Capítulo 50 - Mudança
O sol estava se escondendo atrás das árvores do campo, atrás da igreja do vilarejo de Alzen Vich, local onde as crianças brincavam regularmente. Eram oito ao todo. O chão estava marcado por pegadas e por trilhas feitas a chute e arrasto no barro seco. Ali, no campo onde o padre proibia as crianças de jogar pedrinhas contra os corvos, elas corriam como se fugissem de um predador.
— Três voltas, depois a besta sai! — gritou Étienne, com os olhos faiscando de emoção.
Brigitte estava girando no centro do círculo que as outras crianças formavam com os braços dados. Uma venda improvisada estava sobre seus olhos, feita com o lenço de cabelo da irmã mais velha de Clarisse. Todos estavam cantando a seguinte música:
Lobo cour, cour dins l’erba,
te’n vas pas que l’ombra creba.
Cour, cour, dins lo rond,toca un, e l’spirun es ton!
Ao final da terceira volta, a venda foi arrancada de seus olhos. Brigitte parou no meio do círculo. O jogo tinha começado. Ela era a “besta”. Os outros se espalharam pelo campo com gritos e gargalhadas. Ela devia tocar um deles e, com isso, passaria o “espírito da besta” adiante.
— Alix! Eu vou te pegar! — berrou ela, fingindo escolher um alvo, só para enganar as crianças, mas era Clarisse que Brigitte queria.
Em seguida, correu atrás do garoto de olhos verdes, passando entre todas as crianças que observavam com atenção o embate dos dois. Quando o garoto correu para a direita, lá estava o alvo original da garota, Clarisse. Sem nem esperar, mudou de alvo e começou a seguir a garota.
A menina de tranças vermelhas correu entre duas pedras empilhadas e passou rente ao tronco torto de uma amoreira. Brigitte foi atrás com as pernas ardendo, chutando poeira. O som das risadas ecoava entre os pinheiros, até que ela se jogou para a frente e agarrou o pulso de Clarisse com força.
Quando tocou no braço da amiga. Num instante que parecia durar mais do que devia, Brigitte sentiu um tremor leve atravessar seu corpo. Uma vibração fina, porém, que não era suave, era inquieta, quase que eletrizante.
— Ai! — gritou Clarisse.
— O que foi? — disse Brigitte, ainda tentando entender o porquê do grito.
Clarisse tentou puxar o braço, mas Brigitte não soltou a tempo. Sentiu, de novo, o mesmo zumbido, agora mais forte, escapar de sua mão para a pele da outra menina, como um estalo seco de eletricidade estática.
— Aaaaah! Ela me deu choque!
Brigitte se levantou num pulo, olhando as próprias mãos como se elas fossem mágicas. Sentia-as estranhas, quentes e vivas, mas não estavam machucadas mesmo com o choque. Era como se algo dentro dela tivesse se estendido para fora, por um instante.
— De verdade? — disse Alix, com a voz baixa.
— Sim, eu vi! — disse Bastien, apontando para Brigitte. — Juro que fez um som! Tipo… bzz! Bem na hora!
— Pareceu trovãozinho! — disse Céline, com os olhos brilhando. — Tu fez isso, Brigitte?
Brigitte abriu a boca, mas hesitou por um momento, ainda confusa com o que tinha acontecido.
— Eu não sei. Eu juro que não fiz nada. — ela esfregou as palmas das mãos contra o vestido, como se pudesse apagar o acontecido.
— Você fez alguma coisa, sim! Foi um choque de verdade! Me queimou! — disse ela, mostrando o braço. Havia uma leve vermelhidão, nada grave. Mas o olhar dela era feroz. — Tu fez isso!
— Eu só te encostei. Foi sem querer, eu juro!
O grupo formou um semicírculo ao redor das duas, como se presenciassem algum tipo de duelo invisível. O silêncio que se formou entre elas era mais de curiosidade do que de medo.
— Tu consegue fazer isso sempre que quer? — perguntou Aurélio, com um sorriso torto. — Faz comigo! Vai!
— Não, não, espera — disse Étienne, empurrando o garoto com o ombro. — Deixa eu ir primeiro! Quero ver se é verdade mesmo.
Brigitte recuou um passo, confusa com a súbita empolgação do grupo.
— Gente, eu não sei como fiz isso. Eu nem sei o que foi isso direito.
— Vocês são bobos. — disse Clarisse, fazendo biquinho. — Ela podia ter me machucado de verdade!
Mas ninguém respondeu ou se importou com ela. Céline se aproximou de Brigitte e tocou em sua mão antes que a garota pudesse tirar a mão.
— Ei, espera.
Num instante, um estalo claro ecoou. TAC! e um fio violeta brilhou entre as duas mãos, como uma fagulha.
