Brigitte estava de frente para sua casa, antes de entrar, a garota recuou um pouco, tentando juntar coragem. Quando finalmente estava pronta, empurrou a porta com cuidado, como se quisesse evitar ser ouvida, mas quando a madeira rangeu, tinha certeza de que todos que estavam lá já tinham escutado-a.

    Ela entrou, fechando a porta devagar. Suas botas ainda estavam sujos de poeira e terra do campo, e o cheiro do jantar quase pronto invadiu suas narinas, cebola frita, junto de algo com ervas, talvez era a sopa que sua mãe fazia nos dias de feira. Mas ninguém estava na cozinha.

    No sofá, sentados lado a lado, estavam os dois. A mãe com o avental ainda amarrado na cintura e um pano de prato enrolado nas mãos. O pai, com a camisa aberta no colarinho e os cotovelos apoiados nos joelhos, como se estivesse pensando há um tempo.

    — Oi, filha. — disse a mãe em um tom suave.

    Brigitte parou no meio da sala, entre o armário das xícaras e a almofada do gato.

     — Eu… — ela começou, mas não tinha nenhuma frase depois disso.

    — Tá tudo bem, filha. — disse o pai. — Não estamos bravos com você, tá?

    — Só queremos conversar um pouco. Só isso. Pode sentar? — completou a mãe, se inclinando para frente.

    Brigitte se sentou em umas das cadeiras de madeira na mesa de jantar, ficando de frente para os pais. Assim que a garota se sentou, a conversa se iniciou.

    — A senhora Lemoine veio aqui. — disse a mãe.

    — Eu imaginei. — sussurrou Brigitte.

    — Ela disse que você deu um choque forte na filha dela. E também na Céline. É isso?

    A garota assentiu, com os olhos presos no chão, sem encarar ninguém, envergonhada.

    — Mas eu não fiz por querer, eu juro.

    — A gente acredita em você. — disse o pai rápido, como se quisesse evitar que ela se encolhesse mais ainda. — Mas… a mulher disse que você fez aquilo como se fosse magica. Você realmente fez isso do nada, como magica?

    Brigitte balançou a cabeça.

    — Foi quando eu encostei na Clarisse… Eu senti… tipo, um zumbido na mão. Como se algo estivesse saindo de mim. Depois veio um estalo e quando eu percebi eu dei um choque na Clarisse.

    — E agora? Consegue fazer de novo? — disse a mãe, passando o pano de uma mão para a outra.

    Brigitte olhou para os próprios dedos, apertando uns contra os outros, evitando olhar para os pais.

    — Eu não sei se consigo… Eu tentei antes, no caminho, mas não saiu nada.

    — Pode tentar em mim? — disse o pai estendendo a mão em direção à garota.

    — Pai, eu não sei se é uma boa ideia…

    — É só um choquinho, nada de mais.

    Brigitte estendeu a mão devagar, encostando dois dedos na palma dele. Fechou os olhos. Respirou fundo. Concentrou-se. Pensou na sensação, o zumbido e o calor que tinha sentido quando deu um choque em Clarisse e Céline.

    Por um instante não aconteceu nada. Mas então… Tac. Um estalo fraco, quase um estalar de língua. Um fio de luz roxa, brilhou por menos de meio segundo entre os dois dedos. O pai recuou a mão ao sentir o estalo e a mãe arregalou os olhos de surpresa.

    — Parece que eles estavam falando a verdade mesmo.

    Brigitte puxou a mão de volta e a escondeu entre as pernas.

    — Me desculpa, eu não queria ter feito isso.

    — Não, meu bem. — disse a mãe. — Você não tem que pedir desculpas por nada. A gente precisava entender bem o que tinha acontecido.

    — Amanhã de manhã, a gente vai ao médico. Ai a gente vê o que é isso direitinho. Tá bom?

    Ela assentiu, agora olhando para os pais. Assim, veio o fim da conversa, um silêncio, não pesado, mas tranquilo, como algo ansioso que estava para ser descoberto.


