Capítulo 2
Não tenho lembranças do começo da minha vida, muito menos do final. Talvez eu esteja morto. Talvez esteja narrando essa história para os Deuses Brancos ou talvez para os Primeiros Filhos… ou apenas delirando, jogado em uma vala qualquer.
Muitos dizem que o mundo gira em torno do ouro, ou da prata, ou mesmo do ferro. Eu, porém, digo que o mundo gira em torno do amor, do ódio e do orgulho.
Um guerreiro luta para proteger sua família, suas terras, sua honra ou até mesmo sua vida. Mas, se sua vida não tiver sentido ou motivação, não haverá ouro no mundo que o fará lutar. Minha história gira em torno do amor e, principalmente, do ódio.
Por amor, ódio, cobiça ou qualquer outro sentimento, um guerreiro poderia reivindicar uma esposa, mesmo ela sendo comprometida. Essa era uma antiga tradição da nação que meus antepassados ajudaram a construir.
Contudo, não era tão fácil quanto parecia. Ele deveria pagar uma certa quantia para o pai da jovem e outra para o noivo expurgado. Se este não concordasse, poderia exigir sangue.
O pai da Promised rejeitada receberia o valor do dote dobrado. O valor do dote deveria ser pago no momento do acordo. Ele poderia aumentar se a jovem crescesse muito bela ou diminuir se sofresse algum acidente. Nesses casos, era o pai da Promised que deveria pagar para o noivo, pois era seu dever protegê-la até a idade de casar. Não era nada justa essa tradição.
Muitas mortes, traições, roubos e desgraças acontecem por ela ser vaga e pouco conclusiva. Muitas famílias colocavam ou retiravam elementos que julgassem desnecessários ou não vantajosos, mas como sempre os fortes e poderosos ditavam as regras.
Antes dessa tradição, muitas famílias vendiam suas filhas como escravas. Mas isso só acontecia no começo e no final de cada ciclo. Algumas famílias chegavam ao final do ciclo tão debilitadas que vendiam até mesmo os garotos, uma prática não muito inteligente, pois quem defenderia a aldeia caçaria ou mesmo reconstruiria as casas?
Em minha vila, era vergonhoso as mulheres fazerem este tipo de trabalho. Minha mãe odiava isso. Em sua aldeia, as mulheres eram tratadas de forma semelhante aos homens, lutavam, caçavam, eram líderes de povoados. Tudo que um homem fazia elas poderiam se quisessem.
Era comum haver mercadores de escravos em nossa cidade portuária. Tínhamos uma boa lã de Jarquim, além de minérios e pedras preciosas. O porto era movimentado em alguns anos do ciclo, e as estradas, em outros, assim contavam os mais velhos.
Eu não tinha Promised, pelo menos achava que não. Contudo, iria apaixonar-me pela filha do ferreiro. Um homem truculento, bruto e era o meu mentor!
Ela tinha longos cabelos negros, quase tocando o chão. Nunca soube qual era a real cor dos seus olhos, embora fosse onde eu passava muitas horas, mergulhado em sonhos embriagantes. A sua boca dificilmente poderei descrevê-la, porém me contenho em dizer que era perfeita. Sua pele era uma ilusão, ora branca como a neve, outras, algo como o brilho de Eros no crepúsculo de Nix.
Com facilidade, perdia-me em meus pensamentos. Mas logo era acordado de meus sonhos pelo seu pai, que, com um grito de raiva, fazia meu corpo estremecer.
— Você não está me escutando! — Reclamava ele em tom de ameaça. O seu nome era Esdom; tinha braços fortes, mãos grandes, olhos negros e cabelo anelado.
Era meu mestre de ofício e também me ensinava a lutar, o que não era comum em minha nação, pois cabia ao pai e na falta deste, a responsabilidade passava para o parente mais próximo, meu tio. Porém, sendo o líder da tribo, não dispunha de tempo, mesmo não tendo filho homem.
Quando o ferreiro Esdom chegou à nossa vila, meu pai não tardou em fazer um acordo, assim contou minha mãe.
— … um pedaço de terra com muito minério de ferro — falou meu pai ao notar que o seu novo amigo era um exímio ferreiro.
— Feito! Seu filho deverá estar todos os dias em minha oficina, ele começa antes da primeira luz de Eros brilhar atrás da mãe Nix.
Lembro-me vagamente de meu primeiro dia em sua forja, mas posso assegurar que odiei aquele lugar: era quente, abafado e fedia a enxofre. O ferreiro não ajudava com seu mau humor terrível. Lembro-me de várias vezes fugir da forja para brincar com Izi, mas não demorava e Esdom arrastava-me pela orelha para a oficina. Tudo isso ficaria apenas como lembranças de um passado feliz se não fosse aquele fatídico dia.
