Capítulo 78 - As Pistas II
A casa de Elias parecia ser uma das mais antigas do vilarejo. As madeiras estavam desgastadas pelo tempo e a umidade, a porta parecia torta e mal encaixada, e o telhado tinha partes afundadas, era como se fosse desabar a qualquer momento. O quintal estava repleto de penas de galinha espalhadas, dando ao lugar uma aparência negligenciada e um pouco sinistra.
Na varanda, um velho estava sentado em uma cadeira de balanço, enrolado em um cobertor grosso. Estava com um cachimbo apagado na boca e encarava o vazio à sua frente com nenhuma expressão.
Ao notar a aproximação de Niko e Evelyn, ergueu o queixo, atento, mas não disse nada.
— Você é o Elias? — perguntou Evelyn, parando aos pés da escada de madeira.
— Depende. Quem quer saber? — respondeu ele. Sua voz era áspera como casca de árvore seca.
— Fomos contratados por Sigurd Keller. — disse Niko. — Ouvimos dizer que o senhor viu coisas estranhas por aqui recentemente. O que o senhor viu?
Elias resmungou algo ininteligível, coçou a barba desgrenhada e estreitou os olhos desconfiados.
— Isso depende… O que exatamente vocês tão tentando encontrar?
Niko e Evelyn se entreolharam. Aquilo soou mais como uma armadilha do que uma pergunta. Niko sentiu um leve desconforto, mas manteve a compostura e tirou de dentro do casaco o papel dobrado. Desenrolou-o e virou para o velho, mostrando o esboço detalhado do cadáver do boi.
Os olhos de Elias se arregalaram por um instante, mas logo ele se recostou na cadeira, soltando um longo suspiro.
— Sabia que isso ia acontecer uma hora ou outra…
— O quê? — perguntou Evelyn, inclinando-se para a frente, curiosa.
O velho abaixou a voz e olhou ao redor, como se temesse que alguém os estivesse espionando.
— Isso é obra de um Gorgulante Noturno, hehehe.
— Um o quê?
Elias olhou para os dois com uma expressão séria, quase solene.
— Gorgulante Noturno. Criatura das sombras, devoradora de almas. Anda em quatro patas, mas pode se erguer como um homem! Tem olhos amarelos e um cheiro de enxofre que impregna a pele! — respondeu ele fazendo sinais com as mãos.
— E o senhor já viu um desses? — Niko perguntou, tentando esconder o ceticismo.
— Uma vez, quando eu era jovem! — Elias se inclinou para a frente, gesticulando com as mãos. — Meu pai me disse pra nunca encarar um Gorgulante diretamente nos olhos, senão ele rouba seu espírito!
— E como tem certeza de que foi isso que matou o boi? — perguntou Evelyn.
— Eu não tenho certeza de nada! Mas que foi um Gorgulante, foi!
Niko respirou fundo, tentando não demonstrar frustração. Aquilo estava ficando mais inútil do que ele imaginava. Quando os dois começaram a se afastar da varanda, Evelyn deu uma risadinha baixa.
— Gorgulante Noturno? Isso é novo.
— Esse cara só queria atenção. — Niko balançou a cabeça. — Precisamos de outra pista, de preferência uma que faça sentido.
— Pelo menos ele não cobrou pela história. — disse Evelyn com um sorriso torto.
— Ainda não.
Conforme continuavam pela vila, perguntaram sugestões a outros moradores. Algumas respostas eram previsíveis, outras simplesmente absurdas.
— Bom, eu acho que foi um lobo dos grandes. — sugeriu um caçador. — Eles não devem ter achado comida, então foram até a fazenda.
Mesmo se fosse um lobo, aquilo não explicava como entrou e saiu sem deixar qualquer rastro. O estado do boi não batia com nenhum ataque animal conhecido. A hipótese logo foi descartada.
— Acho que foram ladrões famintos! — disse um agricultor.
Mais plausível, já que os ladrões poderiam fazer um plano para entrar dentro do celeiro sem deixar rastros, mas igualmente sem sentido. Nem ladrões famintos precisariam desmembrar o animal daquela forma.