    A manhã do dia seguinte estava nublada. Brigitte e sua mãe estavam de frente à casa de Bernard, o curandeiro da vila. Brigitte quase nunca ficou doente em sua vida, e das únicas vezes que ficou não era nada muito sério, então a garota não conhecia o homem direito, somente se entre olharam algumas vezes na vida quando ela andava pela vila.

    — Ele é bom? — perguntou Brigitte, segurando a mão da mãe.

    — Ele me ajudou quando eu fiquei com pneumonia. — disse a mulher mais velha. — Não existe ninguém melhor nessa vila, nem nas vilas vizinhas tão bom quanto ele. Isso eu te garanto.

    A casa de Bernard tinha o telhado baixo, coberto de musgo e cipó. A madeira era velha, mas muito bem cuidada. Na varanda, pendiam ervas secando em pequenos feixes, amarrados com barbante grosso. O cheiro de camomila, cânfora e lavanda era marcante, aumentando a intensidade conforme chegavam a porta

    A mãe de Brigitte subiu os dois degraus da entrada e bateu com os nós dos dedos três vezes, firme.

    — Bernard? É a Odile.

    Alguns segundos se passaram, com o vento somente mexendo as ervas. Depois, passos lentos. Um rangido de madeira. E então a porta se abriu.

    Atrás da porta estava um homem na faixa dos 50 anos, magro, alto, com uma barba branca que descia até metade do peito e olhos tão escuros que pareciam pretos. Usava um casaco comprido de lã marrom e segurava um pano com o qual secava as mãos.

    — Odile — disse ele, com um aceno quase imperceptível. Depois, seus olhos desceram até Brigitte. — E essa é sua filha, não é?

    — É sim. O nome dela é Brigitte. — disse Odile, puxando a menina um pouco mais para frente, mas que se recusava graças a timidez. — Podemos entrar?

    — Claro. Entrem. Minha casa está meio bagunçada, então não se importem muito com isso.

    A casa por dentro era mais escura do que Brigitte esperava. As janelas estavam cobertas com panos grossos, e a única luz que estava no ambiente era somente das lamparinas a óleo, uma em cada canto. A sala estava a direita, com as paredes tomadas por estantes cheias de frascos com líquidos coloridos e livros grossos, alguns estando bem desgastados.

    Odile puxou uma cadeira da mesa de jantar para Brigitte e se sentou ao lado, com Bernard sentando na frente das duas.

    — E então? O que trouxe vocês aqui? — perguntou o homem, cruzando os braços sobre o colo.

    Odile olhou para a filha por um segundo, como se perguntasse silenciosamente se podia contar. Brigitte assentiu com a cabeça, dando permissão para a mãe falar.

    — Recentemente a Brigitte aprendeu que consegue fazer um estalo com as mãos, uma faisquinha.— disse Odile, olhando para a filha, que permanecia em silêncio. — Mas não é como aquelas brincadeiras de esfregar lã no braço e encostar em alguém. Não, é como se fosse magica que ela fizesse isso. Aí eu queria saber se é algo sério ou não.

    O curandeiro coçou a barba. A cadeira de madeira rangeu um pouco quando ele se inclinou mais perto.

    — Há quanto tempo isso começou?

    — Foi ontem mesmo.

    — E quantas vezes isso aconteceu?

    — Foram três. A mais recente foi quando ela fez no pai para sabermos o que estava acontecendo com ela.

    Bernard tamborilou os dedos no braço da cadeira, pensativo.

    — Hmm. Isso começou ontem, e já conseguiu fazer três vezes? Interessante. 

    Então o homem olhou para Brigitte diretamente pela primeira vez desde que se sentaram.

     — E você, menina. Está sentindo alguma coisa diferente? Tontura, enjoo, dor de cabeça, coceira nas pontas dos dedos, alguma marca brilhante no corpo?

    Brigitte negou com a cabeça.

    — Não… meus dedos só vibram e esquentam um pouquinho. Mas isso não dói nem um pouco.

    — Certo — disse Bernard, soltando um leve suspiro pelo nariz. — Então melhor ver isso com os próprios olhos.