— Ai! — gritou Céline, recuando com um pulo.
Ela sacudiu a mão no ar com os olhos arregalados. Brigitte recuou o braço, levando a mão direita até o peito e segurando-a sobre a mão esquerda.
— Agora eu vi! — gritou Bastien. — Foi tipo uma faísca!
— Você está bem, Céline? — perguntou Aurélio.
A garota de cabelos curtos esfregou os dedos uns nos outros, com seus olhos brilhando de pura euforia.
— Sim. Foi só um choquinho. Igual quando tu encosta no corrimão de metal.
Brigitte estava confusa, em uma emoção entre assustada e contente. Ela não sabia como fez aquilo, mas só pelo fato de ter feito algo novo e único deixou-a feliz, feliz por saber fazer algo que só ela conseguia. Ela olhou novamente para as mãos e sorriu.
— Tu tá amaldiçoada ou o quê? — murmurou Aurélio, meio admirado, meio assustado.
Nesse instante, no fundo do cenário, uma voz se ergueu como uma enxada cortando o trigo:
— Clarisse! Clarisse! Já disse que não era para se afastar tanto do campo!
Todos viraram o rosto ao mesmo tempo. A senhora Lemoine estava subindo pela trilha de terra, com os sapatos sujos de lama seca e as mãos no quadril, bufando de raiva.
Clarisse, que ainda esfregava o braço, virou-se devagar para a mãe. E sorriu. Um sorriso torto e traiçoeiro. Como se finalmente tivesse conseguido o que queria.
A garota girou o corpo num teatrinho cuidadoso e correu na direção da mãe com os olhos levemente úmidos, piscando rápido.
— Mããããeeee! A Brigitte me machucou! — disse ela, já num tom choroso irritantemente forçado.
O grupo se mexeu, inquieto. Bastien coçou o nariz, Étienne fez cara de dúvida e Brigitte permaneceu parada, olhando para as próprias mãos, como se tentasse entender se ainda estavam “ligadas”. A senhora Lemoine chegou até eles com um olhar duro como pedra.
— Que história é essa? — perguntou a mãe, encarando a filha.
Clarisse estendeu o pulso para a frente com uma expressão dramática. — Olha! Ela me deu um choque, mãe! Um choque de verdade! E doeu!
A mulher abaixou-se um pouco e olhou o braço da menina. Ali tinha uma leve mancha vermelha, parecida com uma marca de picada ou de calor. Ela ergueu uma sobrancelha em direção à filha.
— Um choque?
— Uhum, e me machucou muito.
Brigitte deu um passo à frente, coçando a cabeça.
— Foi sem querer… Eu nem sei como isso aconteceu…
— Foi de propósito, mãe! Ela segurou meu braço forte e ficou me dando choque! E depois foi na Céline também!
Céline ergueu uma sobrancelha quando apareceu na discussão.
— Mas eu que encostei nel-
— ELA MACHUCA TODO MUNDO QUE ENCOSTA NELA, MÃE! — interrompeu a garota mimada.
A voz de Clarisse soou mais alto do que precisava, abafando qualquer outra fala. Céline ficou muda, com a boca entreaberta e os olhos arregalados. Brigitte apenas piscou, ainda tentando entender como as coisas foram parar nisso.
— Como assim? — disse a senhora Lemoine, agora erguida. — Quem te ensinou essas coisas, menina?
— Ninguém… eu não sei como eu fiz aquilo… — murmurou Brigitte, abraçando o próprio corpo.
— Parece bruxaria! — gritou Clarisse enquanto se entre escondia atrás de sua mãe.
A senhora Lemoine arregalou os olhos por um breve segundo.
— Não fala essas coisas, filha! — disse a mulher, virando-se para ela. — Isso é muito sério!
Brigitte olhou para o rosto da mãe de Clarisse. Aquela era uma expressão fechada de adulto que já decidiu o que vai fazer. A mulher limpou a longa saia com as mãos e respirou fundo pelo nariz.
— Eu vou falar com a sua mãe. Hoje ainda. Você pode colocar minha filha e as outras crianças em perigo.
Brigitte abriu a boca, mas não disse nada. O silêncio de seus amigos pesava mais que qualquer acusação. Alix evitava seu olhar. Bastien chutava o chão com a ponta da bota. Até Étienne, que sempre tinha algo engraçado para dizer, agora estava com a boca fechada.
Clarisse, por outro lado, ajeitou a saia, limpou o rosto mesmo sem lágrimas e segurou a mão da mãe com exagero.
— Vamos, Clarisse.
Antes de sair, lançou um último olhar para Brigitte, não de medo, nem de nojo, mas de vitória.
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