Capítulo 35 - Silêncio
Evelyn estava deitada sobre um pano grosso estendido no chão, na grama. Ao seu redor, outras figuras — deitadas ou sentadas sobre panos iguais — gemiam de dor, sussurravam coisas inaudíveis ou apenas permaneciam em silêncio. Todos feridos. Todos sendo tratados por médicos correndo de um lado a outro, trocando gazes e carregando baldes de água misturada com sangue e sujeira.
Ela, porém, só olhava para cima. Olhava para o céu noturno. Um céu limpo, pontilhado de estrelas. Mas ela não via beleza ali. Era como encarar um teto pintado com luzes vazias. Evelyn não falava. Não ouvia. Não queria ouvir. Apenas existia. Contra a própria vontade.
“Por que não eu?”, ela se perguntou novamente — a mesma pergunta feita horas antes, que ainda ecoava sem resposta.
Quando o tédio tomou conta até mesmo aquele céu entediante, seus olhos se moveram, ainda vazios, como se procurassem algo.
“Ela não está aqui…”
Com esforço, ergueu o tronco e ficou sentada. A coluna estava levemente torta e a cabeça baixa. Não se importava com a postura. Não se importava com o desconforto. Não se importava com nada. Absolutamente nada
Ao lado dela, uma muleta estava largada no chão — deixada por um médico anteriormente. Ela a pegou. Com dificuldade, segurando o suporte, se levantou. Estar de pé sem as duas pernas era estranho. Era frustrante. Aquela era a primeira vez que ela andaria de muleta. Olhando para o chão, ela percebeu: a partir de agora, a muleta a acompanharia pelo resto da vida.
Encaixou o objeto em seu braço e começou a andar.
O passo era estranho. Ainda demoraria muito até se acostumar com ele. Pé direito. Suporte. Pé direito. Suporte. Enquanto caminhava, estava olhando para baixo. Queria ter certeza de que não iria cair.
Até que, depois de dez passos, decidiu encarar o mundo à frente. Viu soldados. O que chamava de companheiros. Eles estavam andando. Estavam sentados. Estavam lendo, conversando, rindo e chorando. Tinham cabelos ruivos, negros, loiros. Pele branca, negra, verde, azul, cheia de pelos. Caras fechadas, bigodes, cicatrizes, choros, abraços.
Cada uma dessas informações Evelyn via. Cada uma dessas coisas era penetrada nos olhos vazios de Evelyn. Tentava buscar sentido. Tentava buscar significado. Por que o mundo ainda seguia? Por que o mundo dela parou? Por que eles continuavam? Por que ela continuava?
E então, viu. Dentro de uma grande barraca mal iluminada, sentada em um banco de madeira, comendo como se fosse só mais uma noite comum, lá estava ela. A resposta. O motivo de sua raiva. O motivo pelo qual se levantou mesmo ferida. O motivo pelo qual estava sozinha.
Evelyn virou e caminhou em direção à barraca. Dentro, alguns poucos soldados comiam em silêncio. Aquilo estava de costas para ela, curvada sobre o prato de comida. Não parecia ter notado a aproximação da pessoa cujo destruiu a vida.
— Por que deixou o Nikolas morrer?
Seu talher parou no meio do caminho, entre o prato e a boca. Ficou suspenso no ar por um segundo. O monstro não respondeu. Nem olhou. Apenas se virou na direção contraria de Evelyn e voltou a comer, como se ela nem existisse.
— Eu tô falando com você.
Silêncio. O monstro não reagiu. Somente continuou comendo.
Evelyn sentiu o sangue esquentar. Aquela atitude acendeu algo dentro dela. Um sentimento furioso. Não era só raiva. Era traição. Abandono. Desprezo. Ódio. Um sentimento que ela não podia ignorar.
Sem nem pensar duas vezes, agarrou os cabelos da mulher e empurrou sua cabeça contra a mesa com força. Logo em seguida, a puxou de volta e a jogou no chão. A própria muleta caiu. Evelyn quase caiu junto, mas não se importou.
