Capítulo 63 - O Jantar
Assim que Niko sentou na cadeira e sentiu a textura do estofado, uma onde de conforto o atingiu. A sensação era tão agradável que, por um instante, ele acreditou que poderia adormecer ali mesmo, sem nenhum problema. “Tão macio”, pensou.
— Nossa, todo esse ambiente me faz sentir sufocada de tão rico que é. — comentou Evelyn, ainda olhando em volta. — Nunca comi numa mesa tão chique antes. Será que a gente precisa seguir regras de etiqueta? Tipo guardanapo no colo? Ou comer com talheres específicos?
— Como se você fosse seguir alguma. — respondeu Niko, com um meio sorriso.
— Você fala como se eu fosse uma delinquente. Eu trato bem quem me trata bem, viu? E o mínimo que posso fazer é fingir que sei usar esses dez tipos de garfo e tratar a Hyandra com respeito.
Enquanto trocavam provocações, Niko observou o salão mais uma vez, agora com mais atenção: os quadros de paisagens que se complementavam em partes, as lareiras opostas estavam acesas com uma chama baixa e aconchegante, e as outras três portas em sequência — à frente dos dois — levavam a lugares desconhecidos da casa.
— Cinquenta mil é muita coisa. — disse Evelyn, apoiando os cotovelos na mesa. — Vou investir esse dinheiro nas minhas artes, comprar material novo, talvez fazer um marketing decente… e, quem sabe, mudar de casa. Mas ainda tô pensando. E você, Niko? Vai fazer o quê com sua parte?
Niko pensou por um instante. Honestamente, não queria nada grandioso. Seu estilo era simples. Tudo que precisava cabia no bolso ou podia ser usado no dia a dia. Só havia uma coisa ainda que não possuía e precisava ter.
— Acho que vou finalmente ter uma casa própria, além de comprar alguns livros… e um novo brinquedo pro gato.
— Adorei as escolhas. — disse Evelyn, com um sorriso de canto, rindo discretamente pelo nariz.
A porta central se abriu com um leve rangido. Ambos voltaram seus olhos para a entrada. Lá, encontraram uma figura alta e elegante. Era lady Hyandra. Estava parada em frente à porta, com seu único olho vermelho, os avaliava com uma curiosidade serena.
— Espero não tê-los feito esperar muito. — disse ela com um leve sorriso.
— Nem um pouco. — respondeu Evelyn. — A gente tava aqui admirando essa sala. Lugar bonito o seu.
Hyandra atravessou a sala e se sentou de frente para os dois.
— Fico feliz que pensem assim. Sintam-se à vontade. Esta noite, minha casa é de vocês.
Seu olhar cruzou brevemente com o de Niko, depois se fixou em Evelyn. Entrelaçou os dedos, apoiou os cotovelos na mesa.
— Me contem… como foi a missão? Aposto que foi emocionante.
— Foi sim. A gente invadiu um lugar, participou de um leilão ilegal e fugimos de um monte de guardas armados! Diversão pura.
— Imagino mesmo.
A porta do fundo se abriu e Gregory entrou com um carrinho de transporte, recheado de tigelas, bacias e pratos de prata.
Com a elegância de sempre, começou a servir os pratos e talheres aos convidados. Depois, dispôs travessas com carnes, grãos, purês, massas, ovos, frituras e garrafas com água, sucos e bebidas alcoólicas. Era um verdadeiro banquete. Havia tantas opções de comida que Evelyn e Niko arregalaram os olhos.
— Fiquem à vontade. Podem se servir.
Enquanto Niko e Hyandra pegavam suas porções com calma, Evelyn atacava como se esperasse que tudo desaparecesse a qualquer momento.
— Sempre tive curiosidade… o que faziam antes de virarem mercenários? — perguntou a lady, enquanto mexia na taça de vinho.
Evelyn tomou um gole de licor, balançando a cabeça de leve em seguida.
— Lutei na guerra. Decisão burra, mas são essas que moldam a gente, né?
— Na guerra? Que coincidência…
— Coincidência?
— Eu também lutei. Uma decisão igualmente burra. Da qual me arrependo profundamente. — disse, e por um segundo, olhou para Gregory, de pé, imovel.
— Pensei que gente rica evitava esse tipo de coisa.
— Se soubesse do por que fiz isso, ficaria surpresa.
A conversa prosseguiu tranquila, o ambiente era leve e aconchegante. Então Hyandra voltou sua atenção para Niko:
— E você… Niko… o que fazia antes da vida de mercenário?
Niko parou de mastigar. Aquela pergunta era algo simples para qualquer um, mas para ele não. Para ele, aquela pergunta carregava um abismo vazio e desconhecido.
— Eu… não sei.
O silêncio caiu sobre a mesa. Hyandra o encarou com uma expressão confusa.
— Não se lembra?
— Não… — respondeu ele, desviando o olhar da mesa por um instante. — Eu perdi minhas memórias. Tudo o que eu sei começou quando acordei em uma floresta. Antes disso, não lembro de nada.
Hyandra apoiou os cotovelos sobre a mesa, entrelaçou os dedos e descansou o queixo sobre eles. Observou o albocerno com um olhar sereno, quase melancólico.
— Isso deve ser difícil… Você tem tentado descobrir quem era antes?
— Sim, em uma investigação pessoal. Mas não tive muitos resultados.
Hyandra engoliu seco, se recostou na cadeira e fechou os olhos por um instante.
— Se me permite dizer… acho que posso te ajudar.
— Como assim?
A mulher deslizou a mão para o próprio colarinho e ajeitou seu jabô branco com calma, mantendo um tom tranquilo.
— Deve ser cansativo tudo isso. Caminhar por aí sem saber para onde ir, não sabendo quem realmente é… Posso te oferecer uma oportunidade de descobrir quem realmente é. Ajudar na sua investigação. Oferecer recursos, informações, apoio. Fazer você encontrar as respostas que procura. E até mesmo ter um local para morar. Aqui. Então, o que me diz?
Evelyn mastigava devagar, olhando para os dois de maneira discreta.
— Essa é uma oferta tentadora mesmo. — comentou ela de boca cheia. — Vai aceitar, Niko?
Como Evelyn disse, aquela era uma oferta verdadeiramente tentadora. Ele poderia viver naquela mansão, desfrutar de conforto e luxo, teria ajuda e recursos para buscar respostas sobre seu passado — tudo o que sempre quis. Era a chance perfeita.
Mas algo naquele convite parecia errado, encoberto demais, generoso demais. Niko sentia as peças fora do lugar, e antes de aceitar qualquer coisa, precisava entender.
— Por que você quer me ajudar? — perguntou ele, franzindo a testa. — Isso não vai trazer nenhum benefício pra você.
— Por nada. — respondeu Hyandra, com um sorriso que se forçava a ser gentil. — Só quero ajudá-lo. É da minha natureza estender a mão a quem precisa. Não espero nada em troca.
— Mas… por que eu? — insistiu Niko, com a desconfiança crescendo a cada palavra. — Há tantas pessoas por aí precisando de ajuda. Por que oferecer tudo isso justo pra mim? Isso não faz sentido.
— P-porque você… — Hyandra gaguejou, os dedos ficaram tensos sobre o tecido do terno. — Você me ajudou antes. Trouxe meu colar de volta. É o mínimo que posso fazer.
— Mas você já pagou pelo colar — disse ele, seco. — O contrato foi encerrado. Não há mais nada que deva a mim ou à Evelyn.
Hyandra vacilou. Seu olhar fugiu para a mesa, depois para o canto da sala. Estava perdendo o controle da situação — e ela sabia disso.
Um silêncio pesado pairou sobre os três, quebrado apenas pelo som da respiração contida da anfitriã.
A tensão na conversa crescia a cada frase. O tom amigável havia desaparecido. A situação tornou-se tão desconfortável e embaraçosa, que fazia até os candelabros parecerem observar em silêncio.
Niko suspirou e ergueu os olhos diretamente para ela, encarando o único olho visível da Lady com firmeza.
— Eu agradeço pela oferta, Hyandra… — disse ele, pausadamente. — Mas tenho que recusar.
— P-p-por favor… — suplicou ela, quase sem voz. Um brilho desesperado surgiu em seu olhar. — Pense melhor. Reconsidere, só… pense mais um pouco…
— Eu já pensei. E a resposta continua a mesma.
A mulher se levantou bruscamente da cadeira, apoiando as mãos sobre a mesa. O som seco da madeira se arrastando ecoou pela sala. Seu olho arregalado denunciava o pânico.
— A oferta não foi boa o bastante? — insistiu ela, desesperada. — S-se quiser, posso melhorar! Posso te dar dinheiro, acomodações, sua amiga pode ficar aqui também! O que você quiser, é só dizer!
— Não tem nada que você possa oferecer que me faça mudar de ideia. Eu não vou aceitar sua ajuda.
— M-mas… por quê?!
— Porque não faz sentido. Você não me deve nada. E mesmo que quisesse me ajudar… como você poderia? Essa investigação está sem pistas. Você estaria desperdiçando recursos com uma causa sem futuro e que nem é sua.
As palavras atingiram a Lady como facas. Ela engoliu seco, e naquele momento, algo nela se quebrou. Seus ombros afundaram, o queixo tremeu. Uma pontada fria percorreu sua espinha, e ela entendeu. Estava perdendo-o.
— N-Niko… — a voz dela se fragmentou. — Por favor… eu imploro… aceite a oferta. Eu te juro… você vai descobrir sobre seu passado, vai ter as respostas que procura…
— Desculpa, mas eu-
— Por favor! — gritou ela, a voz começou a transbordar de pânico. — Só aceita! Se você não aceitar… eles… eles podem fazer coisas ruins com você. Muito ruins. Podem sequestrar você, matar sua amiga. Você não entende. É perigoso. O único jeito de impedir isso é você dizendo sim. Por favor, Niko. Só aceita a oferta. Eu te imploro.
Um calafrio percorreu a espinha do garoto. A sala congelou. A máscara havia caído. O que antes era um convite amigável agora se tornou um grito de desespero.
— Quem são eles? — perguntou Niko, assustado.
Hyandra empalideceu. Sua boca se entreabriu, mas nenhuma palavra saiu. Quando percebeu o que havia dito, levou as mãos trêmulas à boca, como se tentasse empurrar as palavras de volta.
O ar ficou denso. Cada um presente na sala olhava para o outro como se carregasse um segredo.
— Niko… — disse Evelyn, com a voz baixa, fria como gelo. — Sai daqui. Agora.
— O quê?
— Gre-!
A fala de Hyandra foi cortada por um som agudo — como vidro se partindo.
Um projétil de cristal voou em alta velocidade. A lâmina cortou o ar como um trovão. Atingiu Hyandra no peito com força brutal, arremessando-a contra a parede em um impacto brutal. Seu corpo voou para trás, derrubando cadeiras e rachando parte da parede com a força do golpe.
O jantar havia acabado. E a batalha começou.
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