Capítulo 115 - Seu Nome?
O frio da capital parecia mais intenso naquela tarde do que em qualquer outro dia desde o início do inverno. A forte nevasca da noite anterior havia transformado as ruas em corredores brancos e silenciosos durante a madrugada. O céu agora estava limpo, tingido pelo sol que se espalhava em tons dourados, refletindo seu brilho nos telhados inclinados e nos montes de neve acumulada nas calçadas.
Niko empurrou a porta da livraria onde estava, sentindo o ar aquecido de dentro deixá-lo no instante em que saiu. A madeira rangeu e o pequeno sino pendurado sobre a porta tilintou, interrompendo brevemente o som da conversa abafada do balconista com outro cliente.
Ele carregava uma sacola de papel dobrada. O lugar onde estava era agradável. Tinha uma fachada coberta por trepadeiras secas que se agarravam às paredes de pedra e uma placa de madeira, com letras elegantes, que balançava presa por correntes. As janelas parcialmente congeladas exibiam livros dos mais diferentes tipos e gostos.
Por um instante, Niko parou diante da loja, encostando-se em um poste de metal parcialmente congelado. Abriu-a com um movimento leve e retirou as duas obras que havia comprado. Segurou cada uma com certo cuidado antes de guardá-las de novo no saco.
A primeira obra que havia pego era um livro antigo de filosofia, de lombada escura e o título gravado em dourado: “A Vontade de Sentido: Fragmentos da Razão Eztraviana”.
Nem sabia o por quê pegou aquilo. Talvez tivesse se cansado de ler somente romances e livros de história e quisesse experimentar algo novo. Talvez quisesse entender o mundo por outro ângulo, um que não dependesse de lembrar diretamente do passado, mas sim no uso da lógica das ideias.
O segundo era diferente: um romance de fantasia medieval chamado “Entre Ondas e Ossos”. Contava a história de Liora, uma jovem slime elemental que saiu dos campos e foi em direção à capital real em busca de uma vida melhor. Durante seu primeiro dia na cidade, ela é atacada por um grupo de bandidos e salva por Calem, um cavaleiro real humano que acaba por ajudar ela em sua nova vida na cidade. O livro gira em torno de Liora tentando se adaptar a vida na cidade e Calem a ajudando sempre que pode, com os dois enfrentando desafios e lutas.
Niko leu as primeiras trinta páginas do livro, por algum motivo essa história chamou sua atenção e por isso decidiu comprar — mas o motivo principal da compra era por ter achado fofa a dinâmica de Liora com Calem.
Após conferir os livros, fechou a sacola com cuidado, ajeitando-a contra o peito, e retomou a caminhada pela calçada coberta de neve. Enquanto caminhava, suas botas afundavam levemente na neve, deixando uma trilha de pegadas atrás de si.
Ao passar diante de uma casa com janelas altas e iluminadas, Niko parou. Lá dentro, viu uma cena que despertava algo dentro dele: uma família reunida. Um homem adulto estava colocando lenha na lareira enquanto uma mulher — talvez sua esposa — carregava uma bandeja com canecas em direção ao centro da sala, onde havia uma criança pequena brincando com uma miniatura de locomotiva.
A mulher alcançou a criança, onde entregou a caneca a ela. Ela agradeceu a mãe, tomou um gole do líquido e riu, feliz. O som da risada escapou pelas frestas da vidraça, atingindo os ouvidos de Niko como um som vindo de outro mundo.
Ele desviou o olhar com rapidez, não queria continuar olhando aquilo, e voltou a caminhar. Mas a imagem que viu se recusava a abandonar sua mente. Famílias deviam ser algo comum, pelo menos para a maioria das pessoas. Mas para ele, era algo distante, algo tão distante que parecia que nunca alcançaria essa realidade tão agradável.
“Será que eu já vivi algo assim?”, pensou durante o trajeto. “Será que já tive pais? Irmãos? Um lugar para chamar de lar? Pessoas que eu já pude falar ‘eu te amo’?” O pior não era não saber, mas imaginar que talvez tivesse perdido tudo, ou pior, que tivesse abandonado por vontade própria.
Com o frio se intensificando, Niko ajeitou o manto na parte do pescoço, continuando sua caminhada. Seu olhar estava fixo nos pés, como se preferisse olhar para marcas já deixadas para trás em vez de encarar o presente.
Foi então que as lembranças voltaram à mente sem que ele pedisse: Väinö e Dahlia, falando sobre a Skarshyn. Eles disseram que ele pertenceu àquela organização, que foi uma peça importante, que eram uma “família”, e que um dia desapareceu nas garras do inimigo, deixando-os para trás, tristes pela perda. Não queria acreditar que aquilo fosse verdade, mas cada dia que se passava acreditava cada vez mais que aquilo era a verdade.
“Se eu entrar para a Skarshyn… o que exatamente terei de fazer?” A dúvida surgiu em sua mente junto de uma dor física. “Será que vou me tornar alguém que eu odiaria?… Será que eu já fui essa pessoa?”
Dobrou a próxima esquina e entrou em uma rua estreita, onde carroças não passavam. O vento era mais fraco ali, abafado pelas construções que se apertavam lado a lado. Os prédios eram antigos, de tijolos escurecidos, janelas gradeadas e as fachadas gastas, um lembrete que o tempo havia deixado aquele quarteirão esquecido. Uma ou outra lâmpada se iluminava com dificuldade na escuridão, mas a maior parte do lugar estava mergulhada em sombras.
Niko caminhava devagar, com a mão esquerda no bolso da calça e os olhos no chão, perdido nos próprios pensamentos. “E se eu descobrir que fui alguém horrível? Que fiz alguma coisa imperdoável? Eu conseguiria viver sabendo disso? Viver comigo mesmo?”
Ele não tinha resposta. E o pior era que, no fundo, tinha medo de descobrir. Medo de que a verdade chegasse e ele fosse de fato um monstro, alguém que odiaria ser e viver como todos os dias.
Foi quando ouviu um som. Não era um estrondo, mas uma pancada seca, abafada, de algo caindo contra o chão com força. Não foi alto o suficiente para se assustar, mas mesmo assim era o tipo de som que fazia o corpo reagir antes da mente entender o que aconteceu.
Niko ergueu o rosto e arregalou os olhos.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.