Capítulo 38 - Não subestime o desconhecido
[ Pátio da Academia Shihai de Asahi, às 12:55h. ]
Os alunos da turma 1F andavam pelo caminho de brita que seguia até o Campo de Treinamento 1, o mesmo que haviam frequentado no dia anterior.
O sol não pegava leve, torrando tudo e todos sob sua luz impiedosa.
Entre passos arrastados e bocejos mal disfarçados, Minoru suspirava com dramaticidade. — Caaara, esse sol tá me matando. — Se cansaço fosse uma arte, ele seria o Picasso.
Mas Nihara, que caminhava ao lado, não estava nem um pouco paciente. — Coé, para de resmungar! O dia mal começou e você já quer voltar pra cama?
— Ah, dá um tempo! — protestava Minoru, abanando a mão para afastar a bronca — a última aula do seu tio foi um porre. Sério, como você conseguiu prestar atenção naquilo?
— E quem disse que eu prestei? Só não fiquei pescando o tempo todo! Aliás, você deveria agradecer por não ter sido mandado embora da sala, estava parecendo um zumbi!
Minoru coçou a nuca, claramente sem um contra-ataque.
— Aí! — Kentaro apareceu com as mãos atrás da cabeça — algum de vocês sabe quem será o próximo instrutor?!
— Não faço a mínima ideia, talvez Nihara saiba.
— Eu? Nem olha pra mim.
— Pelo menos conhece alguém que saiba?
Observando os arredores, Nihara avistou alguém que pudesse ter a resposta. — Ei, tampinha! — Ele chamou Kyoko, causando uma pontada de raiva na que caminhava sozinha à frente. — Sabe quem é o instrutor de agora?
Apertando os dentes, a garota nem se deu ao trabalho de olhar para trás. — Ela deve estar esperando no campo de batalha.
— Ela?! — repetiu Kentaro — então é uma instrutora?!
— Sim. Algum problema?
— Nenhum! Só quero saber como ela é. Vai, conta pra gente!
Kyoko soltou o ar, cansada de perguntas tão triviais. — Uma velha. Mais de cem anos.
— MAIS DE CEM ANOS???!!! — Os garotos não acreditavam.
— Teremos instruções com uma múmia, é? — zoou o careca.
— Se eu fosse você, teria mais cuidado com desconhecidos, moleque.
Kentaro levantou as mãos em rendição. — Hahaha! Pode deixar! — Seguidamente ele juntou os dois colegas próximos entre cada braço. — Eu e os rapazes estamos preparados para o que vier!
Kyoko revirou os olhos, já sem paciência. — Que seja… — E logo após, acelerou o passo, afastando-se do trio antes que a enlouquecessem de vez. Enquanto resmungava para si mesma, suas palavras escapavam em um sussurro raivoso. — Que pé no saco! Será que eu poderia ter apenas um tempinho de paz?

[ Campo de Treinamento 1 da Academia Shihai de Asahi, às 13h. ]
— Eu deveria ter pedido mais tempo de paz…
Sorrindo, Nikko acariciava o topo da cabeça de Kyoko, tratando-a como um troféu. — Já falei pra vocês que essa aqui é a minha melhor amiga?! Ela nunca me decepciona, diferente de uns entre nós… — ela estreitou os olhos.
— Miya, você disse que ela iria esquecer tudo aquilo logo.
— E ela vai esquecer, só que… dessa vez está durando mais do que eu esperava…
Enquanto isso, Mayumi mantinha os olhos no trocador do campo. — Há mesmo a certeza de que a instrutora está ali? Está ficando atrasada.
— Estava no comunicado no primeiro andar — respondeu Teruo, ajustando a ponte dos óculos coloridos.
— Vocês realmente olham aqueles quadros? — Rin parecia intrigada.
— Mas é sempre bom olhar — recomendou Aruni.
— Pois é — seguiu Sho — mas é estranho pensar o porquê da instrutora estar dentro do trocador. Não acha, Kurosawa? — perguntou ele para a garota à sua direita.
— Ah, não fala comigo, não, tá? — Com uma voz sem ânimo, uma cara de poucos amigos fugiu de um olhar esperançoso.
— … Tá bom… — Sho encolhia os ombros, claramente desconfortável com o clima.
Apreensivo, Akemi compartilhava suas angústias. — Só espero que essa instrutora não seja como o Major Yura. Aquele cara quase me matou, literalmente!
Ainda aturando carinhos indesejados, Kyoko colocou as mãos na cintura e encarou o garoto. — Ela não vai te matar, rapaz…! Bom, pelo menos não demonstrará essa intenção, já serve de algo.
— Pera aí! — Nikko caçava algo com os olhos — ouvi dizer que hoje teríamos treinamentos áuricos, então achei que poderíamos usar nossas armas, até porque sei que tem gente aqui que depende delas, mas… cadê as armas? Inclusive a minha?!
