Capítulo 11 - Para a Capital II
— Quem é o rei atual, Evelyn?
— O rei é Ludwig Von Aldrich Yzakel. Vigésimo nono rei da linhagem Yzakel, que governa Kyndral desde o ano 2500, se não me falha a memória. Ele é um bom rei. A economia cresceu bastante desde que assumiu. A pobreza caiu, mesmo com… algumas complicações nos últimos anos.
Ela disse a última frase com um tom diferente. Menos casual e mais atento. O tipo de mudança sutil que Niko percebeu de imediato — e que o deixou desconfortável. Não era o momento de perguntar sobre essas tais complicações. Mesmo curioso, ele deixou a conversa seguir por outro caminho.
— Obrigado.
— Hm? Pelo quê?
— Por ter me salvado do lufador. Você podia ter morrido… e mesmo assim me salvou. Então… obrigado.
Evelyn olhou pra frente por alguns segundos antes de responder. O vento gelado da estrada fazia alguns fios de cabelo dela balançarem no rosto, mas ela não se incomodou. Apenas emitiu um pequeno “ha” antes de responder.
— Na verdade, eu quase morri, não. Sabe aquelas estacas de gelo que eu usei? Eu já tava pronta pra perfurar a garganta dele antes que ele me atacasse. Mas aí você apareceu do nada e… estragou meu plano. — falou com o velho tom debochado, com um sorriso provocador nos lábios.
A fala atingiu Niko com um desconforto genuíno. Ele olhou para o outro lado, envergonhado, e puxou o capuz do manto sobre a cabeça, ajustando as aberturas dos chifres com botões. Se sentia um peso morto. Um intrometido. Alguém que atrapalhou mais do que ajudou — e que ainda penvasa que tinha feito algo de útil. Patético.
Mas antes que a sensação afundasse de vez no próprio manto, sentiu a mão de Evelyn em seu ombro. Era um toque leve, mas inesperadamente reconfortante.
— E foi incrível o que você fez. Sinceramente, eu achei que você ia sair correndo. Mas você ficou. Você lutou. E me provou que eu tava errada sobre você. Me surpreendeu. De verdade. — disse, mais baixa, com um tom sincero raro nela.
Niko abaixou o capuz devagar. Um sorriso tímido se formou no canto da boca. Pela primeira vez, sentiu que tinha feito algo certo. Que não era só um desconhecido perdido em uma estrada nevada.
Após alguns segundos, voltou à pergunta que o incomodava desde mais cedo.
— Evelyn… por que você me deixou caçar o lufador sozinho? Você podia muito bem ter me pedido ajuda desde o começo! E nem tenta vir com aquela desculpa de “só queria ver se você caçava bem”, porque eu sei que não é verdade.
— Nossa, calma… — disse ela, com um sorriso desengonçado. — mas olha… eu não menti. Eu queria ver se você aguentava o tranco. O lufador foi seu teste de entrada.
— Entrada… pra quê?
— Pro meu grupo de mercenários, ora. E se você não gostar da ideia, bem… azar o seu. Você não tem nenhum teto pra morar, nem comida garantida. E eu sou a única pessoa que tá te ajudando com isso tudo. — disse com um sorrisinho bem satisfeito.
— Você… tem um grupo?
— Tenho.
— Por que eles não vieram com você?
— É porque você é o único integrante dele, claro. Sem contar com a Aguro.
Niko suspirou. Agora ele era oficialmente parte do “grupo de mercenários” de Evelyn — ainda que esse grupo fosse mais para uma dupla e uma égua fantasma. Ele não se sentia exatamente contra… só não era o tipo de vida que tinha imaginado. Se pudesse escolher, preferiria trabalhar em uma loja, vender coisas, viver tranquilo. Mas talvez isso estivesse fora de alcance agora.
— Você é bem apegada àquela égua, né?
— É. Ela é praticamente de família. Conheço desde que eu era pequena.
Evelyn olhou para o céu quando disse isso. Mas diferente das outras vezes, havia algo diferente no jeito que ela sorriu. Era calmo, um pouco distante, mas sincero. O tipo de sorriso que carrega memórias demais pra caber em poucas palavras.
— Ela já era um espírito quando você a conheceu?
— Não. É uma história longa. Mas acho que você deveria saber. Faz parte da história do mundo, afinal…
Ela suspirou fundo e fechou os olhos, pela primeira vez naquela viagem, ficou totalmente quieta, pensando bem no que iria falar. Após poucos segundos, seus olhos abriram, revelando seu olhar afiado.
— Quando eu era criança, morava no norte do país em Colvenfurt. Uma cidade grande. Vivia com meu pai e minha mãe. Meu pai era professor e minha mãe médica. Eu era uma menina normal. Um pouco mimada até. Uma vida normal, não tinha problemas ou preocupações… até aquele dia, até aquele maldito dia.
A última frase veio cheia de raiva. O sorriso sumiu. A leveza que acompanhava se desfez por completo. Sua voz ficou mais baixa, mais pesada. Mas antes que Niko pudesse dizer algo, ela desviou o olhar.
— Esquece. Depois eu te dou um livro. Vai entender melhor.
Niko quis perguntar mais. Mas havia algo nos olhos dela… um peso que não combinava com a Evelyn que ele conhecia. Era como se um pedaço dela tivesse sido arrancado naquele tal “maldito dia”. E ele sabia que não seria certo forçar mais do que isso.
— Que assunto é esse?
— …A Guerra Incompleta…
O silêncio se instaurou durante um momento. Niko entendeu. Ou ao menos entendeu o suficiente. Traumas. Perdas. Memórias que doem demais para virarem palavras.
— Sinto muito por tudo que você passou. — disse ele, colocando a mão sobre o ombro dela.
Ela não respondeu de imediato. Apenas assentiu com a cabeça e fechou os olhos por um instante, deixando o frio da noite levar embora o que ainda restava daquela lembrança.
— Obrigada, Niko.
O resto da viagem foi silencioso — mas não o mesmo tipo de silêncio de antes. Agora era um silêncio mais leve, como se ambos estivessem finalmente à vontade um com o outro. Um silêncio confortável.
Evelyn acabou cochilando, sentada, com a cabeça pendendo levemente para o lado. Já Niko se manteve acordado, olhando a estrada escura à frente, onde a luz da lanterna balançava devagar na medida que se aproximavam da capital. E, pela primeira vez, ele não se sentiu perdido.
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