Índice de Capítulo

    O quinto sino da escola finalmente tocou, trazendo um alívio coletivo para os alunos e professores. O som se espalhou pelos corredores como um anúncio de libertação. O professor parou de escrever na lousa e um barulho abafado de vozes, carteiras arrastando e mochilas sendo abertas encheu a sala.

    Alguns alunos, ansiosos, já guardavam os materiais com pressa. Outros ainda revisavam anotações ou terminavam frases rápidas nos cadernos. E, no meio de todos eles, apenas uma criança parecia completamente alheia a tudo: estava largada na cadeira, com a cabeça inclinada pra trás e os olhos fechados como se o mundo inteiro não importasse. Essa era Evelyn.

    — Ahhhh… Odeio aula de física… Ainda bem que acabou. — murmurou, falando mais pro teto do que pra alguém em específico.

    — Nossa, mas você odeia tudo. — disse uma voz baixa e aguda do lado dela.

    Evelyn abriu um olho na direção da voz e viu sua amiga de sempre: Lucy, uma garota baixinha, com orelhas de coelho, cabelos pretos e olhos vermelhos. Ela arrumava os livros na mochila com movimentos rápidos.

    — Não é verdade! — falou a elfa levantando a cabeça. — Eu gosto de geografia, história e artes!

    — E mesmo assim tira só setenta nas provas… — respondeu Lucy, soltando algumas risadinhas provocativas.

    — Maaaas, em compensação… — Evelyn cruzou os braços e fechou os olhos, numa pose teatralmente orgulhosa. — Tirei cem em artes! Cem pontos! Haha!

    — Hmpf… E ainda tem coragem de se gabar disso… — a coelha revirou os olhos, fechando o zíper da mochila. — Vai ficar pras aulas de reforço hoje? — perguntou Lucy, já se levantando.

    — Nah.

    — Mas a gente tem prova semana que vem! Você precisa estudar! Eu não quero que você repita de ano ou fique de recuperação nas férias!

    — Aaahh… — Evelyn jogou a cabeça pra trás novamente, como se o peso do mundo caísse sobre os ombros dela. — Eu aceito estudar… mas só se for no nosso esconderijo.

    — Fechado. Isso significa que quanto mais rápido a gente chegar lá, mais cedo a gente estuda… então, vamos logo!

    Antes que Evelyn pudesse reagir, Lucy agarrou o pulso da amiga e saiu arrastando a garota porta afora. Evelyn lutava pela própria liberdade, mas era inútil.

    — Ei! Espera, Lucy! Vamos fazer uma pausinha pelo menos!

    — Ah, nem vem! Você nem prestou atenção na aula, aquela foi sua “pausinha”. Agora você vai estudar sem nenhuma pausa!

    — Nãããããããão!


    O esconderijo das duas era um canto isolado de uma praça a três quadras da escola. Tinha bancos de madeira velhos, um chão coberto de folhas e, no centro, uma grande árvore de copa em forma de cone, com folhas verdes e densas que faziam uma sombra boa o suficiente pra proteger do sol.

    As duas se sentaram em um dos bancos. Lucy tirou um livro da mochila e o abriu com o entusiasmo de uma professora de reforço particular.

    — A primeira prova é de química, então vamos estudar isso hoje. Certo?

    — Não importa a minha resposta. A gente vai estudar isso do mesmo jeito, né?

    — Acertou! Você não tem escolha.

    Evelyn suspirou alto, olhando para cima, para aquelas folhas verdes que bloqueava o céu azul.

    — Lembra o que vai cair na prova?

    Ela assentiu de leve. Tinha uma noção básica do conteúdo, o suficiente para tirar sessenta pontos ou, com sorte, setenta.

    — Beleza, então vamos com uma pergunta difícil só pra aquecer. — disse a amiga com um sorriso de canto.

    — A gente geralmente começa com a fácil…

    — “Defina ácido, base e sal.” — falou Lucy, com tom professoral.

    — Ácido é… quando dissolve em água, libera íons de hidrogênio… base libera íons de hidroxila… e o sal… ah… esqueci agora.

    — Sal é um composto iônico formado pela reação entre um ácido e uma base.

    Evelyn já tinha desligado toda a sua atenção. As palavras de Lucy naquele ponto viraram apenas ruídos. Seu olhar estava preso no céu. O céu… um lugar tão pacifico e calmo. Não é à toa que o paraíso ficava além dos céus. “Se só de olhar para cima já traz uma paz, imagina morar lá… que inveja.”, pensou a garota.

    No meio daquele azul parcialmente nublado algo chamou sua atenção. Um enorme dirigível.

    Voava lento e pesado, sua estrutura cilíndrica recortando o horizonte ao sudoeste. As marcações na lateral indicavam alguma empresa de transporte — mas Evelyn não se preocupou com os detalhes. Apenas apontou para o objeto.

    — Olha, Lucy… um dirigível.

