Capítulo 76 - A Fazenda II
Sigurd parou em frente à entrada da casa de hóspedes e puxou uma chave do bolso, entregando-a para Evelyn.
— Essa era a antiga casa da mia família. Depois que a gente construiu outra, começamu a usar essa pras visita.
A casa ficava logo atrás da principal. Era uma construção simples, de madeira escura, com telhado inclinado e uma pequena varanda à frente. As janelas eram estreitas e a porta, apesar de antiga, parecia ser bem resistente.
— Tem uma sala com lareira, três quartos e dois banheiru. Ocês vão ter que dividir.
— Sem problemas. — respondeu Evelyn, girando a chave e empurrando a porta.
— Assim que terminarem de se arruma aí, me avisem. Vô tá em casa enquanto isso. Até logo.
— Até, senhor. E obrigada pela recepção.
Sigurd apenas assentiu com a cabeça e deixou os três a sós na casa de hóspedes.
O interior da casa era rústico, mas acolhedor. A sala principal tinha uma mesa de madeira com cadeiras gastas, uma pequena cozinha no canto e uma lareira de pedra apagada. As paredes brancas eram enfeitadas com quadros simples. Ao fundo, um corredor levava aos demais cômodos.
— Eu adorei! — Brigitte disse animada, passando os dedos pela superfície da mesa e bisbilhotando todos os cantos da casa, como se estivesse explorando um local desconhecido.
Evelyn jogou a mochila no sofá, tirou o casaco e se largou com um suspiro.
— Melhor que dormir no chão duro de uma barraca.
Enquanto isso, Niko seguia em silêncio. Abriu e fechou as janelas, verificou a firmeza das trancas e observou os cantos com bastante atenção, tentando encontrar brechas de segurança — ou de fuga.
— Você acha que tem alguém espiando a gente? — perguntou Brigitte, observando-o com a cabeça levemente inclinada.
— …Não custa garantir. — respondeu ele.
— Relaxa, maninho. — disse Evelyn, esticando os braços. — Se fosse uma armadilha, já tinham feito alguma coisa.
— Ou estão só esperando a hora certa. — rebateu Niko. Ele terminou de verificar uma janela e cruzou os braços. — Mas, por enquanto, parece seguro.
Brigitte colocou os punhos na cintura, em um gesto dramático.
— Se alguém tentar alguma coisa, vai se arrepender rapidinho! Hehe.
Niko não respondeu. Apenas lançou um rápido olhar para ela, depois desviou, como se ainda calculasse os riscos. Ao receber o olhar de Niko, o sorriso de Brigitte morreu lentamente.
Já acomodados, Evelyn se adiantou até o centro da sala e chamou a atenção dos dois com um gesto.
— Antes de irmos ao celeiro, vamos recapitular. O boi foi morto dentro de um celeiro trancado. Sem sinais de invasão. E os empregados viram sombras nos últimos dias.
— Isso sugere que a coisa já estava rondando a fazenda há algum tempo. — disse Niko.
Brigitte, que agora segurava um caderninho simples, anotava o que Evelyn dizia com uma caneta.
— Exato. — Evelyn continuou. — O que me intriga é a polícia ter ignorado o caso. Mesmo sem roubo, ainda foi um animal morto dentro de um celeiro fechado. Algo que devia ter no mínimo uma investigação oficial.
— Parece preguiça da parte deles. — respondeu Brigitte sem tirar os olhos da folha. — Ou talvez tenham casos demais para se preocupar com um boi.
— Ou alguém disse para eles não investigarem. — Niko completou.
Evelyn foi em direção ao sofá, pegou o casaco e o vestiu
— Só vamos descobrir a verdade investigando.
Brigitte guardou seu caderninho de anotações no bolso e bateu os punhos um no outro, empolgada.
— Sim! Vamos resolver esse mistério!
Assim, os três saíram da casa de hóspedes e seguiram em direção à casa de Sigurd, prontos para começar a inspeção no celeiro.
***
A grande porta de madeira se abriu com um rangido abafado, revelando o interior malcheiroso do celeiro.
O espaço era um corredor central desorganizado, com feno espalhado, baldes tombados e barris fora do lugar. Em ambos os lados, estalagens guardavam bois e vacas que bufavam e mugiam com inquietação, o som ecoava de forma irregular pelo local.
Ao darem os primeiros passos lá dentro, Brigitte franziu o nariz, captando um cheiro estranho. Instintivamente fungou o ar — e se arrependeu no mesmo instante.
— Nossa… que cheiro horrível! — reclamou, cobrindo as rarinas com as mãos.
O ar estava impregnado com o odor de fezes, feno úmido e algo mais… um azedo difícil de descrever. Evelyn e Niko também taparam o nariz, tentando ignorar o desconforto, enquanto Sigurd seguia em frente sem demonstrar qualquer reação, como alguém já acostumado demais com o próprio ambiente.