Aquilo tentou se levantar, mas foi em vão. Evelyn montou sobre ela. Canalizou sua Alma na mão direita. Uma camada de gelo cobriu o punho como uma armadura. Em seguida, a socou com força. Muita força. Tanta que o azul do gelo se misturou com o vermelho do sangue.
— O NIKOLAS MORREU POR SUA CULPA! VOCÊ PODIA TER SALVADO ELE! POR QUE NÃO FEZ NADA?!
Ela não respondeu. Outro soco. Mais sangue. A mulher não reagia. Não lutava. Só aceitava os socos, de novo, de novo e de novo.
Evelyn, dominada por um ódio surdo, criou uma estaca de gelo e a segurou firme. Decidiu ali mesmo acabar com a vida maldita daquele ser. Ela decidiu atingir o monstro na garganta. O gelo estava prestes a perfurá-la…
— ARGH! ME SOLTA!
Mas antes que isso pudesse acontecer, braços fortes agarraram a elfa por trás, puxando-a com violência, separando a briga.
— Se acalma, garota! — gritou ele.
Ela se debatia furiosamente. Queria escapar. Queria acabar com tudo. Considerou até, por um segundo, perfurar o homem com estacas também — mas não conseguiria suportar ver outro sangue que não fosse o dela ou da assassina.
Outros dois soldados se aproximaram da médica caída, ajudando-a a se levantar.
— Você tá bem? O que deu nela?
— Sabia que ia dar confusão uma hora ou outra…
— Por que essa garota foi aceita aqui pra começo de conversa?
Clementine saiu da barraca, em silêncio. Sem falar nada. Sem olhar para trás. Evelyn não sabia — e começava a não se importar — para onde ela foi.
A briga acabou. A adrenalina passou. O ódio se dissolveu como uma fumaça fria. O soldado a soltou, e Evelyn caiu de joelhos, com as mãos apoiadas no chão, encarando o nada. Não havia vitória. Nem satisfação. Só um silêncio denso, pesado, cheio de olhos ao redor. Dentro e fora da barraca, dezenas de soldados a observavam.
Ela, agora, era a agressora. Mas aquilo… não era justo. Não é justo. Ela queria gritar, apontar. Dizer que aquela mulher havia abandonado Nikolas. Que o deixou pra morrer. Que foi por culpa dela. Que o monstro não era ela — mas a outra. Mas ninguém a escutaria.
Evelyn sentiu vontade de chorar. Os olhos encheram-se de água, mas ela não permitiu que as lágrimas caíssem. Só mordeu o lábio inferior, tão forte que o sangue escorreu para dentro da boca. Sentiu um gosto de ferro.
— Cabo Bauer… — disse uma voz masculina, grave. — Me acompanhe, por favor.
Evelyn ergueu os olhos. Um homem de meia-idade estava na entrada da barraca. Quepe militar, distintivo, diversas medalhas no peito e postura rígida, altiva. Era o coronel… Ela não lembrava o nome. Apenas o reconheceu como o oficial que discursara no dia anterior, antes da invasão a Lieuwirk.
Ela sabia que seria punida. Que poderia ser presa. Que talvez fosse julgada por tentativa de homicídio. Ela não se importava. Apenas secou os olhos com a manga e estendeu a mão para pegar a muleta, mas estava longe demais.
— Aqui. — disse um soldado, estendendo o suporte a ela.
Ela pegou o objeto com frieza, sem nem agradecer. Se levantou sozinha, sem nem olhar para o homem que ajudou. Sem olhar para os julgadores. Sem olhar para nada. Apenas seguiu o oficial para fora da barraca.
Após uma breve caminhada, o coronel e a elfa chegaram a outra barraca, menor e mais reservada. No centro, havia apenas uma mesa de madeira retrátil e dois bancos, um de frente para o outro. O homem se sentou primeiro, em um banco de metal. Evelyn o imitou, deixando a muleta cair ao lado com total indiferença.
Sobre a mesa, havia um cachimbo. O coronel o pegou, encaixou entre os dentes, puxou uma caixa de fósforos do bolso e riscou um palito. Em segundos, o cheiro de tabaco queimado se espalhou pela barraca. Ele balançou os dedos para apagar o fósforo, ajustou a luminária sobre a mesa, deixando o ambiente mais claro, e soltou uma longa nuvem de fumaça antes de finalmente falar.