    Ele se levantou devagar, caminhou até uma pequena estante nos fundos da sala, e voltou com uma tira de pano escuro e um pedaço de pedra clara, lisa e oval, do tamanho de um sabonete.

    — Encosta aqui. Com dois dedos só.

    Brigitte olhou para a mãe. Odile fez um gesto com a cabeça, encorajando. A menina estendeu a mão devagar e encostou na pedra com a ponta do indicador e do dedo médio.

    Nada aconteceu no primeiro segundo. Bernard ia dizer algo, mas então um estalo seco surgiu, cortando o ar. Tac. Uma faísca roxa apareceu sobre a superfície da pedra em um piscar de olhos, fazendo sua borda vibrar. Bernard afastou rapidamente a mão que segurava o pano.

    — Olha só… — disse ele em voz baixa, inclinando-se para ver melhor.

    Ele virou a pedra na mão e passou o polegar sobre o local onde a faísca havia tocado. Junto disso, um cheiro leve de ozônio subiu no ar. Bernard forçou a vista, coçou a barba mais uma vez e se dirigiu a um móvel baixo atrás de si.

    — Esperem aqui.

    Ele se agachou e tirou de dentro de um armário um livro grosso, encadernado em couro escuro e gasto, com o símbolo circular com linhas irregulares desenhado na capa. Colocou o livro sobre a mesa e abriu com cuidado, folheando por entre as páginas marcadas pelo tempo.

    — Isso aqui é um compêndio de linhagens. Algumas famílias antigas que têm registros de manifestações de Alma. — comentou, sem tirar os olhos do papel. — Não são todas as famílias que estão catalogadas no livro, mas lembro de algo envolvendo eletricidade.

    Ele parou numa página que continha algumas coisas escritas e um elemento bem chamativo, um brasão simples: um raio espiralado atravessando três nuvens.

    — Aqui. Família Akitina. Antiga. Relativamente numerosa hoje em dia. Os traços? Faíscas e estalos em tom azulado ou violáceo, sensação de vibração antes da descarga. Usualmente se manifesta entre os sete e os quinze anos. Parece familiar?

    — E isso quer dizer que a Brigitte é…?

    — Uma descendente. De algum ramo da família. Nem todo mundo herda a Alma, mesmo com o sangue. Mas às vezes ela desperta, sem aviso. Pode ter vindo de alguém que vocês nem sabem que existiu. Talvez um trisavô, ou um tataravô. Essas coisas somem e voltam nas árvores genealógicas depois de algumas gerações.

    Brigitte já tinha ouvido falar em Alma algumas vezes, mas aquilo nunca despertou seu interesse, então a possibilidade de ter uma Alma nem passou por sua cabeça. 

    Já Odile, por ser mais velha e experiente, tinha mais contato com esse mundo, tanto que já conhecer alguém da família Métallo, até pensou nessa hipótese, mas como não tinha descendentes de Alma, pelo menos era o que pensava, rapidamente descartou ela.

    Odile respirou fundo, olhando para Brigitte, que observava o brasão desenhado com um misto de fascínio e confusão.

    — Isso é perigoso?

    — Só se for mal cuidado. — respondeu o médico com um sorriso de lado. — Uma faísca que não sabe onde cair pode causar muito estrago. Mas o raio em si… não é ruim. Só precisa de um caminho.

    Então fechou o livro com um estalo abafado.

    — O que ela tem não é maldição, pelo menos, não literalmente. Nem doença. E com treino, pode ser muito útil. Mas agora vocês têm uma escolha. Podem fingir que isso não existe ou pode aceitar o fato dela ter isso, ensinar, e ajudar ela a controlar. O poder dela pode ser bem útil se saber usar direito.

    Brigitte olhou para a mãe, ainda sem dizer nada, mas com os olhos roxos brilhando em uma leve estática. Ao ver aquilo, Odile apertou a mão da filha, firme.

    — A gente vai dar um jeito.

    Bernard se recostou na cadeira, ajeitando a coluna enquanto estalavas os dedos da mão.

    — Isso já é um bom começo.

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