Capítulo 83 - As Descobertas III
O terceiro funcionário foi encontrado no depósito ao lado da casa principal, limpando ferramentas com panos grossos e óleo. Era uma mulher robusta, de rosto quadrado e expressão dura. Seu nome era Berta.
— Ninguém mexeu no celeiro desde que vocês chegaram, podem ficar tranquilos… Quer dizer, só pra tirar o boi. Só isso. — disse ela, sem tirar os olhos da peça metálica que esfregava com força. — Aquilo me deu pesadelos. Dormir depois de ver aquilo não é fácil, sabiam?
— Sim, a gente sabe muito bem… — respondeu Evelyn, desviando o olhar.
Mas sabe o que mais me preocupa?
— O quê?
— A gente tem história aqui. A região inteira tem. O povo fala de coisas… lendas, aparições, gente que viu coisas na floresta. Eu achava tudo bobagem. Mas agora? — ela olhou diretamente para Niko. — Sei não. Vai ver aquele boi foi o começo.
— Você já viu alguma coisa estranha? — perguntou Evelyn.
— Só o boi. Mas tem uma moça que escreve sobre isso. Mora em Reiken. Tem um jornal independente. Só trata desses assuntos esquisitos. Lendas urbanas, desaparecimentos, criaturas do bosque. O nome é “O Corvo da Solitude”. Se contarem a história daqui pra ela, pode ser que ela ajude vocês.
Niko ergueu o rosto, atento.
— Você lembra o nome da jornalista?
— Lucinda. Lucinda Velken. Meio doida, mas esperta. Se tiver alguma conexão entre o que aconteceu aqui e outros casos ela deve saber.
Evelyn anotou o nome discretamente em um pedaço de papel.
— Obrigada pela informação.
A quarta e quinta entrevistas não renderam tanto. Um rapaz mais jovem que cuidava da estufa não estava na fazenda na noite do crime — havia ido visitar a mãe na vila próxima — e o último, um senhor idoso chamado Marten, dormira pesado demais para ouvir qualquer coisa. Mas ele repetiu um padrão: não viu ou ouviu nada antes de Raul encontrar o boi.
Aquelas eram notícias horríveis. Algo muito errado havia passado despercebido na fazenda e isso causou a invasão do celeiro e a morte misteriosa e grotesca do gado.
Niko e Evelyn estavam prontos para encontrar com Raul. O céu já começava a escurecer, ainda que fosse pouco mais de três da tarde. O inverno encurtava os dias — e a investigação exigia pressa.
— Vamos falar com ele? — perguntou Evelyn.
Niko assentiu, firme.
— Já passou da hora.
A madeira da varanda estalou levemente quando Niko e Evelyn enquanto se aproximavam da entrada da casa principal da fazenda. Niko bateu à porta com um soquinho. Segundos depois, ela foi aberta pelo próprio Sigurd, ainda de avental, com um pano de prato no ombro. Ele parecia surpreso com a visita, mas não incomodado.
— Algum probêma? — perguntou, direto.
— Não, nenhum. — disse Evelyn. — Só gostaríamos de conversar um pouco com seu filho. Se ele estiver disposto, claro.
O corpo de Sigurd enrijeceu por um segundo, mas logo ele assentiu com um suspiro.
— Ele num gosta muito de falar do que aconteceu, mas… acho que é importante. Podem entrar.
O interior da casa era quente, aquecido por uma grande lareira na sala, um grande contraste com o frio lá fora. A dupla atravessou a sala, em seguida, o corredor com respeito silencioso, subindo as escadas de madeira com cuidado.
No segundo andar, Sigurd indicou uma porta no final do corredor com o polegar.
— O Raul tá no quarto. Só… vaum com calma. Ele ainda tá meio abalado com tudo que aconteceu.
— Pode deixar. — disse Niko.
Sigurd desceu as escadas e os dois ficaram diante da porta, que estava apenas encostada. Evelyn bateu suavemente.
— Raul? Podemos entrar?
Uma pausa ocorreu. Então, uma voz fraca respondeu:
— …Pode.
Niko empurrou a porta com delicadeza. O quarto era simples, com uma cama arrumada no canto, uma escrivaninha sob a janela e uma pequena estante cheia de livros encostada na parede.