— Você tem ideia do porquê eu te chamei aqui?
Evelyn piscou, surpresa com o tom calmo. Na sua cabeça, ela esperava gritos. Esperava ser esmagada pela a autoridade. “VOCÊ TEM NOÇÃO DA MERDA QUE FEZ, SOLDADO?!” — era o que imaginava.
— Foi por causa da briga agora há pouco?
— Não. — respondeu ele, direto. — E sobre esse… incidente… não vamos mais falar disso. Você não merece mais dor de cabeça.
Aquilo a pegou ainda mais desprevenida. A deixou confunsa. Não só não era sobre a briga, como ele estava disposto a deixar passar? Nenhuma punição? Nenhu xingamento?
— Então por quê?
— Para eu te dar uma sugestão. — disse ele, ajustando o cachimbo entre os dedos. — Que você se retire da guerra e volte pra casa.
Evelyn nem piscou.
— Eu recuso sua sugestão, senhor.
As palavras saíram de maneira automática. Para qualquer um, aquelas eram palavras simples, mas para ela, aquilo era um insulto. Um tapa na cara. Uma forma velada de dizer: “Você é fraca. Você não serve.” Ela não era fraca. Ela servia sim.
O coronel apenas assentiu, como se já soubesse da resposta.
— Imaginei que diria isso. — ele tragou mais uma vez e soltou a fumaça com lentidão. — A senhora é determinada, isso eu admito. Quando decide fazer algo, vai até o fim. Foi uma das únicas sobreviventes do seu primeiro esquadrão. Viu a morte de perto, mais de uma vez. E mesmo assim, ainda está aqui. Ainda quer mais. Eu respeito isso… mas acho que você está viciada. Viciada em lutar. Em sofrer. Em matar. E que suas decisões… talvez não sejam mais racionais.
Ela o ouviu em silêncio. Talvez houvesse verdade naquilo. Talvez estivesse mesmo viciada. Talvez estivesse vivendo por vingança, por raiva, por inércia. Talvez estivesse se destruindo. Mas naquele ponto ela não se importava mais. Sabia que seu sofrimento passaria ao chegar a Frísland e cortar fora a cabeça de Herbert, o imperador de Lieuwirk.
— Quero que leia essa carta. — disse ele, empurrando um envelope em sua direção.
Evelyn pegou o papel, confusa.
“Uma carta…? O que isso tem a ver com sair da guerra?”
Não fazia sentido. Imaginou que fosse uma ordem formal. Um pedido de transferência. Ou alguma burocracia inútil do tipo.
Na frente da carta, estava seu nome. Sua unidade. Setor operacional. Código postal militar. E no verso, um carimbo de segurança, um lacre de cera preta e um remetente que a fez levantar uma sobrancelha.
Hospital G. Stigler. O mesmo onde sua mãe trabalhava. Ainda confusa, quebrou o lacre de cera preto e desdobrou o papel.
Senhorita Evelyn,
sentimos muito ao informar sua perda através desta carta. Hoje (31/04), às 7:00 da manhã, foi decretada a morte de Emilia Bauer Gélis, causada por uma forte tuberculose.
Sentimos muito por sua perda…
Após ler a carta inteira, palavra por palavra, Evelyn permaneceu imóvel por um momento. As mãos começaram a tremer. Gotas escorreram de seus olhos e caíram sobre o papel, manchando a tinta, desfazendo trechos da caligrafia. Ela então apertou a carta contra o peito, como se quisesse protegê-la de tudo — ou talvez se esconder dentro dela. Baixou o rosto. Chorando baixinho, sem fazer escândalo, frágil.
— Sinto muito pela sua perda. — disse o coronel, com uma voz mais baixa, agora carregada de respeito.
Evelyn abriu a boca, mas a voz mal saiu.
— E-eu… eu quero v-voltar pra casa… — murmurou ela entre os sussurros.
O homem assentiu. Lento e firme.
— …Fez a escolha certa, garota.
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