Capítulo 51 - Em Paz
Evelyn colocou com cuidado um buquê de rosas brancas e vermelhas em cima do balcão da loja.
— Vou querer essas aqui. — disse, com um tom sereno.
— Certo. Mais alguma coisa, senhora? — perguntou a atendente, uma mulher-coelho de olhar gentil.
Niko, Evelyn, Mithi e Ahti estavam na floricultura naquele fim de tarde. Segundo Evelyn, ela precisava “resolver algo importante” antes do encontro na floresta — e isso envolvia comprar flores. Passou dez minutos circulando entre as opções, avaliando tons, formas, cheiros, até encontrar exatamente o que queria.
Enquanto isso, do lado de fora da loja, Niko vigiava Ahti. Mithi estava em seu colo, ronronando, alheio ao desconforto do refém. Niko, por outro lado, estava firme, observando cada movimento do ruivo e pressionando com o olhar — o suficiente para deixá-lo resmungando.
— Essa elfa demora demais! — murmurava Ahti. — Eu também vou ter que pagar por essas flores? Por que a gente tá aqui, afinal?
Lá dentro, Evelyn balançou a cabeça.
— Não, só isso mesmo. — respondeu à atendente.
— São três Yzakels e cinquenta cêntimos. — disse a mulher-coelho.
Evelyn retirou três cédulas douradas e pretas do bolso, junto de uma pequena moeda dourada, e entregou sobre o balcão.
— Muito obrigada pela compra, senhora. — disse a funcionária com um leve sorriso.
— Eu que agradeço… V-
Evelyn interrompeu a própria fala. Algo naquela mulher pareceu dar um estalo na mente da elfa. Seus olhos analisaram o rosto da atendente com mais atenção. Algo naquela expressão, naquele tom de voz… havia algo familiar ali.
— Você me lembra alguém. Por acaso… seu nome é Lucy?
A funcionária ficou confusa por um instante. Mas, ao encarar aquela elfa com mais atenção, seus olhos se arregalaram. O sorriso desapareceu. Suas mãos tremularam, e ela deixou cair o dinheiro que ainda segurava no chão.
— …Evelyn…? — sussurrou, como quem acabava de ver um fantasma.
Em um impulso, Lucy contornou o balcão e se aproximou com passos rápidos. Evelyn ficou imóvel, apenas dando um sorriso gentil em direção a antiga amiga da escola.
— É bom te ver de nov-
PÁC. Um tapa, leve, mas direto, acertou sua bochecha. Evelyn levou a mão ao rosto, surpresa. Não parecia haver raiva no golpe — somente mágoa acumulada.
— O que você estava pensando quando decidiu ir pra guerra, hein?! — disse Lucy, com a cabeça baixa. A voz saía trêmula. — Você é idiota? E por que não me avisou quando voltou? Eu… eu pensei que você tivesse morrido!
Ela ergueu o rosto. Seus olhos estavam vermelhos e cheios de lágrimas. Os dentes cerrados tentavam conter uma emoção que transbordava de todos os lados.
Evelyn respirou fundo. Não tentou se defender. Uma desculpa simples não bastaria. Ela sabia disso. Então, fez o único gesto digno: falou a verdade.
— Depois da guerra… tudo o que eu queria era esquecer… de tudo. Apagar aquela parte da minha vida. Recomeçar em algum lugar longe daqui. Eu até mesmo pensei em mudar de nome, acredita? — soltou uma risada nervosa. — Parece tão idiota agora…
Lucy abaixou levemente os ombros. Sua expressão endurecida suavizou.
— Mas eu aprendi que a gente não pode fugir do passado pra sempre. — continuou Evelyn. — Então… me desculpa, Lucy. De verdade. Eu não devia ter te deixado aqui sozinha.
Por um momento não houve nenhum som. Lucy apenas deu dois passos para frente. Parou a poucos centímetros de distância. Sem dizer nada, a abraçou com força, pressionando o rosto contra o peito da amiga. Os braços se fecharam como se tivessem esperado anos por aquele instante.
— Eu tô tão feliz que você tá bem… — sussurrou.
Evelyn retribuiu o abraço, sorrindo com os olhos fechados.
— Eu também… Tô feliz que te encontrei de novo.
***
O trio seguia por uma rua estreita, em fila única. Na frente ia Evelyn, com o buquê de flores entre os braços. Atrás, Ahti caminhava de cabeça baixa, e por último vinha Niko, atento, mantendo os olhos fixos no canal, vigilante. Estavam ao lado de um muro de tijolos desgastados, alto o bastante para esconder o que havia do outro lado — era possível ver apenas o alto das árvores por de cima da estrutura.
Mithi não estava mais com o grupo. Evelyn havia pedido a Lucy que ficasse com o gato até o fim da tarde. A amiga ficou relutante no início, mas no fim, aceitou. Desse modo, o gato estaria em segurança até a missão terminar.
Evelyn parou. Diante dela, havia uma construção gótica de dois andares, com muros cobertos de vinhas e uma placa de ferro fundido presa no alto: “Cemitério de Colvenfurt”. Abaixo, uma inscrição indicava a data de inauguração — 4468. Aquele era um lugar velho, melancólico, e quase abandonado. O portão rangeu quando ela empurrou.
— Niko… consegue esperar aqui? — disse com voz baixa, mas firme. — Preciso ir sozinha.
— Claro. Sem problemas.
— Certo… Te vejo mais tarde.
Sem olhar para trás, Evelyn adentrou no cemitério e desapareceu da visão do amigo e da vítima.