— O cheiro tá mió do que tava. — disse ele, andando pelo corredor com passos firmes. — Os bois num pararam de bufar desde aquela noite. Ficaram nervoso. Parece que ainda tão cum medo.
Niko observou ao redor com atenção. Os animais estavam, de fato, agitados — alguns raspavam os cascos com força no chão, outros mugiam sem razão, e alguns se afastavam da porta no fundo do celeiro, como se evitassem chegar perto dela.
— Eles já estavam assim antes da morte do boi? — perguntou ele, sem tirar os olhos dos animais.
— Não desse jeito. Só ficaru assim depois do que aconteceu.
— Então, seja lá o que matou o boi, deixou os outros apavorados. — concluiu Niko, começando a andar pelo corredor central. Ele olhou para as travas das baias, verificando se alguma parecia estar quebrada. — Mas nada aqui parece ter sido arrombado… Uhm?
Foi então que parou. Viu uma trava diferente das outras, ela estava quebrada e dentro da estalagem não havia nada. Nenhum animal, feno ou algo do tipo. Ela estava completamente vazia.
— Foi ali que o gado morreu? — disse Niko, apontando para a estalagem divergente.
Sigurd ficou imovel e olhou para o mesmo ponto. Seu rosto endureceu por um instante antes de responder, com a voz mais baixa:
— Foi. Foi aí que a gente encontrou ele… ou o que sobrou dele.
Evelyn se aproximou da tranca quebrada e passou os dedos pelas rachaduras. A madeira havia se partido de forma irregular — não havia sinais de corte limpo ou marcas de ferramentas.
— Isso foi arrombado com força. Muita força mesmo.
Brigitte engoliu em seco. Seus olhos vagaram pelo celeiro como se esperassem encontrar olhos escondidos nas sombras.
— Isso tá começando a parecer aquelas histórias horríveis que as velhas da minha vila contavam… credo.
Evelyn se afastou da tranca e voltou-se para Sigurd.
— Onde está o corpo?
Sigurd apontou para a porta metálica no fundo do celeiro.
— Guardamu ele ali, numa sala separada. Num parecia bom deixá-lo perto dos outros.
Os três o acompanharam até o fim do corredor. O fazendeiro puxou um molho de chaves do casaco e destrancou a porta de aço. O som metálico ecoou pelo corredor, e assim que a porta se abriu. Um cheiro pesado de carne podre invadiu o ambiente, mais forte que tudo o que haviam sentido até então.
Brigitte recuou um passo e cobriu o nariz outra vez, fazendo uma careta visível.
— Ugh… que nojo!
Sigurd entrou primeiro, passando pelos três.
A sala era pequena, sem janelas, iluminada apenas por uma lanterna pendurada no teto. O chão de pedra estava manchado em tons escuros de vermelho. No centro da sala, deitado sobre um pano grosso e manchado, estava o cadáver do boi — ou o que restava dele —, coberto por moscas e em estado pouco avançado de decomposição.
O cheiro ali dentro era sufocante. Evelyn engoliu em seco, Niko instintivamente cobriu a boca com a mão, sentindo o estômago revirar. Brigitte deu dois passos para trás, os olhos arregalados, completamente pasma.
— Mas… que diabos fez isso?
A carcaça estava dilacerada. Partes do couro haviam sido arrancadas, expondo os músculos, ossos quebrados e tecidos moles estraçalhados. As costelas estavam abertas e destruídas, como se tivessem sido mordidas e rasgadas sem cuidado. As patas traseiras simplesmente não estavam mais lá.
Evelyn, que até então encarava o caso como algo simples — um ataque animal, talvez —, começou a encarar a situação com mais seriedade. Aquele tipo de ferimento não se encaixava no padrão de predadores comuns. Era algo além. Algo mais brutal, mais consciente.
Ela se agachou ao lado do cadáver, respirou fundo e, mesmo contendo o nojo, passou os dedos por entre os cortes.
— Mordidas… as mordidas são irregulares, desalinhadas. Lobos costumam arrancar pedaços inteiros. Isso aqui foi rasgado. Isso aqui parece como… como se o que atacou tivesse mastigado sem intenção de se alimentar, só de causar danos ao animal.
Ela olhou para Sigurd.
— Já viu algo parecido?
— Nunca. — respondeu o fazendeiro, com o rosto tenso, os braços cruzados. — Nunca vi nada que deixasse um bicho assim.
Brigitte se aproximou de Evelyn com passos cuidadosos e apontou para o que restava da garganta do animal.
— Aqui… isso não parece marca de unhas?
Niko se aproximou, analisando. O que antes parecia apenas mais um corte irregular agora se revelou: eram quatro marcas profundas, paralelas, simétricas demais para terem sido feitas por dentes.
Evelyn e Niko trocaram um olhar silencioso.
— Definitivamente, não foi um animal comum que fez isso. — murmurou Niko.
— Mas se não foi um animal… — disse Brigitte, engolindo em seco — …então foi o quê?
— É isso que a gente veio descobrir. — respondeu Evelyn.
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