— Eu tenho certeza de que foi uma maldição de algum Azrothista que o fazendeiro irritou. — sugeriu um homem na casa dos quarenta anos. — Esse tipo de coisa só pode ser obra dos caídos.
— Foram os Gorgulantes Noturnos! — disse uma senhora velha, com a mesma convicção que Elias.
Niko parou por um segundo.
— De novo esse nome… — murmurou, apertando levemente o papel nas mãos.
Os Gorgulantes Noturnos foram mencionados duas vezes por duas pessoas diferentes. Duas pessoas separadas contando a mesma coisa absurda. Niko queria acreditar que os Gorgulantes eram reais, então chegou à conclusão de que aquilo se tratava de uma lenda local.
Foi quando estavam quase perdendo as esperanças sobre a investigação que um ferreiro chamado Yoren mencionou algo diferente.
— Olha, não sei se vocês acreditam nessas coisas, mas meu avô falava de criaturas carniceiras que devoravam tudo à sua frente, sapien ou animal. Ele os chamava de ghouls.
— Ghouls? — repetiram os dois quase em uníssono.
— Sapiens amaldiçoados com uma fome eterna. Viram feras. Se alimentam de qualquer coisa viva ou morta. O estado do boi… bate com isso.
— E você já viu um? — perguntou Evelyn.
Yoren hesitou. Seus olhos se desviaram por um momento, como se estivesse revivendo algo que preferia esquecer.
— Não. Nunca vi. Mas… uma vez ouvi algo. Um som de madeira rasgando. Bem tarde da noite. Me levantei da cama e quando fui ver o que era, tinha uma marca enorme de garras na minha porta.
— Quando foi que aconteceu isso? — perguntou Niko.
— Bom… foi esses dias.
Niko estreitou os olhos. Seu olhar perdeu o foco por um instante, enquanto uma linha de pensamento começava a se formar. “Esses dias”… Era o mesmo período do ataque ao boi. Se o relato de Yoren fosse verdadeiro, talvez a criatura não estivesse agindo em um único ponto — mas rondando toda a área.
Evelyn também ficou em silêncio, processando a informação. Era fantasioso, mas fazia mais sentido do que qualquer outra explicação até agora.
— Esses ghouls… são espertos? — perguntou Niko.
— Muito. Quando estão famintos, viram feras, mas… ainda têm cerca racionalidade. E se o que matou esse boi for mesmo um Ghoul, pode ter encontrado um jeito de entrar no celeiro sem ser notado.
Evelyn cruzou os braços, refletindo sobre a informação.
— Isso bate com o que a gente viu. O celeiro tava fechado por dentro, sem sinais de arrombamento. Não faria sentido um ataque de um predador comum.
Niko ficou em silêncio por um momento, pensando nas possibilidades. Foi então que pensou em algo.
— Como…? Talvez por baixo. — disse Niko de repente.
— Como assim? — Evelyn se virou para ele.
— Túneis. Ou algo parecido.
— Não é impossível. Existem antigas minas abandonadas e passagens subterrâneas nessa região. Se algo estivesse se escondendo por aqui, poderia estar usando os túneis pra se movimentar.
Evelyn estalou os dedos, animada.
— Isso faz sentido! Boa ideia, Niko!
— A gente precisa voltar pra fazenda e investigar melhor. E talvez a Brigitte já tenha voltado.
Ao ouvir o nome da garota, Evelyn se lembrou do seu estado de manhã.
— Tomara que ela não esteja se matando de correr pela floresta atrás de uma sombra… — disse, mais para si.
Niko ficou quieto, mas a imagem dela anotando compulsivamente voltou à sua mente. Ela estava se esforçando demais. Talvez até mais do que deveriam.
Evelyn virou-se para Yoren, mais uma vez.
— Obrigada pela ajuda. Isso pode ter sido a peça que faltava.
— Só não se metam em encrenca. Se for mesmo um ghoul, é melhor chamar os militares.
Evelyn riu pelo nariz, dando uma cara convencida para o ferreiro.
— Tá tudo bem. Eu já fui militar, sabia?
— E largou pra virar mercenária?
— Depois de tudo que eu vi… pensei que essa fosse a vida que me faria mais feliz.
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