O caminho interno era feito de tijolos cinzas, envelhecidos pelo tempo. À esquerda, logo na entrada, havia uma capela escura, de vitrais geométricos. Em sua frente, havia a estátua de um anjo cobria o peito com as mãos. Era Erythia.
Segundo Alstra, aquele era o Anjo da vida e da morte. Guardiã da travessia entre o plano celestial e a terra. Seus olhos de pedra estavam voltados para quem entrava, como se julgasse cada passo dos que andavam pelo lar dos mortos.
É bem comum ver estátuas de Erythia nos cemitérios. Evelyn já viu versões dela em todos os cemitérios por onde passou. Sempre ali. Sempre vigiando.
Ela caminhou em silêncio, seus passos fazendo folhas secas estalarem pelo chão. Passou por uma cruz de pedra, depois por pequenas estátuas de querubins, e por fim algumas criptas com nomes apagados pelo tempo.
Cruzou apenas duas pessoas: uma senhora caminhando lentamente, e outra figura sentada diante de um túmulo, calada. Os demais túmulos estavam decorados com velas, fitas, lanternas e arranjos. Vendo os enfeites, Evelyn se perguntou se o buquê que trouxera era suficiente. Teria sido melhor trazer mais? Um incenso? Alguma coisa simbólica?
“Não adianta pensar nisso agora”, disse a si mesma. “Já estou aqui. Não dá pra voltar atrás.”
Logo encontrou o banco de madeira onde costumava se sentar dez anos atrás. Parou ali. Mordeu o lábio inferior. Respirou fundo.
Virou à direita e saiu do caminho principal, pisando na grama úmida. Parou. Com o coração batendo rápido, se ajoelhou diante de dois túmulos simples, lado a lado. Nas lápides estavam os nomes:
Emilia Bauer Gélis
Franz Bauer
Os nomes dos seus pais. As sepulturas estavam limpas, mas vazias — sem nenhuma flor, sem nenhuma vela. Como se o tempo tivesse passado por ali sem deixar rastros ou lembranças.
Evelyn engoliu em seco. Não sabia o que dizer. Tinha passado o dia inteiro pensando nesse momento, ensaiando conversas em sua mente, mas agora, com os olhos diante das lápides, nada vinha à mente. Tudo dentro de si parecia escapar de seu corpo… menos sua coragem. Mesmo com tudo que tenha acontecido com ela, não a abandonou.
Fechou os olhos. Inspirou fundo. Depois colocou o buquê entre os dois túmulos com delicadeza. E, por um instante, ficou em silêncio.
Abriu os olhos.
— …Oi, mãe… oi, pai… como vocês estão?
Assim que terminou a frase, sentiu vergonha e insatisfação. “Que começo horrível.” Mas não se deixou levar. Agora só podia seguir em frente.
— Faz um tempo, né… Dez anos. Mais do que eu queria. Mas… foi no que deu. — respirou fundo, olhando para o chão. — A verdade é que… eu queria ter vindo antes. Queria muito… Mas não consegui.
Ajeitou a postura, sentando-se com os joelhos para cima enquanto abraçava as pernas.
— Eu tentei esquecer de tudo… Da guerra. Da cidade. E… de vocês… Achei que se fingisse que minha vida anterior nunca existiu… eu ia conseguir viver em paz. Pensei até em mudar de nome. Tão idiota isso, né?
Ela riu, um riso abafado. Não havia humor ali. Só cansaço.
— Mas aquilo não deu certo. Vocês estavam em tudo. Nos meus sonhos. Nos detalhes da minha casa. Nas palavras que vivem nos meus pensamentos. E eu percebi… que não quero esquecer vocês. Nunca quis. Não de verdade.
Olhou para o céu. O sol se escondia atrás de nuvens douradas, tingindo o mundo com um tom vívido. Ver aquilo a encheu de um sentimento bom indescritível. Era um sentimento de felicidade, nostalgia e — acima de tudo — parental. Era algo belo. Ela somente aceitou aquilo, abraçando como parte de si.
— Seria egoísmo apagar tudo que viveram por mim. Tudo que fizeram pra me dar uma vida digna. E só porque o mundo me machucou… eu achei que podia jogar vocês fora do meu mundo como se nada fosse… Me desculpem. Por ter fugido. Por ter sumido. Por não ter dito nada.
Havia lágrimas em seus olhos agora. Mas não se envergonhava mais delas.
— Eu… ainda não fiz faculdade de artes, mãe… Falava tanto disso, lembra? E… eu acabei virando mercenária. Não sei como. Fui deixando o tempo passar. Achei que ia ser temporário. Mas aquilo virou parte da minha vida.
Deu um sorriso amargo.
— Eu sinto que traí a mim mesma. Virei prisioneira de quem eu não queria ser. Mas… eu tô tentando. Ainda quero fazer algo bom. Ainda quero ser digna de vocês. Que vocês possam me ver do além e falar “temos orgulho de você, filha.”
Por fim, abaixou a cabeça diante das lápides.
— Além das novidades e das desculpas, eu queria dizer… obrigada… Por tudo… Por acreditarem em mim, mesmo nas minhas ideias mais absurdas. Por terem sido os melhores pais que alguém poderia ter. Pai… você me ensinou que tudo é passageiro, então deve ser vivido como toda a força do mundo. E mãe… você dizia que eu ia superar tudo, que eu era forte. E sabe de uma coisa? Você estava certa.
Ela passou a mão pelos nomes gravados no mármore.
Obrigada por nunca terem desistido de mim. Obrigada por tudo que vocês fizeram na minha vida. Eu amo vocês. Muito.
E ficou ali por mais alguns instantes, com um sorriso de gratidão no rosto.
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