Capítulo 43 - Memórias Reconfortantes
“Centro Militar Administrativo de Colvenfurt”. Aquelas palavras estavam cravadas sobre uma porta de madeira adornada por um arco de pedra, na fachada de um edifício de tijolos vermelhos e cinzas. A construção possuía três andares, janelas verticais espaçadas de maneira simétrica e uma chaminé retangular no canto direito do telhado.
— É ali, Evelyn. — indicou Niko, olhando para o edifício do outro lado da rua.
Evelyn permaneceu de cabeça baixa. Demorou alguns segundos até erguer os olhos em direção ao edifício que tanto evitou. Quando o reconheceu, engoliu em seco. Prendeu a respiração por alguns segundos. E manteve-se imóvel, sem mover um músculo.
— Vamos? — sugeriu o garoto, com voz suave.
Sem resposta. Os olhos da elfa estavam baixos, fixos na direção oposta do objetivo. Ela ainda estava evitando o local.
Niko a observou em silêncio, se perguntando o que devia fazer. “Vou esperá-la perto da entrada“, decidiu. Deu um passo, mas foi interrompido por uma mão pequena e gelada o segurando pelo braço.
— E-espera um pouco… por favor. — murmurou ela, ainda olhando para baixo.
O garoto assentiu e permaneceu ao seu lado. Quase quinze segundos depois, a rigidez do corpo parou e ela inspirou profundamente. Ergueu o rosto novamente e abriu os olhos. O olhar estava mais firme, com uma determinação silenciosa, mas presente.
Evelyn deu o primeiro passo em direção ao prédio. Após dois passos, Niko a seguiu. Atravessaram pelo meio da rua e entraram pela porta aberta.
No interior, à esquerda, havia um grande balcão de carvalho. Atrás dele, um jovem de cabelos curtos e uniforme escuro lia algo — um livro ou um folheto. Do lado direito, bancos de madeira estavam alinhados frente a um antigo relógio de pêndulo.
O piso era de madeira escura, as paredes de cor creme, e as luminárias rústicas se pendiam do teto, iluminando o espaço com uma luz amarelada. Havia três portas ao fundo: uma atrás do balcão e uma dupla à frente.
Ao notar os visitantes, o recepcionista colocou o que estava lendo na mesa e se endireitou.
— Bom dia. Como posso ajudar?
— Eh, bom dia. Sou veterana da guerra. Gostaria de ver documentos, fotos, bilhetes, registros de alistamento, qualquer recordação da guerra. Vocês guardam esse tipo de coisa?
— Tem sim. Qual a identificação?
O homem observava claramente a mulher com certa desconfiança. Embora Evelyn fosse uma elfa — e, portanto, sua aparência juvenil não revelasse a idade real —, ainda assim ela parecia jovem demais para alguém que lutou em uma guerra há uma década.
— Cabo Evelyn Bauer Gélis. Do esquadrão 37 da cavalaria imperial.
O soldado abriu uma gaveta ao lado, puxou um fichário robusto e folheou até a seção cinco. Abriu mais três páginas antes de começar a ler. Passou o dedo pela primeira página inteira e metade da segunda. Quando o dedo parou, o homem arregalou levemente os olhos.
— Um momento, cabo. Já volto com o material. — disse o rapaz, se levantando. — Ah, sou o soldado Filip Hájek. Obrigado por ter defendido nosso país. Devo minha vida à senhora. — disse ele, agora prestando continência com respeito.
— Não precisa disso tudo, homem. Relaxa. — respondeu Evelyn, estendendo as mãos, envergonhada e com um sorriso contido.
Filip sumiu pela porta atrás do balcão. Percebendo que ele demoraria para voltar, Evelyn se virou e se sentou em um dos bancos. Com isso, Niko se sentou ao seu lado.
Olhando para frente, viu o relógio de pêndulo e logo ficou hipnotizado por ele. O balançar daquele círculo suspenso, junto daquele som repetitivo de “tic-tac”, era o suficiente para tirar completamente a atenção de Niko, que seguiu o pêndulo com os olhos por minutos. Quando finalmente percebeu o que estava fazendo, parou imediatamente de olhar para o objeto amaldiçoado.
Ao seu lado, Evellyn balançava as pernas freneticamente. Estava com os braços apoiados nas coxas, com dedos entrelaçados e os polegares se esfregando nervosamente. Estava olhando para baixo com uma expressão confusa. Estava pensativa. De olhos baixos. Parecia concentrada e muito nervosa.
— Parece ansiosa.