Era para ser um dia normal, fora que seria minha primeira folga em anos. Para Esdom, não havia dia de descanso, nem para mim. Fui acordado por uma risada calorosa e arrastei-me em direção à cozinha, seguindo as gargalhadas. Debruçado sobre a mesa, meu pai tentava se conter.
Entre risos, ele disse:
— Gostaria de ver a cara dele quando descobrir — outra gargalhada fez minha mãe não resistir, soltando um riso contido. Eu estava muito sonolento e distraído para rir.
— Olha quem acordou! — ironizou meu pai.
— Qual é o motivo de tanta risada? – Perguntei em meio a um bocejo.
— Não é nada, meu filho! — Meu pai ainda tentava conter o riso. Isso me fez ficar desconfiado.
— Como nada? Não vejo você rindo dessa maneira faz muito tempo! E quando você chegou?
Não houve resposta.
— Mãe! Do que vocês estão rindo?
— Pergunte a seu pai, eu tenho que preparar seu café.
Meu pai, vendo que não adiantava desconversar, por fim falou, ainda rindo:
— Sua mãe contou-me sobre seus treinos secretos com a filha do ferreiro!
— Qual é a graça? — Contestei, um pouco irritado.
— A graça será a reação do Esdom quando descobrir.
— Não será nada engraçado.
— Realmente, não vai ser engraçado para você, mas eu daria tudo para presenciar a cena…
Eu não soube o que responder, então fiquei calado, pensando na fúria do ferreiro quando descobrisse.
— Irei apresentar você na Academia hoje. — Anunciou meu pai bruscamente.
— Co… como? Pensei que não faria!
— Chiaro Marru insistiu, será necessário. Ele me fez prometer.
— Eu deveria ter entrado há dois anos, é tradição.
— Seu tio cuidará disto. Agora vamos lá para fora, quero ver se você está treinando corretamente ou apenas de namorico.
— Esforcei-me para não retrucar, assim confirmando as suspeitas do meu pai, não que eu estivesse de namorico.
Antes mesmo de darmos um passo em direção à porta, minha mãe gritou:
— Kannofi, o café está pronto!
— Estou indo, Ulia! — Respondeu meu pai sem alterar a voz.
— Vamos, Kan, antes que sua mãe traga uma vassoura para nos apressar.
Não comi quase nada, estava ansioso e irritado por não conseguir convencer meu pai da necessidade de avisar o ferreiro. Essa foi a minha desculpa, mas o que eu realmente queria era me despedir da Izi.
Seria uma longa caminhada até a Academia se não tivéssemos animais de montaria. O meu era um belo animal negro azulado de nome Agzul.
— Ele está um pouco nervoso hoje. Relutou bastante em colocar a sela. — Um servo explicou a demora ao entregar-me as rédeas.
— O que foi, Agzul? Aconteceu alguma coisa? Você vai ficar bem, amigo. Só vou ficar
alguns dias fora. Minha mãe vai cuidar bem de você. — Expliquei enquanto afagava seu pescoço.
— Agzul!? — Zombo meu pai com um ar pensativo e sarcástico — Ele deve ter vergonha desse nome.
— A culpa foi sua por ele ter esse nome.
— Minha?! Foi você quem deu esse nome a ele.
— Era para ser “Azul”! — Falei um pouco ressentido e envergonhado. — Você sabe muito bem. Se você não tivesse ficado naquele verão – o único, afinal – eu teria esquecido e talvez o chamasse de outra coisa, mas você ficava o tempo todo: “Agzul, Agzul, Agzul”. Você acha que esqueci? Quando eu consegui falar o nome certo, tentei mudar para “Azul”, mas ele não atendia. Talvez ele seja igual ao senhor: gosta de me envergonhar.
— Você era tão pequeno, eu achava uma graça sua cara de nervoso, tentando falar a palavra certa.
Fiquei envergonhado, mas não disse nada, se eu falasse poderia piorar. Contudo, piorou mesmo assim.
— Aquele foi um ótimo verão — ponderou meu pai. — Você já ganhou muitos presentes, mas nunca vi você tão feliz quanto no dia em que ganhou esse animal. Você se lembra mesmo?
— Claro que eu lembro, pai. Você devia passar mais tempo em casa, a mãe e eu sentimos falta.
— Eu sei, meu filho, tudo o que eu mais quero é ficar junto de vocês. — Era nítido o sentimento de culpa em sua voz, pois ele quase nunca falava sério. Um curto silêncio pairou no ar.
— Temos que ir, Kan, já estamos atrasados.
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