    A amiga deu uma olhada rápida e logo voltou os olhos para o livro.

    — Não se distraia, Evelyn. A gente precisa estudar!

    Evelyn não ouviu a amiga, continuou olhando para os céus. E foi então que viu. Algo menor caindo do dirigível. Um objeto… um cilindro que parecia ter sido ejetado da aeronave.

    — Espera… o que é aquil-

    De repente o som veio. Um estrondo como ela nunca tinha ouvido antes. Não foi só um barulho, foi um impacto físico. Um tremor no chão. Um soco no peito. A pressão do ar pareceu explodir ao redor. O zumbido no ouvido foi imediato e ensurdecedor.

    Evelyn nem conseguiu gritar de tanto choque. Nem Lucy. Ambas simplesmente jogaram as mãos nos próprios ouvidos e fecharam os olhos com força, encolhendo-se instintivamente no banco.

    Quando a vibração parou, o mundo parecia girar. Evelyn piscou devagar, a visão estava turva, a garganta seca e o coração parecia que iria sair pela boca de tão rápido que batia. Isso era algo que ela nunca experienciou nada vida. Isso era medo.

    — E-Evelyn?! Você tá bem? — a voz de Lucy parecia distante, abafada, como se ela estivesse falando debaixo d’água.

    — E-eu t-tô b-bem. — gaguejou ela, ainda tonta.

    A visão começava a ficar mais nítida. Antes ela sentia que iria desmaiar a qualquer momento, mas agora essa sensação passou. Foi o suficiente para ela ver. Entre as árvores da praça, a elfa notou uma coluna de fumaça negra subindo ao longe, na direção da escola.

    — Veio… veio daquela direção… — apontou ela com a mão tremendo.

    Entre os pensamentos abstratos que vieram pelo susto e o choque, um se destacou. Um pensamento horrível, cruel, do pior tipo possível. Sua escola pode ter sido atingida… Logo seu pai…

    Ela não esperou. Levantou-se em um salto e começou a correr. Lucy gritava atrás, chamando seu nome, mas ela já não ouvia mais. Não precisava ouvir. Isso não era importante. As pernas simplesmente se impulsionaram para frente e ela não podia, e nem queria, mais parar.

    As ruas estavam um caos. Pessoas corriam, algumas gritando, outras caindo. Cavalos em disparada, crianças chorando… adultos com os olhos arregalados. Mas Evelyn corria contra a maré, desviando de cada civil que corria para longe da explosão.

    “Por favor… não… por favor… não…”, Evelyn repetia isso em sua mente, implorando que esse pensamento estivesse errado. Tinha que estar.

    Outro estrondo veio. Mais distante. Mais abafado. Mesmo assim ela não parou. Os pés batiam no chão com força, as lágrimas já escorriam antes mesmo dela perceber. Os pulmões queimavam com o esforço, mas ela só acelerava. Ela não se importava mais para si. Nunca iria se perdoar se pensasse em si naquele momento. Seria além de egoismo.

    Mais perto. Ela chegava cada vez mais perto. Os gritos foram sumindo conforme ela entrava na zona de destruição. A fumaça, agora era tão espessa que cobria parte da visão. O ar era carregado de pó, tanto que ardia nos olhos e na garganta. Tossindo, ela ergueu o braço pra cobrir o rosto e continuou.

    E quando finalmente chegou, o que viu congelou seu corpo inteiro. Onde antes existia um prédio, agora só havia escombros. Concreto quebrado. Madeira estilhaçada. E ferro retorcido. O portão desapareceu. As torres desabaram. E o jardim estava soterrado.

    Evelyn caiu de joelhos.

    — N-não… não, não, não, não, NÃO! — gritou ela.

    O mundo girava, mas ela não conseguia parar de olhar. A mente repetia a mesma imagem, o mesmo pensamento: o rosto do pai.

    Mesmo sem forças, ela se levantou e correu até os destroços, parando em cima do monte. Ficou empurrando pedras, pedaços de parede, portas quebradas com as próprias mãos. As unhas arranhando no concreto e os dedos sangrando ao tocar nos pedaços de vidro.

    Ela cavava. Gritava. Chamava por ele. 

    — Você tem que estar por aqui!

    — Por favor, eu não quero que você vá!

    — Eu não aceito que você foi embora…

    — Pai… pai… por favor… me responde… — ela soluçava, com a garganta rasgando depois de todos aqueles gritos.

    Minutos se passaram. Ou horas. Ela já não sabia. Seu corpo, cansado e tremendo por fim desistiu. Desabou de vez, agachada sobre os destroços. Soluçando com o rosto enterrado na poeira. O que restou dela naquele momento foi só o som do próprio choro misturado ao som distante das explosões que ainda aconteciam.

    Evelyn fechou os olhos, tentando acordar daquele pesadelo, mas era impossível. Aquela era a vida real. Seu pai morreu.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota