Capítulo 16 - Nova Casa II
Evelyn bocejou e se espreguiçou.
— Certo, então. Eu preciso resolver umas coisinhas. Tem um Áxis aí. — disse ela apontando para a estante. — É tipo um livrinho de história e geografia. Dá uma lida enquanto isso. Acho que vai gostar. E saber esse tipo de coisa é sempre bom, né?
Niko assentiu em silêncio. Ele estava interessado em saber sobre o próprio mundo. Os dois voltaram para a sala, onde Evelyn entregou o tal “livrinho” ao garoto.
O Áxis, porém, de “livrinho” não tinha nada. O volume era médio no formato, mas tão grosso que parecia uma enciclopédia. Tinha, no mínimo, umas seiscentas páginas — talvez mais. Niko o segurou com as duas mãos, sentindo o peso equivalente a oito de suas facas.
Logo na introdução, o texto explicava que o Áxis era um livro produzido a cada quinhentos anos, escrito por uma comissão de historiadores de renome. O objetivo era registrar, de forma clara e organizada, a história, a geografia e a política do mundo atual, registrando os principais acontecimentos. Aquela era a quinta edição. datada do ano 4500 — dois anos e alguns dias à frente do presente.
Niko começou pelo primeiro capítulo. Era uma espécie de panorama geral: uma introdução ao mundo do ano 4500. Destacava mudanças marcantes nas últimas décadas, avanços tecnológicos, alterações na estrutura das sociedades e nos sistemas econômicos. Apesar de tudo ser muito novo pra ele, algo naquela linguagem formal fazia sentido — ou pelo menos despertava sua curiosidade.
O segundo capítulo era sobre geografia. As páginas seguintes mostraram vários e vários mapas do mundo. Assim, descobriu que no mundo haviam três principais continente:
- Solaria, o continente onde estavam — ao leste do mapa.
- Océlia, ao oeste — o maior de todos.
- Khalidiya, ao noroeste, acima de Solaria — uma península quadriculada, composta quase inteiramente por desertos.
Os mapas ilustravam o conteúdo, alguns divididos por política, outros por bioma, rotas comerciais, climas e densidade populacional. Niko passou vários minutos só olhando os desenhos, acompanhando os traços com o dedo. Era muita coisa nova. Muita coisa incrível e interessante.
Enquanto ele lia, Evelyn tomava um banho.
Quando saiu, a garota já vestia uma roupa mais casual: um casaco longo e escuro, calça preta, cachecol cinza enrolado no pescoço e usava a muleta que antes estava ao lado da cama. Sem as luvas de sempre, agora dava para ver algumas cicatrizes antigas em suas mãos e dedos, além das unhas cortadas de maneira delicada.
— Essa roupa ficou boa em você. — comentou Niko, desviando o olhar do livro por um instante. — Mas… por que da muleta?
— Ah. Esqueci de te contar.
Ela se sentou ao lado dele, apoiando a muleta na parede, e então puxou a perna da calça até o joelho. A resposta veio antes mesmo de qualquer explicação.
— Eu não tenho uma parte da minha perna esquerda. — disse ela de maneira casual, como se comentasse sobre o tempo. — Mais especificamente, até a canela. Legal, né?
— Isso… não parece ser muito legal, não. Desculpa perguntar, Evelyn.
— Tem problema não, bobo. Eu não ligo pra isso. Até acho legal, me faz sentir única em meio as outras pessoas.
Houve uma pausa. Niko respirou fundo e arriscou mais uma pergunta:
— Você perdeu na guerra?
Ela não respondeu de imediato. O tom leve de antes sumiu. A expressão dela mudou. Um segundo de silêncio foi suficiente para a resposta.
— …É, foi lá mesmo…
Niko pensou em pedir desculpas de novo, mas a garganta travou. A vergonha o sufocou tão rápido que ele só conseguiu baixar os olhos e voltar a encarar o Áxis, tentando se concentrar de novo nas páginas para esquecer o próprio constrangimento.
Depois de ver e analisar todos os mapas, Niko chegou em uma seção que falava das origens linguísticas.
Segundo o Áxis, as principais famílias de línguas faladas em Solaria surgiram nas margens do mar de Saqiien, o estreito interno que ligava dezenas de reinos às margens Saquiianas e que, por séculos, serviu como eixo comercial e cultural do continente. Com o passar do tempo, dialetos das costas norte e oeste se espalharam para regiões mais afastadas, evoluindo em variantes locais — algumas parecidas, outras irreconhecíveis entre si.
Do outro lado do mesmo mar, em Khalidiya, surgiram línguas com estrutura e sonoridade completamente diferentes. Seus alfabetos não compartilhavam nem mesmo os mesmos princípios fonéticos, e a escrita era feita em colunas verticais em vez de linhas horizontais. O livro apontava que, embora a distância entre os dois lados do Saqiien fosse pequena, a barreira linguística entre Solaria e Khalidiya continuava imensa até hoje.
Mais adiante, o texto comentava brevemente sobre Océlia — o continente oriental — onde as línguas evoluíram em total isolamento do resto do mundo. “Sistemas de escrita pictográfica, estrutura gramatical modular e lógica tonal”, dizia o parágrafo. “A compreensão entre um falante de Océlia e um falante de Solaria é praticamente impossível sem anos de aprendizado.”
Niko leu aquela parte com atenção redobrada. Para alguém que mal sabia sobre o próprio país, aquilo tudo parecia vasto demais — quase impossível de decorar. Mas ele também achava tudo curioso. Saber que o mundo tinha tantos sons, símbolos e jeitos de falar diferentes fazia sua própria ignorância parecer um pouco menor.
Enquanto ele lia, Evelyn pegou o caderno que estava sobre a mesa e começou a rabiscar algo. A casa era silenciosa. Eles moravam longe do centro — sem o barulho das carruagens, das vozes, nem dos sinos das catedrais e relógios. Só o som leve das folhas do livro sendo viradas e da caneta deslizando no papel preenchia o ambiente.
Até que, de repente:
— Ahhh… finalmente acabei. — disse Evelyn, aliviada, largando a caneta e encostando o caderno de volta na mesa.
— O quê?
— Minha agenda. Tive que reorganizar tudo. Objetivos futuros, anotações pessoais… Esse tipo de coisa. — respondeu, levantando-se com certa dificuldade. — Já que você apareceu do nada, tive que mudar bastante coisa. Ah, e por falar nisso… preciso te levar num lugar.
Ela foi até o quarto e voltou um minuto depois, já usando sua prótese. Parou em frente à porta, destrancando-a com rapidez.
— Ah, e traz todo o seu dinheiro. Tudinho. Confia em mim.
Niko piscou. Olhou pro livro, pegou o marcador de páginas da mesa ao lado e o colocou com cuidado onde havia parado — na página 54. Em seguida, se levantou e foi atrás dela.
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