Ela parou de balançar as pernas, colocou sua mão sobre o cotovelo e assentiu devagar.
— É… um pouco. É que… faz tanto tempo que eu queria fazer isso e nunca tive coragem… Mas agora que você tá aqui, tem um motivo a mais para rever essas lembranças. Obrigada pelo empurrão, Niko. — sorrindo em direção a seu amigo.
O ranger de uma porta se abrindo interrompeu o momento. Filip retornou, agora com uma ficha grossa em mãos.
— Está aqui o que você queria, cabo. Reuni todo o conteúdo que menciona seu nome no armazém. Está tudo nesta pasta. — disse, entregando-a com respeito.
Evelyn pegou o documento do soldado, abrindo-o lá mesmo. Enquanto observava os papéis que faziam ela voltar no tempo, se dirigiu até o banco mais próximo, se sentando com um papel na mão, sem tirar os olhos do material em nenhum momento.
— Minha ficha de alistamento… Nossa, eu era muito idiota nessa época.
Em seguida, entregou o pedaço de papel a Niko, que ainda estava de pé ao seu lado. Niko leu o documento. Lá estava o nome completo de Evelyn, nome dos pais, data e local de nascimento, RI… Havia tudo ali, todas aquelas informações compartilhadas com ele.
O documento tinha um carimbo verde e havia algo escrito ao lado.
“Alistamento: 11 de suven de 4492”
Aquela informação fez ele parar por um instante. Fez uma conta mental. Seu aniversário era dia “23 de vosur de 4477”. Isso significava que Evelyn tinha apenas quatorze anos naquele dia. Quatorze. Uma criança. A idade em que a maioria das pessoas ainda aprendia a sobreviver no mundo, ela se alistou para matar ou morrer em um campo de batalha.
Ele ficou em silêncio, sentindo um nó no estômago. Aquilo não era apenas surpreendente. Era perturbador. Era errado. Quem permite que uma criança entre no exército? Em que tipo de mundo isso era permitido?
— Eu lembro desse dia. O Kristoff queria tirar uma foto do treinamento. Disse que queria mostrar aos netos um dia. — comentou, entregando-a para Niko em seguida.
Era uma fotografia de sete soldados posando seriamente, com seus rifles apontados para cima e um dos braços para trás.
Todos com estruturas físicas parecidas, com exceção de apenas dois, um que era mais alto que os de mais e outro que — além de ser mais baixo — não parecia ser um garoto. Seu cabelo era comprido e grisalho, além de não ter nenhum pelo facial. Aquela era Evelyn.
— Minha Medalha da Asa Negra. Pensei que nunca ia ver ela de novo. — a garota colocou em seu peito um broche circular, com um corvo central e uma fita vertical preta e amarela. — Como eu fiquei?
O garoto tirou seus olhos da fotografia, os colocando em Evelyn, que estava ajeitando o broche em sua roupa.
— Ficou legal?
— É uma medalha bem bonita. Como você…
Por um instante, viu o rosto da amiga. Estava com um sorriso que carregava dor. Seus olhos estavam cheios de água. Sua mandíbula não parava de tremer. Parecia que ela iria desabar e chorar a qualquer momento. Ela claramente não aguentava mais. Apenas queria soltar todo o peso que carregava em seus ombros.
— Eu ganhei essa medalha quan- — a elfa foi impedida de falar, sentido um calor em seu peito.
Niko a envolveu em um abraço firme, sem dizer uma palavra. Ele não compreendia por completo a dor que ela carregava — mas não precisava. Era nítido sua fragilidade. Naquele momento, sabia que ela precisava de ajuda e um abraço era tudo o que poderia oferecer.
Evelyn colapsou nos braços dele. As mãos agarraram suas costas com força. Os dedos se enterraram no tecido como se ela temesse que, se o soltasse, voltaria a ficar solitária. Sua testa encostou-se ao ombro de Niko e, em um sussurro cortado, veio o primeiro soluço.
— E-eu não q-queria ter passado por aquilo… eu n-não queria que o Kristoff morresse… e-eu não q-queria que o Otto morresse… e-eu nã-o queria que o Nikolas m-morresse… Por que isso teve que acontecer? E-eles só queriam uma vida… s-só isso… só queriam viver. Mas agora… nem isso eles conseguiram… isso não é justo… shhh-huuu~ah…
A garota seguiu chorando por minutos no ombro do amigo. Deixando a dor que carregou durante uma década inteira de silêncio ir embora. Naquele abraço, deixou-se ser vulnerável. E, pela primeira vez em muito tempo, pareceu pronta para seguir em frente.
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