Capítulo 50 - Gostmark
— Ahh, você vai adorar esse lugar. — disse Evelyn, afundando na poltrona com um suspiro de satisfação. — Venho aqui desde criança. Todo aniversário, meus pais me traziam.
Ela deu um sorriso leve, quase nostálgico.
— Naquela época… esse lugar parecia gigante. Eu mal alcançava a mesa. Eu lembro que sempre pedia bolo de mel… lembranças não é?
Niko, Evelyn, Mithi e Ahti estavam no restaurante Gostmark, o mais tradicional da cidade — pelo menos segundo a elfa, que insistiu em levar Niko ali. Ela jurava que era o melhor lugar da região. Além de que seu avô foi amigo do fundador do estabelecimento.
— Ah, e você é quem vai pagar a conta, tá? — disse ela, lançando um olhar sereno para Ahti.
— O quê?!
— Você ouviu muito bem. — estalou e apontou o dedo indicador para ele. — Vai pagar tudo que a gente pedir. Afinal… você prometeu isso, lembra? — completou com um sorriso debochado.
Enquanto os dois discutiam, Niko se acomodou ao lado de Evelyn com Mithi no colo. O interior do restaurante era aconchegante: piso e móveis em madeira escura, paredes em tons claros com painéis de carvalho decorados ao lado. Sem contar os inúmeros quadros antigos, pratos de cerâmica e lanternas de cobre presas às paredes. Realmente era um lugar bem tradicional.
— Eu posso gritar e dizer que estou sendo feito de refém. — murmurou Ahti, tentando ser ameaçador.
— E eu te mato na hora.
— E se você me matar, vai ser presa ou morta.
— Hmm… nah. Isso não vai acontecer.
Um garçom de terno elegante surgiu com os cardápios e os distribuiu. Niko folheou o dele com curiosidade. Os pratos eram bem diferentes dos que via em Reiken. Alguns tinham nomes familiares do bar onde já havia comido com Evelyn, mas a maioria era nova — principalmente os ingredientes.
— Por que isso não vai acontecer? — insistiu Ahti.
— Porque esse carinha aqui — Evelyn apontou com o polegar para Niko — tem uma Alma independente. Se quiser, pode te mandar direto pro deserto de Froskahn num piscar de olhos. Ninguém ouviria seus gritos. Ninguém encontraria seu corpo. Huhum.
Era um blefe descarado. Niko não tinha nenhuma marca naquele deserto congelado no sul do continente — e, mesmo se tivesse, seria necessário uma quantidade enorme de Alma para fazer isso, algo que com certeza ativaria sua maldição. Mas Ahti não precisava saber disso.
Mesmo não ouvindo a conversa direito, o nome “Froskahn” despertou memórias em Niko. Ele o reconheceu do Áxis: um deserto de gelo no extremo sul de Solaria, cortando países como Kyndral e Viantel. Era um imenso bioma inóspito. Praticamente inabitável.
— Isso é impossível. — rebateu Ahti, pálido. — Você está blefando. Nenhum sapien conseguiria fazer algo do tipo!
— Quer apostar quanto? — provocou a elfa, apoiando a bochecha na mão com um sorriso predatório.
Ahti engoliu em seco. A esperança de escapar daquela situação, com a polícia ou qualquer outra ajuda, escoava como areia entre os dedos. Ele estava preso. E agora sabia que não tinha escapatória.
— Tá bom… eu pago. — resmungou, desviando o olhar.
— Foi difícil aceitar? — zombou Evelyn, voltando os olhos ao cardápio. — Vamos ver o que temos aqui…
Como prometido anteriormente, ela escolheria o prato de Niko. Ele confiou na garota, já que conhecia mais da cidade — e do mundo — mais do que ele. Minutos depois, os pedidos chegaram.
O prato principal era um Himmel Ziem. Um prato com purê de nabos e batatas, ameixas escuras e pedaços grossos de linguiça toscana. Já a sobremesa, era uma Medvizka. Um doce de cubos de bolo de mel e creme, cobertos por uma fina camada de chocolate. E, para beber, um simples e delicioso suco de maçã.
— Bom apetite! — disse a elfa, juntando a palma das mãos e fechando os olhos.
Levou o garfo à boca com os olhos quase brilhando, como se aquele sabor lhe trouxesse de volta algo esquecido. Mastigou devagar, enquanto dava um sorriso silencioso e satisfeito. Um sorriso verdadeiramente feliz.
— Você devia comer logo. Isso aqui tá tão bom. — falou de boca cheia.
Niko hesitou por um segundo, sem saber que tipo de sabor o aguardava. Pegou o garfo, reuniu uma porção de purê, linguiça e ameixa, e levou à boca.
No instante em que mastigou, foi atingido por uma onda de ardência — pimenta, muita pimenta. Ele franziu os olhos e tossiu baixinho. Mas aos poucos, o purê suavizou o impacto, tornando a combinação suportável. Os sabores se equilibraram. Aos poucos a parte apimentada se tornava um detalhe no prato.
— E então, maninho? — perguntou Evelyn.
— É gostoso… mas meio apimentado demais. — respondeu com honestidade.
— É, você se acostuma. — disse ela, casualmente.
Niko não achava que precisava se acostumar com comida que te queimava por dentro. As próximas mordidas foram melhores que as anteriores. Sem contar que o suco ajudava na queimação da boca. Dessa forma, terminou o prato. Em seguida, partiu para a sobremesa.
A Medvizka veio montada como uma pirâmide de cubos — o que Niko achou bem fofo. Bastou a primeira mordida para suas íris se dilatarem. O bolo era macio por fora, úmido por dentro e com um toque de mel que grudava na língua. Era simples, mas tinha algo quase mágico na combinação. Era quase tão bom quanto o devaneio.
Ele devorou os cubos restantes rapidamente, enquanto Evelyn fazia carinho em Mithi, que emitia um ronronar fofo, e o escravo observava a diversão dos dois em um silêncio de ódio.
Ao terminar, viu a amiga girando a taça d’água com leveza entre os dedos. Parecia distraída. Pensativa com algo.
Niko achou aquilo curioso. Nas outras duas vezes em que tinham comido juntos, Evelyn sempre pedia algo alcoólico — uma taça de sidra e uma caneca de chopp respectivamente. Sem falar que já nos primeiros goles ela já ficava bêbada. Era quase um ritual. Mas hoje, não. Nem sinal de álcool.
Ele observou o giro da água na taça por um momento, e então perguntou:
— Você não pediu nada alcoólico hoje. Tem algum motivo?
Ela ficou um segundo em silêncio, encarando a água girar. Depois deu um pequeno sorriso — um daqueles que duram pouco, mas dizem muito.
— É que… acho que não tenho por que beber hoje. Também quero lembrar das próximas horas com clareza. Então é melhor assim.
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