Capítulo 33 - O Campo II
Os cavalos dispararam. Evelyn correu para frente e a divisão seguinte fez o mesmo. Todos marchando contra um inimigo que nem podiam ver direito, mas sabiam que precisavam vencer.
— Formação Schneigkail! Não se esqueçam, soldados! — gritou alguém.
A formação consistia em correr no formato de um “V” invertido. Um tipo de aríete humano. Uma ponta de lança feita pra romper as defesas inimigas e dividir os adversários em dois pontos, consequentemente, fazendo dois cercos. Evelyn e seu novo esquadrão faziam parte da divisão dois, o flanco direito da “seta” e, como o inimigo estava à esquerda, demorariam para entrarem no fogo cruzado.
Fumaça preta começou a surgir no horizonte. Os estrondos começavam a ficar cada vez mais próximos. Foi quando uma explosão surgiu bem à frente dela. Fogo e a terra se espalharam pelo chão. Um cavalo e um homem tombaram, derrubados pela força do impacto.
MÉDICO! — gritou alguém — provavelmente um soldado do mesmo esquadrão
Na mesma hora, um homem com uma braçadeira de cruz vermelha surgiu, pulando de seu cavalo para socorrer o ferido. Evelyn passou por eles olhando de relance. Fez uma oração silenciosa para que aquilo não acontecesse, nem com ela e nem com alguém de seu novo esquadrão. Ela não suportaria que mais um aliado seu morresse.
Mais adiante, ela viu finalmente a base do inimigo. Lá havia três torres de madeira, dezenas de canhões, algumas metralhadoras e uma muralha cercando tudo. Além disso, em uma das torres tinha um flanco atirador.
Ela deduziu o óbvio: “Deve estar mirando nos oficiais… tentando quebrar nossa moral.”
E então, teve uma ideia ousada.
— Eu vou derrubar esse maldito… — murmurou.
A elfa então puxou sua arma das costas e mirou na direção do atirador. Mas logo percebeu um obstáculo: a altura. Daquela posição, não conseguiria acertar.
— Preciso de mais altura…
Ela se ergueu na cela, buscando um ângulo melhor. Ainda não era o suficiente.
— Tsk…
Então, teve uma ideia ainda mais ousada: ficar de pé na sela do cavalo, em pleno galope, para tentar atirar. Era loucura. Mas era isso ou esperar se aproximar mais e usar sua Alma. Ela não conseguiria esperar nem mais um minuto. Nem mais um segundo. Ela precisava colocar uma bala na testa daquele maldito lieuwirkiano agora.
Primeiro, apoiou o pé esquerdo na cela, tentando manter o equilíbrio. Quando sentiu firmeza, levou o outro pé para a parte traseira do cavalo, onde a lombada da sela era mais estreita.
Nikolas, ao lado dela, viu o movimento e ficou pálido.
— Evelyn, o que você tá fazendo?!
— Tentando matar um atirador. Lá na torre! Tá vendo?
— Você não vai conseguir! Desce daí, é perigoso!
Mas ela não ouviu. Mesmo que fosse o próprio Yzakel surgindo dos céus e berrando pra ela descer, ela não obedeceria. Não enquanto aquele flanco atirador estivesse respirando.
Com um ato de pura teimosia, se levantou de uma vez só. O impulso foi rápido demais. A cela tremeu, e ela se inclinou para trás, quase perdendo o equilíbrio, mas, no último momento, conseguiu se firmar. Respirou. Manteve o foco.
— Evelyn, desce, pelo amor de Deus! — gritou Nikolas, com a voz tomada de pânico.
— Cabo Bauer, desça imediatamente! — ordenou o tenente Andrei, alarmado com a cena.
Ela o ignorou. Sabia que ia ser punida depois, e não se importava. Colocou o olho na mira. Alvo travado. Disparou. Mas errou.
— Senhora Evelyn Bauer, isso é uma ordem! DESÇA!
Ela ignorou de novo. A barba ruiva do tenente mal era visível de onde estava. Só enxergava o alvo. Só conseguia e podia enxergar ele.
“Um pouco mais pra baixo… e só um pouco mais pra esquerda…”
Segurou a respiração e disparou outra vez. Na mira, viu a arma do atirador cair e, logo depois, a parte superior do corpo dele desaparecer. Ela acertou.