“Nikko usa uma arma?!”
— Nenhuma lâmina ou escudo — dizia Mayumi — sabe o que essa instrutora pretende, Shimizu?
— É uma pessoa que gosta de desafiar, não estranhem qualquer loucura.
— Loucura?! — Nikko demonstrou interesse no que foi dito; ela agachou-se e pousou as mãos nos ombros de Kyoko, sacudindo-a levemente. — Que tipos de coisas ela pode fazer com a gente, ein?!
— Ôe! Vê se desgruda! — Kyoko livrou-se das mãos irritantes. — Eu não sei o que virá. E podem ficar pensando o quanto quiserem, eu não vou perder tempo com as ideias daquela mulher.
— Você a conhece? — perguntou Miya.
Kyoko respirou fundo e encarou o chão. — … É a minha tataravó.
Nheeeeeeeeeeiiiccc…
Um som agudo espalhou-se no ar. Todos os olhares voltaram para a porta do trocador, que vagarosamente abria até revelar…
— Ih, alá! A velha tá sobre rodas! — Kentaro apontava, indiscreto.
Com seu rosto neutro iluminado pela luz do sol, uma mulher sentada em uma cadeira de rodas se aproximava da turma. Mesmo que suas mãos fossem um pouco atrofiadas, elas não impediam o ato de girar as rodas sem um esforço aparente.
Os cabelos médios e grisalhos presos a um penteado estiloso combinavam com os olhos prateados; já o uniforme militar com cores fortes de azul, medalhas e sutaches, lhe davam uma aparência respeitável.
Mas um detalhe peculiar trazia uma queixa intragável.
Cobrindo a boca, Minoru se aproximou dos ouvidos de Nihara. — Vem cá, ela não tinha mais de cem anos?
— E eu sei lá, parece que tem quarenta.
Apesar da cadeira de rodas e das mãos quase ineficientes, a mulher possuía uma vitalidade incomum para alguém com sinais tão claros de problemas físicos. Nenhuma ruga marcante, nenhuma olheira profunda lhe trazia o rosto acabado de quem estava nos estágios finais da vida.
Ela continuava se aproximando, girando as rodas por conta própria.
A turma não sabia como reagir perante a militar que passava entre eles, e quem poderia culpá-los? O ambiente já não era exatamente tranquilo, uma indecisão atrapalhava os mais jovens.
Até que finalmente, um passo adiante demonstrou prontidão.
Aruni cautelosamente aproximou-se, mas mordeu o lábio e ajeitou a lateral dos óculos, o que estragou sua tentativa de agir com confiança. — E-em… a-a senhora… precisa de ajuda?
A mulher ergueu o olhar, seu sorriso maternal dissolveu qualquer aflição. — Não precisa se preocupar, querida. Apenas quero passar por vocês até o outro lado — sua voz era rouca e grave, mas com um toque meigo, relembrando a entonação de uma avó carinhosa que contava histórias antes de dormir.
Ela passou por entre os alunos, contemplando o rosto de cada um com um breve sorriso caloroso.
Aruni, e todos os outros, relaxaram por um momento, afinal, era bom ter um pouco de gentileza em um ambiente tão exigente.
“Ufa, uma pessoa normal…”
Já a uma certa distância, a militar girou a cadeira, ficando de frente à turma. — Meus queridos alunos, se não for incômodo, irei me apresentar. Meu nome é Hisako Shimizu, e serei a instrutora de vocês sobre o “Aprimoramento Áurico Interior”. Ou seja, buscarei o máximo da mais pura capacidade áurica de vocês pelos próximos meses que temos até o final deste ano.
Akemi sentiu o coração acelerar de empolgação. “Ela vai me ensinar como controlar a aura?! Alguém profissional vai me ajudar nisso?! Finalmente!”
Mas Hisako não dava espaço para devaneios prolongados. — Antes de qualquer coisa. Como é de conhecimento dos alunos das classes superiores, costumo aplicar alguns pequenos desafios no primeiro dia. E aqui vai a minha primeira pergunta. Vocês estão preparados?
— SIM, SENHORA!!!
A mulher sorriu, satisfeita. — He ho ho! Esplêndido! Vocês parecem uma turma bastante disciplinada. Espero que nenhum de vocês fique para trás e que possam aproveitar ao máximo a trajetória de formação na Academia Shihai de Asahi.
Mas nem todos compartilhavam desse otimismo. Kentaro se inclinou para perto de Nihara. — Aí, tô com um mau pressentimento nessa coroa. Nunca vi alguém falar assim num meio militar. Ali tem coisa…
— Então, sem mais delongas, vamos começar?
“O que será que ela preparou pra gente?”
A gentileza da instrutora contagiava todos ao seu redor com um ânimo irresistível. Era praticamente impossível não se deixar levar por sua elegância e autenticidade.
No entanto, devemos lembrar que a vida guarda lições que não podemos ignorar.
Por mais encantador que alguém pareça, por mais perfeita que sua máscara possa ser aos olhos atentos ou inocentes, é crucial lembrar: toda cortesia pode esconder segundas intenções.
O desconhecido sempre carrega surpresas.
— PRIMEIRO DESAFIO!!! “APROXIME-SE DA MORTE”!!! — A voz antes acolhedora transformou-se em algo como o eco de um…
“UM DEMÔNIO???!!! O QUE ACONTECEU COM ELA???!!!”
A feição de Hisako distorceu-se; só restaram olhares sérios e um sorriso amedrontador. — Um desafio simples! O clássico dos meus mais de 70 anos nesta instituição! — Ela abriu os braços, um teatro estava sendo feito — todos vocês, usando tudo o que têm em suas auras, devem tentar me encostar um dedo que for! Podem usar qualquer artimanha: sujeira, ataques baixos, injustiças, covardias, o que quiserem! Surpreendam-me!
— Viram? Exatamente como eu falei — relembrou Kyoko para os amigos por perto.
Sho levou a mão ao queixo, pensando nas implicações. — Se ela permite qualquer coisa, significa que está completamente segura de si. Isso tá bastante perigoso. Como ela vai reagir?
Mayumi também analisava o momento. — Sem equipamentos apropriados, minha aura é inútil. E talvez não valha a pena a dor.
A instrutora ajeitou-se e voltou os olhares afiados à turma. — E para os que não veem vantagem, há uma recompensa! Quem conseguir o feito não precisará frequentar este primeiro período e será promovido diretamente para as turmas E!
O anúncio colocou um brilho nas retinas de Nihara, que trocou olhares com seus dois amigos, todos claramente animados pela chance.
— Ao meu três, vocês podem começar…! Um…! Dois…! TRÊS!!! — O fim da contagem foi como um tiro de partida, mas ninguém se moveu de imediato.
Os presentes pensavam cuidadosamente no que fazer, todos tentavam decifrar o melhor passo para aquele jogo perigoso.
Mas aquela quietude frágil despedaçou-se em um instante.
Pffshhh…!
Uma fumaça negra avançou, densa como um pesadelo materializado…
Ela envolveu Hisako em um círculo sinistro, obscurecendo tudo o que cerca, retorcendo-se como se tivesse vida própria.
Entre os véus sombrios, dois olhos brilhantes romperam a escuridão — um branco como a lua, e outro claro como uma esmeralda sob a forte luz do dia. Sorrateiramente, uma mão surgiu das trevas, avançando em direção ao ombro do alvo.
Entretanto, nada daquilo incomodava Hisako.

— O-O QUE FOI ISSO???!!! — gritou Akemi, de olhos arregalados quando viu um imenso estalagmite de gelo formado instantaneamente atrás de Hisako, prendendo alguém em uma prisão cristalina.
A cena era tão incrível que parecia uma ilusão para alguns.
“Uma aura de gelo…? M-m-mas ela nem se mexeu! Foi rápido demais! E o que foi aquela fumaça?!” Akemi forçou as vistas no estalagmite, assim percebendo nada mais nada menos do que Aya Hattori congelada como uma estátua lá dentro, um corpo lateralizado no ar mostrando que, apesar da destreza, não foi páreo.
“Aquela fumaça foi a aura daquela garota?! Sinistro! Ela também foi incrivelmente rápida, mas não teve a mínima chance!”
— Como eu disse, não vou perder meu tempo com isso. Divirtam-se — Kyoko saiu de cena.
Akemi engoliu em seco, o que não é muito reconfortante considerando o nó na garganta. — E-eu não acho mesmo que valha a pena, o que você acha disso, Miya? — Sua voz saiu mais trêmula do que ele gostaria, mas, convenhamos, quem sem experiência não estaria?
— Ficarei paradinha aqui.
— É, você tem razão. Não deve ser muito bom ser congelado à toa. Afinal, quem seria bobo de ir pra cima de uma militar daquelas? Não é mesmo, Nikko? — Para ele, procurar um apoio moral para se reconfortar poderia ser bom às vezes. O problema era quando não haviam respostas… — Nikko?
— O ACESSO DA TURMA E É MEU!!!
Nikko foi avistada avançando com uma vontade que beira a inconsequência. Impulsionando seus passos com a força dos ventos, os punhos cerrados e olhos direcionados da garota ampliaram o seu foco e desejo pela promoção.
Ela pensava que nada poderia detê-la? Ou apenas estava se achando uma heroína insana? Não tinha como saber; o que dava para entender era que Akemi só conseguia encará-la, boquiaberto.
— Ela é maluca?! — Ele colocou as mãos na cabeça.
— Hihihi, veremos no que isso vai dar, até porque com certeza a Ni não estará sozinha nessa…
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