Raul estava sentado de pernas cruzadas no chão, com um livro aberto no colo. Seus cabelos castanho-claros estavam bagunçados e a camisa estava um pouco larga demais, como se tivesse sido vestida com pressa. Ao ver os dois, ele se levantou rápido, fechando o livro de forma nervosa.
— D-Desculpa… eu não sabia que… quer dizer… oi.
— Tá tudo bem, Raul. — disse Evelyn, com um sorriso gentil. — Só queríamos conversar um pouco. Sobre aquele dia.
Raul mordeu o lábio inferior e assentiu, mas não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo. Sentou-se de novo no chão, apoiando os cotovelos nos joelhos.
Niko se aproximou, abaixando-se para ficar na mesma altura.
— A gente não tá aqui pra julgar ou pressionar você. A gente só quer entender o que aconteceu. Isso vai ajudar seu pai e a fazenda. Podemos até achar o culpado por isso. Então… conta pra gente o que aconteceu, por favor.
Raul ficou com os olhos estáticos por um segundo, depois assentiu de novo. Respirou fundo. Olhou para as próprias mãos.
— Eu achei que ia ser só mais um dia normal, assim como os outros… — começou ele, com a voz baixa, quase como um sussurro. — Acordei cedo, preparei o café pro meu pai e fui até os currais. Tava frio, mas os bichos já tavam acordando também… Quando cheguei perto do celeiro, achei que eles tavum mais agitados que o normal. Mas às vezes eles ficam assim com o vento, ou se brigam entre si. Daí, eu entrei lá dentru…
Evelyn sentou-se na beirada da cama, ouvindo a história em silêncio.
— Quando entrei… eu percebi que um dos bois não tava na estalagem dele. Achei que tinha fugido ou quebrado alguma cerca. Fui procurar. Entrei lá dentro. — ele começou a mexer nos dedos, nervoso. — Aí eu… achei ele. Caído no canto. Já morto… Destroçado…
Raul engoliu em seco. Seus olhos evitavam os de Niko o tempo inteiro.
— Tinha sangue em tudo. No chão, nas paredes. As… tripas dele tavam espalhadas. E os olhos… estavam tão brancos que pareciam de vidro. Eu… — ele hesitou, a voz tremendo por um segundo. — Eu tentei sair, mas tropecei. Acho que foi nas tripas dele. Eu caí. Caí no sangue. Fiquei de frente pro bicho. Quase gritei. Levantei e só corri. Nem olhei pra trás.
Depois da história, houve silêncio. Evelyn se levantou e se aproximou do garoto, agachando-se também, mantendo o tom reconfortante.
— Você viu alguma outra coisa? Alguma sombra, barulho estranho? Qualquer detalhe pode ser útil.
Raul balançou a cabeça lentamente.
— Não… eu não vi nada. Nenhum barulho diferente. Só o gado agitado. E o boi morto. Foi tudo muito… rápido. Só me lembro do som do meu coração batendo. Pensei que ele ia explodir.
Ele olhou para Niko pela primeira vez desde que ele entrou no quarto.
— Me desculpa. Eu devia ter oiado melhô. Mas… eu só queria ir embora dali.
— Não tem nada pra se desculpar. — disse Niko, com seriedade. — Você fez o certo. Se tivesse ficado lá podia ter morrido também. Além de que você contou o que lembra. Isso já ajuda bastante.
Raul respirou com mais calma agora. Seus ombros começaram a relaxar.
— Tá tudo bem se eu não quiser… voltar lá?
— Ninguém vai obrigar você. — disse Evelyn. — Pelo contrário. Pode focar em descansar e ajudar onde se sentir confortável.
Raul assentiu mais uma vez. Abriu um pequeno sorriso cansado.
— Obrigado.
Niko e Evelyn se levantaram, indo até a porta.
— Se lembrar de qualquer coisa, mesmo pequena, avisa seu pai. Ele nos repassa. — disse Niko.
— Tá bom.
Já no corredor, enquanto fechavam a porta atrás de si, Evelyn sussurrou:
— Ele viu mais do que deveria.
— E mesmo assim não viu nada de útil pra missão. — completou Niko. — Mas… dá pra confiar nele. Dá pra ver que não tá escondendo nada.
— Concordo.
Depois da conversa, os dois desceram em silêncio, prontos para continuar a investigação.
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