Capítulo 6 - A Reflexão
Nas primeiras horas de caminhada, Niko avançava com cautela. Estava carregando um rifle que Evelyn lhe entregará mais cedo, enquanto procurava sinais do lufador. O tédio o acompanhava para onde fosse. Se sua caminhada desde o amanhecer já era tediosa, isso então estava duplamente tedioso.
Ainda assim, suas pernas não doíam. Ele andava com certa facilidade.
— É como se eu estivesse acostumado a andar por longas distâncias…
Aquela análise fez o garoto levantar uma pergunta:
— Por que eu tenho essas armas?
Aquilo era mais uma distração da missão do que uma pergunta real. Além disso, aquilo ajudaria a pensar mais sobre seu passado. Então, no fundo, aquilo era um pensamento útil.
— Se eu carrego essas armas comigo, então devo saber usá-las. Então isso significa que eu lutava. Talvez com frequência… — murmurou, quase como se tentasse convencer a si mesmo.
Suspirou, tentando focar na missão. Mas não conseguiu. Pensar no próprio passado era como estar andando preso a uma corrente elástica — bastava pensar em um único detalhe, sofrer uma única distração para ser arrastado de volta, do início da amarra.
— Será que eu era um mercenário, como a Evelyn? As chances são baixas, mas… nunca se sabe. Talvez eu devesse perguntar pra ela quando voltar pro acampamento.
Mas a pergunta que mais pensava, que insistia em aparecer na sua mente em qualquer lugar ou horário do dia, era uma só:
— Como eu perdi minhas memórias?
Entre todas as dúvidas sobre sua antiga vida, essa era a mais constante delas. Ele simplesmente havia acordado em uma floresta, afastada de tudo, sem sinal de civilização ou vida racional. Era… absurdo.
— Mas o que de fato aconteceu? Será que me abandonaram para morrer naquele lugar? Ou será que eu estava passando por alguns problemas, quis fugir de tudo e… pela minha própria incompetência acabei nessa situação?
A primeira hipótese era sombria. Alguém poderia ter planejado seu assassinato, escolhido um local isolado e silencioso, onde um corpo jamais seria encontrado. Mas, por algum motivo, o plano falhou — e ele sobreviveu.
— Aquele lugar era perfeito pra matar alguém e sumir com o corpo. Ninguém parecia passar por lá.
Mas essa teoria tinha furos. Não havia nenhuma ferida em seu corpo. Nenhum arranhão sequer. Se alguém tivesse tentado matá-lo, deixaria marcas. E ele nem teria forças para levantar, muito menos andar por vários quilômetros.
Já a segunda hipótese era menos trágica — e mais convincente. Talvez estivesse enfrentando algo grave. Um colapso. Um trauma. Assim, decidiu fugir e se isolar. E, no processo… perdeu as memórias.
Essa ideia explicava tanto o local que acordou quanto o apagão mental. Evelyn já havia descartado causas físicas. Ele era jovem, saudável, sem marcas no corpo, sem “formigamentos” ou “luz brilhante” — o que quer que isso significasse. Então o que restava? Trauma psicológico?
— É… talvez um choque muito grande, algo que o cérebro tentou esquecer à força.
A hipótese parecia sólida. Ele ainda lembrava do que era trauma, e até dos efeitos mentais disso.
— É uma teoria válida — ele concluiu — Se for esse o caso, então deve haver gatilhos que podem destrancar as minhas memórias… mas quais podem ser?
Levou a mão ao queixo, pensativo.
— O estranho é a seletividade do que eu esqueci. Coisas simples, como tipos de animais, comida, geografia e até Alma sumiram da minha cabeça. Mas eu lembro como ler, escrever, raciocinar e até lutar ou atirar. Por que só algumas memórias se foram e outras não?
O padrão disso estava claro: o que envolvia conhecimento prático ou técnico permaneceu; já o que era cultural, emocional ou histórico sumiu. Imaginou que a memória emocional tenha sido apagada de alguma forma. Já o motivo disso ter acontecido não conseguiu pensar em nada. Vazio.
Enquanto estava andando, enfiou a mão nos bolsos do colete e da calça, procurando por pistas. Sua roupa, sob o manto, era escura, com muitos bolsos e proteções em placas em várias áreas do corpo — peito, costas, coxas e canelas. Tudo indicava que ele estava preparado para combate — ou sobrevivência prolongada pelo menos.
Nos bolsos da calça, encontrou uma bússola, um relógio de bolso e uma lanterna de mão. Já no colete, um apito, uma corda e um canivete multifunção.
— Pelo tipo de equipamento, parece que eu era um explorador, um soldado, ou talvez um aventureiro mesmo…
Nada que encontrou ali indicava sua identidade. Não havia documentos, cartões ou pistas pessoais. Mas ainda assim, era um começo.
Um silêncio constante tomou conta da trilha. Havia apenas os passos de Niko pisando na neve sob os pés — e, às vezes, o som metálico das facas balançando dentro do manto.
— …Será que alguém está me procurando? — murmurou, olhando para o céu alaranjado. — Será que eu sou importante pra alguém? Ou só… mais um ninguém? Será que eu realmente tenho família ou amigos? Eu não sei…
O silêncio, dessa vez, não o acalmava como antes. Parecia apenas ecoar a pergunta.
— Inclusive… a Evelyn é muito fria e insensível. — disse de repente, franzindo a testa. — Mesmo tendo me mostrado o desenho do lufador, me dar uma arma e explicar os cuidados que eu devia, ainda assim… mandar alguém sem memória ou experiência prática pra caçar uma criatura assassina é muita crueldade! Eu sei que eu estou em dívida com ela, mas não tinha uma tarefa mais simples pra eu fazer?!
O desenho que ela mostrou ao garoto era impressionantemente detalhado: uma criatura de até quatro metros, com pelagem branca espessa, cauda achatada e oval, oito patas curtas, garras longas, olhos quase inexistentes e uma mandíbula que podia se dobrar e rachar em três partes.
Niko suspirou fundo.
— Será que ela só me ajudou pra se aproveitar depois?
Ele não queria acreditar nisso. Evelyn não parecia ser esse tipo de pessoa. Não demonstrava segundas intenções — ao menos não até agora. Mas ele também mal a conhecia. Tinha passado nem um dia ao lado dela. Essa confiança era, no fundo, cega — nascida da necessidade, da solidão, da urgência em se apegar a algo. Era algo tolo.
— Não… Ela foi sincera. Queria me ajudar. E não parece ser uma oportunista… eu acho. De qualquer forma, o importante agora era terminar a tarefa.
Niko firmou as mãos no rifle com força. O frio não incomodava tanto quanto antes. Agora havia outro tipo de peso sobre seus ombros — o da dúvida.
— Preciso encontrar esse bicho logo… e depois eu converso com ela.
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