Ficou em choque por um instante. Depois, veio a onda de orgulho. Todo mundo tinha duvidado dela. Todos achavam que ela ia cair. Que ia errar. Mas ela acertou. Ela derrubou o maldito. Provou que todos estavam errados.
— Eu consegui… Gente, eu consegui-!
Algo estava errado.
Evelyn agora estava deitada, de bruços, em algum ponto do campo. Havia fumaça no ar, um gosto amargo na garganta e um zumbido agudo que vinha de todas as direções. Sua visão estava turva, mal permitia distinguir formas, mas sombras e vultos passavam correndo, como cavalos passando a centímetros de seu corpo.
Ela tentou respirar, mas parecia ser uma tarefa impossível. A cabeça doía. Não conseguia lembrar como havia parado ali. Tinha certeza de que estava em cima do cavalo. Tinha certeza de que havia atirado no sniper. Tinha certeza de que…
“Isso aconteceu mesmo? Por que eu tô no chão?”
Apoiou as mãos no chão e começou a se erguer, devagar. Estava atordoada, mas ainda viva. Primeiro ficou de joelhos. Depois, tentou colocar o pé direito no chão. Conseguiu. Tentou fazer o mesmo com o esquerdo. Nada. O corpo tombou pra frente. Ela caiu.
— O quê…? — murmurou. — Por que eu não… consigo… ficar de pé… minha… perna…?…!
Virou a cabeça para trás com dificuldade. E então viu o que desejou não ter visto. O coração acelerou. A espinha gelou. E ela começou a suar frio.
Onde antes estava sua canela esquerda, agora não havia nada. Uma mutilação brutal. Uma poça de sangue escorrendo sem parar. O osso fragmentado e a carne dilacerada estavam lá, à mostra, como se tivesse sido arrancada à força — o que de fato aconteceu.
Ela ficou imóvel por um instante. Como se a realidade tivesse travado. A mente tentou racionalizar o maximo que conseguia.
“Não é m-minha perna. N-não pode ser. Isso é outra pessoa. Só pode ser. Isso não é-”
Mas era. O choque virou pânico. E a dor chegou como uma explosão dentro da cabeça. Um grito escapou — ou foi um rosnado? Um gemido sufocado? Nem ela soube dizer. Ela se contorcia, agarrando o chão, com os olhos arregalados, o peito tentando puxar o máximo possível de ar. Era uma dor aguda. Uma dor insuportável. Uma dor penetrante. Constante. Dilacerante. Sufocante. Sufocada, sim, sufocada. Ela não conseguia respirar. Enjoada, ela estava enjoada. Ânsia. Ela vomitou.
Ela não conseguia acreditar naquilo. Não conseguia pensar direito. Não conseguia agir.
“Minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna, minha perna…”
Ela somente pensava naquilo. Somente conseguia pensar naquilo e nada mais. Era impossível não pensar naquilo. Ela podia não pensar naquilo? Deveria pensar em mais alguma coisa? Devia conseguir pensar em mais alguma coisa?
Não, não, não.
Ela tentou se levantar de novo. Caiu de novo. Tentou gritar, mas só saiu um riso curto, nervoso, misturado ao choro. As mãos tremiam. O sangue continuava jorrando. O cérebro disparava a mesma única, singular, ímpar, sozinha pergunta:
“O que eu faço? O que eu faço? O quê? O quê? O quê? O quê? O quê? O quê? O quê? O quê? O quê? O quê? O quê? O quê!? O quê?! O quê!? O quê?! O quê!? O quê?! O quê!? O QUÊ?!?”
A respiração começou a falhar. E a visão embaçava de novo.
“Se eu desmaiar agora, eu morro. Eu morro. Eu morro. Eu morro. Eu morro. Eu morro.”
Com esforço, se sentou. Levou uma das mãos até o que restava da perna e ativou sua Alma, congelando a ferida ainda aberta. Veio uma dor extrema. Com força, ela segurou a voz, apenas dando uns grunhidos de dor. Sentiu que iria desmaiar. O esforço foi mais do que ela aguentava. Logo, o sangramento parou. A dor, diminuiu. Não parou por completo, mas ficou suportável.
Respirou fundo, ofegante. A mandíbula ainda estava trêmula. Estava encharcada de suor. Largou o corpo no chão. Olhou para o céu azul. Imóvel.
Após segundos na mesma posição, os barulhos que emitia começaram a ficar mais baixos. As explosões e os gritos ficaram mais altos. E começou a ver de novo os cavalos em volta.
A guerra voltou a ser seu foco.
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