Capítulo 148 - Sant Miquel II
— Lieuwirk entrou em guerra com Kyndral não faz tanto tempo assim. — comentou, de voz baixa, quase neutra. — Por que voltaram a ter relações de fronteira e comércio com Kyndral? — murmurou, mais para si do que para receber uma resposta.
Brigitte ergueu o braço bom de repente, com o cotovelo dobrado, a mão levantada no ar como uma criança pedindo licença para falar em sala de aula. O gesto foi automático, quase cômico, contrastando com o peso do assunto.
— Luminara também entrou em guerra com Endovia na Guerra Incompleta. — disse ela, com um sorriso espontâneo demais para o tema, sem perceber o próprio tom no instante em que as palavras saíram da boca.
Niko virou o rosto para ela devagar, entre curioso, sério e confuso. O custo real daquele tipo de conflito era alto demais para Brigitte falar de maneira tão casual sobre isso, ainda por cima, um conflito recente. Além disso, guerras incompletas eram as piores: não davam resolução, não ensinavam lições, apenas deixavam gerações inteiras convivendo com consequências mal resolvidas.
— Você não devia falar isso como se fosse algo casual. — disse, sem elevar a voz, mas com firmeza.
Brigitte piscou, pega de surpresa. O sorriso desapareceu quase no mesmo instante, substituído por uma expressão meio sem graça, meio boba, como se tivesse tropeçado em algo óbvio demais para não ter visto antes.
— É… — murmurou, coçando a bochecha com o dedo. — Eu sei, eu sei… não é que eu ache legal nem nada. É só que… — ela deu um pequeno suspiro. — Às vezes a história fica presa na garganta. Se eu não falo, parece que pesa mais.
Niko não respondeu de imediato. Ele a observou por alguns segundos. Brigitte sempre foi espontânea demais para filtrar tudo e intensa demais para engolir o que sentia em silêncio. Não era insensibilidade, era apenas o orgulho da própria história. Em vez de dizer qualquer coisa, Niko apenas assentiu levemente e deslizou o olhar pelo mapa até alcançar Arvallia, o trecho final antes de Luminara.
— E Arvallia? — perguntou. — O que você acha de lá?
Brigitte fez uma careta instantânea, sem tentar esconder.
— Não gosto muito. País ruim. — respondeu, simples, dando de ombros, como quem não quer aprofundar no assunto. — Tem lugares bonitos, eu sei… mas não é pra mim.
Niko apenas assentiu, aceitando a informação sem questionar. Ele percebeu que aquele não era um desgosto superficial, mas algo mais profundo, motivações pessoais demais para uma conversa em uma plataforma de estação.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Era o tipo de pausa que surge quando ninguém quer empurrar uma conversa para onde ela ainda não pode ir. O apito distante de um trem ecoou pela estação, misturando-se aos passos de viajantes, malas sendo arrastadas e mudança de placas anunciando horários e destinos.
Evelyn então quebrou o silêncio. Ela estava sentada um pouco afastada, encostada em um banco ao lado de uma das colunas da plataforma, com um livro aberto nas mãos. O número de páginas era mediano — cerca de duzentas —, mas as letras eram pequenas, cheias de símbolos curvos e acentos estranhos. Ela passou os olhos por uma linha, franziu a testa, deu um suspiro alto e murmurou algo quase inaudível.
— Esse “R” aqui… — comentou Evelyn, sem levantar muito a voz, com os olhos ainda presos à página. — Parece que você tá engasgando quando fala.
Brigitte virou o rosto na hora, curiosa. Tudo que envolvia sua terra natal chamava sua atenção com facilidade. Isso também valia para gatinhos, aventuras perigosas e crônicas exageradas de heróis.
— O “R” luminárico? — perguntou. — Ah, esse mesmo. É tipo…
Ela tentou reproduzir o som, exagerando de propósito, fazendo algo entre um rosnado grave e um arranhão de garganta mal resolvido. Em seguida, abriu um sorriso satisfeito.
— Pra quem não sabe luminárico é difícil mesmo. Mas pra uma nativa como eu… parlar d’aiste mòde és la cauça mai fàcil i comuna d’totas. Tu prenes lo mòde, un’ora. — disse ela, gesticulando cheia de orgulho.
Evelyn fechou o livro devagar e lançou um olhar fechado para ela, expandindo um pouco as bochechas.
— Exibida… — disse, seca. — Mas afinal, o que você falou?
Antes que Brigitte pudesse responder, Niko falou, tirando os olhos do mapa, focando em Evelyn.
— Provavelmente ela falando que era fácil pra falar a língua porque nasceu lá. — disse, com naturalidade.
Brigitte piscou, surpresa por meio segundo, e então apontou para ele com um grande sorriso no rosto.
— Exatamente isso!
Niko arqueou levemente a sobrancelha. Não era a primeira vez que aquilo acontecia, mas ainda assim era estranho. Ele não falava luminárico, nunca estudou a língua, mas às vezes ele simplesmente sabia as palavras que saiam da boca de Brigitte, como se tivesse uma intuição sobrenatural.
Evelyn fez uma careta, abrindo e dando atenção novamente ao livro.
— Horrível esse “R”. Mas… — ela suspirou, ainda focada no livro. — Tô começando a pegar o jeito. É uma língua um pouco difícil, cheia de vícios estranhos, mas… — deu de ombros. — tô indo.
Niko levantou um pouco os lábios e soltou um som curto pelo nariz, quase um riso.
— Não vejo por que eu precisaria aprender luminárico. — disse, cruzando os braços, dando um olhar presunçoso para Brigitte. — A gente já tem você pra traduzir.
Brigitte arregalou os olhos, indignada com tal rebaixamento. Uma mera “tradutora”.
— Ei! — protestou, apontando para o próprio peito. — Eu sou mais do que a tradutora do grupo, sabia?!
— Claro que é. — respondeu Niko, sem ironia, inclinando o rosto. — Mas também é a melhor tradutora que a gente poderia ter.
Ela ficou alguns segundos processando a fala, depois desviou o olhar e cruzou os braços, bufando baixo e fazendo biquinho.
— Mwff.
O apito da locomotiva soou novamente, agora mais próximo do grupo. O trem finalmente se aproximava da plataforma, pesado e longo, com vagões escuros de listras azuis e janelas iluminadas. A placa acima mudou, indicando agora o destino final: Krutasaqh, com paradas intermediárias até Daurlúcia.
Niko ficou para trás por um instante enquanto as duas se aproximavam da porta do vagão. Observou os trilhos se estendendo à frente, enormes linhas de ferro cortando o continente, atravessando fronteiras que ele só conhecia por mapas e palavras. Era estranho pensar que estava saindo de Reiken, mais que isso, do país, algo que nunca havia feito antes.
Ele inspirou fundo o ar frio da estação, que enchia seus pulmões de esperança, esperança de que o futuro seria agradável, e então seguiu em frente. As portas se fecharam atrás deles com um som firme e o trem começou a se mover, lento no início, aumentando a velocidade conforme pegava impulso.

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