum motivo, ele sempre sentia que sua compostura desmoronava na presença de Alice. Desde que chegara a esse mundo, ele conseguira manter-se imperturbável diante do Cabeça de Bode, manteve-se frio e calculista ao possuir um corpo destinado ao sacrifício e mesmo diante de um cenário repleto de cadáveres, seu autocontrole nunca vacilara.

    Mas, por alguma razão, essa boneca absurdamente bizarra fazia com que sua postura e sua seriedade oscilassem entre se sustentar ou desabar por completo.

    Pensando bem… Talvez fosse a força do estilo narrativo. A presença de Alice era simplesmente incompatível com a atmosfera do mundo ao redor—e lidar com isso era um desafio constante.

    Ele fez um gesto com os dedos, e uma cadeira próxima rangeu ao deslizar sozinha até suas costas. Duncan sentou-se nela, recompondo sua expressão para recuperar sua habitual severidade, antes de fixar os olhos em Alice.

    “Ray Nora. Esse nome lhe diz algo?”

    “Ray Nora?” Alice piscou, sua expressão transparecendo uma confusão absolutamente genuína. “Nunca ouvi falar… Parece um nome feminino? Tem um tom nobre e elegante… É alguém que o senhor conhece?”

    “Teoricamente, deveria ser alguém que você conhece. Mas se diz que não sabe quem é… Tudo bem, eu acredito.” Duncan não pareceu surpreso com a resposta. Ele prosseguiu. “E quanto a Geada? Você está familiarizada com essa cidade-estado? Alguma lembrança dela?”

    “Geada?” Alice inclinou a cabeça, pensativa. “Ouvi falar quando ainda estava dentro da caixa. Parece ser uma cidade-estado no Mar Gélido. Há também um lugar chamado Porto Frio, que serve como uma ligação entre Geada e as águas centrais.” Ela franziu as sobrancelhas. “Mas é só isso que eu sei. Nunca estive lá. Apenas ouvi o nome.”

    “E ‘Cadafalso de Alice’?”

    A boneca o encarou com um olhar ainda mais confuso.

    “Alice eu conheço, afinal, eu sou Alice.” Ela piscou. “Mas… O que é um cadafalso?”

    Duncan continuou a fazer perguntas, uma após a outra. E todas as respostas de Alice foram praticamente idênticas—ela não sabia.

    Era algo que ele já esperava.

    Alice não sabia de nada. Exatamente como ela havia afirmado no dia em que se conheceram. Ela não tinha memórias sobre si mesma, não sabia a verdade por trás da Anomalia 099, nunca ouvira falar sobre Geada e não fazia ideia de quem era a Rainha de Geada, falecida há meio século.

    E, no entanto, sua aparência era idêntica à da Rainha de Geada.

    Duncan nunca esperou receber muitas respostas diretas ao fazer aquelas perguntas. Seu objetivo principal era testar Alice, observar se ela teria alguma reação incomum ao ouvir certas palavras-chave.

    Agora que o teste estava concluído, o resultado era claro—Alice continuava sendo a mesma boneca ingênua e sem noção de sempre.

    Ele confiava que essa boneca extremamente medrosa não teria coragem de forjar reações diante dele—e, para ser honesto, ele duvidava que sua inteligência fosse sofisticada o bastante para realizar uma manipulação tão elaborada.

    Então… talvez o foco devesse estar não na boneca, mas sim no caixão?

    Os olhos de Duncan se estreitaram gradualmente. Seu olhar se fixou no grande e luxuoso ataúde de madeira sobre o qual Alice estava sentada.

    Esse caixão ornamentado, outrora usado para guardar Alice, ainda permanecia no quarto. Alice claramente gostava muito dele—ela o usava como banquinho, baú para guardar suas coisas, e às vezes até dormia dentro dele, mesmo tendo uma cama normal no aposento.

    “Abra o caixão. Quero dar uma olhada.” Duncan ordenou.

    Alice piscou, confusa, mas não hesitou. Rapidamente, ela saltou de cima do caixão e abriu sua tampa sem pensar duas vezes.

    Duncan se aproximou e olhou para dentro.

    O interior do ataúde era forrado com um veludo vermelho macio, e em um dos cantos havia uma pequena coleção de objetos variados: um pente, um carretel com fios de cabelo prateados, um espelhinho, além de alguns pequenos adornos metálicos.

    “Encontrei esses no navio, em outros compartimentos”, Alice apontou para os objetos, explicando cautelosamente. “Perguntei ao senhor Cabeça de Bode, e ele disse que eram itens sem dono. Eu… eu posso ficar com eles? Achei todos muito bonitos…”

    Duncan analisou os pequenos adornos envelhecidos.

    Talvez, há um século, alguém tenha usado aqueles acessórios nos cabelos, no peito, ou nos punhos.

    Vestígios do tempo em que o Banido ainda pertencia ao mundo dos vivos.

    “São seus. Pode ficar com eles.” Ele assentiu, mas então seus olhos captaram algo no meio das quinquilharias e, sem pensar, ele pegou o objeto.

    “Isso aqui…”

    Era uma pequena presilha de cabelo, incrivelmente delicada—nada parecida com os itens rústicos e antigos do navio. Ela era esculpida na forma de uma pena prateada, com detalhes sutis de ondas na borda, como se representasse uma pluma flutuando sobre o oceano. Apesar de ter supostamente permanecido ali por um século, sua aparência era intacta, impecável—em completo contraste com os outros itens, visivelmente desgastados pelo tempo.

    Duncan franziu a testa. Por algum motivo, ao olhar para aquela presilha, sentiu uma estranha sensação de nostalgia.

    Era como se um nome estivesse prestes a escapar de seus lábios—mas, por mais que tentasse, não conseguia se lembrar dele.

    Ele piscou, sentindo-se desorientado por um breve momento. Aquele sentimento repentino parecia surgir do nada… Mas, então, ele percebeu.

    Era a mesma sensação que teve ao chegar ao navio pela primeira vez e automaticamente saber o nome ‘Duncan Abnomar’.

    Mais uma vez, ele havia tocado uma ‘ressonância’ da sua existência passada.

    Duncan olhou para a presilha em suas mãos, ponderando como um acessório tão pequeno e delicado poderia ter alguma ligação com a maior calamidade do Mar Infinito.

    Antes que pudesse mergulhar ainda mais em seus pensamentos, a voz de Alice o trouxe de volta à realidade:

    “Capitão…? Capitão, está tudo bem?”

    Duncan despertou de seu transe e respondeu sem hesitação:

    “Desculpe, mas essa presilha não pode ficar com você.”

    Ele notou que sua frase soou um tanto rígida para Alice, então logo acrescentou:

    “Quando tivermos uma oportunidade, comprarei novas para você em alguma cidade-estado. Essas já estão muito velhas.”

    “Sério?!” Os olhos de Alice brilharam de entusiasmo. “Capitão, você é incrível!”

    “Não se apresse em me elogiar ainda”, Duncan balançou a cabeça e guardou a presilha. “Ainda não terminamos. Alice, preciso que preste atenção no que vou dizer agora. Isso diz respeito à sua ‘verdadeira natureza’. Ouça com atenção.”

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