Capítulo 99 - A Heroína
O sol de primavera estava no ponto mais alto, projetando sombras curtas sobre os telhados tortos de madeira antiga e as flores recém-brotadas que decoravam o vilarejo, pintando o ar com um perfume leve e doce que parecia anunciar que o outono havia, enfim, acabado. Era meio-dia, e as crianças corriam em volta da fonte da praça, rindo alto, jogando pedrinhas na água, empurrando-se de brincadeira e desaparecendo entre barris e varais em um jogo improvisado de esconderijo.
Todas, menos Brigitte e seus colegas.
Ela estava erguida no topo de uma caixa virada, com uma tira de pano amarrada ao pescoço como capa improvisada. Segurava um galho comprido e torto, empunhado como se fosse uma espada de verdade. O corpo ereto, o queixo alto e um sorriso constante davam-lhe o ar de uma pequena heroína, pronta para enfrentar qualquer perigo imaginário, em pleno discurso.
— E eu disse: basta, criatura da escuridão! Enquanto eu respirar, nenhum vilarejo será tomado! — declarou, apontando a “espada” para um carrinho de feno imaginário, onde, para ela, se escondia um inimigo tão invisível quanto ameaçador.
Assim que terminou a fala, um fraco estalo percorreu o galho, e um minúsculo raio escapou da ponta, desaparecendo no ar antes que alguém pudesse piscar. Céline e Bastien bateram palmas com entusiasmo; Alix, encostado em um barril, deixou escapar uma risada baixa; e Clarisse, de braços cruzados, soltou um suspiro longo e carregado.
— Isso nem faz sentido, Brigitte. Que tipo de besta atacaria um fardo de feno? — perguntou, levantando a sobrancelha.
— Um monstro devorador de feno! — respondeu a garota sem hesitar, jogando a capa para trás com um gesto teatral. — E um cavaleiro precisa defender tudo o que puder… até mesmo os fardos de feno!
— Tsc.
Desde que assistiu a peça da Princesa Âmbar, Brigitte passou a viver suas brincadeiras como se estivesse em um mundo de cavaleiros e monstros. Muitos riam de suas encenações; alguns, nem tanto. Mas, no geral, todos na vila pareciam gostar da nova Brigitte. Trazia personalidade à vila.
***
Na semana seguinte, Brigitte ganhou um novo hábito: visitar a biblioteca da igreja. No início, não fazia muito além de ficar ali parada, caminhando devagar entre as prateleiras e observando as ilustrações coloridas dos livros.
— Hm… eu não consigo ler nada… — murmurou para si mesma, passando a ponta dos dedos pelas lombadas empoeiradas, como se o toque pudesse revelar o conteúdo escrito.
Brigitte nunca havia frequentado uma escola — a mais próxima ficava à trinta quilômetros de distância, na cidade vizinha —, e seus pais, sempre ocupados, raramente tinham tempo para lhe ensinar a ler. A maior parte de seus dias era preenchida com brincadeiras na praça e ajudando vizinhos em troca de alguns trocados ou de um punhado de doces.
A biblioteca era pequena, havia somente três estantes e um armário trancado, onde o padre guardava os livros “delicados demais” para os olhos dos pequenos. De uma das prateleiras, envolta por um leve cheiro de papel envelhecido, Brigitte puxou um livro aleatório, de capa azul-marinho, gravado com uma ilustração dourada de um guerreiro duelando contra uma serpente de três cabeças.
Tentar ler aquelas páginas era como encarar uma muralha. As palavras pareciam embaralhadas, compridas demais; apenas algumas soavam familiares. Virou a página por puro orgulho… depois outra. Mais ilustrações. As ilustrações ela entendia — e adorava. Mas o resto continuava um mistério.
— Está tentando adivinhar a história pelas imagens, Brigitte? — perguntou uma voz rouca atrás dela.
— Argh! — ela pulou no banco, virando-se rápido.
Padre René a observava com um sorriso leve. Era um homem magro, velho, de sobrancelhas espessas, mãos manchadas de tinta — resultado de anotações e livros reencadernados por décadas — e postura sempre um pouco inclinada, como se vivesse mais próximo dos livros que das pessoas.
— Sim… — respondeu Brigitte, abraçando o livro contra o peito. — É só que… eu ainda não aprendi a ler direito.
— E mesmo assim veio até aqui.
— Eu queria… — hesitou por um instante. — …entender essas histórias. Igual a da Princesa Âmbar.
Os olhos castanhos do padre brilharam.
— Uhm. Um desejo nobre. Quer ajuda?
Ela assentiu, cautelosa.
— Tem certeza? Porque isso vai dar trabalho. Ler é como domar um cavalo selvagem. Primeiro ele te joga no chão várias vezes, depois começa a escutar. Mas é preciso paciência.
— Eu sou paciente! — disse ela rápido, mesmo sem muita certeza disso.
— Hahaha!
O padre soltou uma risada curta e puxou um livrinho da prateleira mais baixa — um livro de capa levemente gasta, com desenhos simples e frases curtas. Abriu-o e apontou para a primeira linha:
— “O sol nasce no céu.” Vamos, leia comigo.
— O… o s…ol… n-nasce… no…
— Céu. Perfeito. De novo.
Repetiram a frase quatro vezes, para que Brigitte entendesse a lógica das palavras, depois passaram para outra frase. A cada acerto, René fazia um “hmm” satisfeito e riscava algo invisível no ar. A cada erro, apenas pedia para tentar outra vez. Sem pressão. Sem julgamentos.
— Você lê com os olhos — disse ele —, mas precisa ouvir com o peito. Toda boa história, toda boa literatura faz barulho aqui dentro. — tocou o próprio peito com dois dedos manchados de grafite. — Você precisa sentir as palavras. Se isso não acontecer, tem algo de errado, ou com o livro, ou com você.
Brigitte não entendeu direito o que o padre quis dizer, mas adorou o jeito que a frase soava.
Nas semanas seguintes, o padre passou a ensiná-la a ler depois da missa. Às vezes com barro nas botas, às vezes com o cabelo preso de qualquer jeito, mas sempre com vontade de continuar. Aos poucos, os livrinhos simples logo deram lugar a volumes mais grossos.
Certo dia, após terminar uma história sobre um rei que derrotou um dragão com palavras em vez de força, Brigitte fechou o livro devagar, olhou para o padre e disse:
— Um dia, quero escrever uma história minha também.
René assentiu, o olhar carregado da experiência de quem já viu sonhos nascerem e sumirem — e sabia reconhecer os que vinham para ficar.
— Então comece vivendo-a.
Brigitte não respondeu, mas sorriu com todos os dentes. Sem perceber, estava no primeiro capítulo de algo muito maior do que podia imaginar.
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